Mudança na Lei da Improbidade Administrativa: limpeza na extravagância

A retirada do excesso sobre funcionários, prefeitos e vereadores

04/09/2020 às 12:42
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Projeto de Lei visa racionalizar a Lei nº 8.949/92, afastando exageros que abrem espaço para injustiças e ofuscam a principal finalidade: combate ao enriquecimento ilícito e ao dano aos cofres públicos.

Já com atraso – mas antes tarde do que nunca – o Parlamento se movimenta para ajustar a chamada Lei da Improbidade Administrativa, empregada de maneira distorcida, sobretudo quando atinge servidores públicos. Para eles não se permite aferir nexo de causalidade entre conduta e resultado, além de ser usual a condenação na via disciplinar com base em conceitos ambíguos recolhidos de uma lei da escola draconiana; e o mesmo acontece no ambiente dos agentes políticos na esfera municipal. Esses dois grupos preenchem a maior parte dos atingidos pelo destempero.

Com efeito, a Câmara dos Deputados tem na pauta de votações o Projeto de Lei nº 10.887/2018 que restringe a aplicação das sanções às situações originais, ou seja, àquilo que justificou a produção desse texto no início da década de 1990: enriquecimento ilícito ou dano aos cofres públicos. Em complemento à imposição da probidade, posta no art. 37 da Constituição Federal, foi produzida a Lei nº 8.429/92. Entretanto, no vai e vem entre Câmara e Senado durante o processo legislativo, sucederam-se alterações que desfiguraram o essencial e do resultado saiu algo como um vulcão propenso a jogar lavas incandescentes para todos os lados. Foram formuladas possibilidades de sanções a partir de conceitos vagos, surgindo desse laboratório um remédio que, além de amargo, não alcançou o seu objetivo primordial.

O resultado imediato foi um leque de oportunidades para o Ministério Público propor processos sem critério de admissibilidade, o que, anos depois, foi foco da primeira alteração. Mas durante muito tempo cidadãos dignos foram levados ao pelourinho, torturados publicamente como o eram os escravos em vis julgamentos. Retirados alguns excessos, subsistiram, no entanto, a classificação de improbidade por estimativa de ferimento a princípios e, para efeitos de demissão como pena disciplinar, a presunção de enriquecimento ilícito, sem se apontar relação da causalidade.

Nos processos disciplinares a insânia aparece elevada ao cubo. Um espirro fora do tom pode ser enquadrado em ato de improbidade, a depender do humor de quem acusa e do tempero de quem julga.

Tenha-se em conta que quando da edição da Lei nº 8.429 o Ministério Público passou a utilizar a ferramenta para alcançar qualquer irregularidade, fantasiosa ou real, tal a abertura que a redação permitia. A principal armadilha estava no fato de se equiparar à improbidade administrativa qualquer ato atentatório aos princípios constitucionais relacionados à administração pública, como legalidade e moralidade. Nesse contexto, uma interpretação diferente da norma jurídica, em tese, poderia levar um funcionário à demissão (ilegalidade); um procedimento que não estivesse nos padrões morais e até religiosos de uma chefia dava margem para que o servidor fosse enquadrado em imoralidade administrativa e disso se desdobrasse ação judicial, com anos de discussão sobre algo sem qualquer relevo jurídico ou interesse social.

Somava-se (e ainda persiste) a destemperada conclusão de que se o servidor não comprovar a origem, por exemplo, de qualquer centavo acima de 80 mil reais na conta pessoal é cabível a responsabilização por improbidade presumida, como fincou o STJ ao fixar um piso de referência; não se exige da autoridade processante que produza qualquer prova de relação entre o valor acima e uma conduta irregular qualquer. O que seria algo a ser examinado estritamente sob a ótica fiscal, passou a ser um rótulo que a burocracia insana colou na testa de pessoas honradas.

O cargo de prefeito, no mesmo andar, atualmente poderia entrar na classificação do Direito do Trabalho entre os que fazem jus à gratificação por periculosidade. O risco de morte política e até de óbito em sentido real é enorme. Muitos gestores municipais foram imolados por doenças oportunistas causadas pelo estresse de processos infundados; outros, levados ao extremo da depressão, buscaram a porta do suicídio.

O relator da atual proposta no Legislativo estima que a considerar apenas a região de Sorocaba, no interior de São Paulo, cerca de 80% dos prefeitos foram processados por improbidade e 64% tiveram condenação em primeira instância. A se fazer uma varredura no mérito e nas provas, é provável que em mais da metade dos episódios não se encontrem fatos ou provas que relacionem essas pessoas a enriquecimento ilícito ou a dano ao erário.

O Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) aponta que 57,9% dos recursos em ações de improbidade administrativa que chegam ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) tendo na parte passiva prefeitos e vice-prefeitos (ou os que exerceram tais cargos) estão relacionados a supostas ofensas a princípios da administração pública, sem que exista qualquer vínculo com corrupção.

A lei é de bom propósito, mas, pela equivocada construção e exagero de amplitude, deu espaço para o excesso; e, em havendo exageros o embate judicial é inevitável. O resultado disso é o amargor da espera de solução por quem é acionado e, ao cabo, o arquivamento de grande parcela das causas em tribunais superiores porque lastreadas no absurdo. Mesmo com o reparo da extravagância, as sequelas são irremediáveis, seja para o cidadão, seja para o Estado que mobilizou o Judiciário para o nada.

Alguns setores desavisados veem a mudança como retrocesso, porque nos últimos anos o Brasil se transformou em um Estado que semeia terror e isso estimula instintos primitivos. A volta à barbárie é mérito político; o retrocesso na pregação de métodos e costumes é o novo perfil da sociedade aprisionada pela psicopatia no ambiente institucional. A caça a corruptos virou mote, seja lá o que isso signifique na prática; pessoas letradas e espíritos outrora arejados pelo saber passaram a raciocinar com o fígado. Junte-se a isso uma legislação de traços excepcionais e se tem uma nação de joelhos, sujeita ao arbítrio.

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O Projeto de Lei não inviabiliza o alcance de quem deve ser encalçado. Continuam na essência os elementos que permitem chegar aos agentes de colarinhos brancos, aqueles que verdadeiramente transformam gabinetes oficiais em oficinas de horrores. O problema é a efetividade em relação a esses protagonistas. Em que pese o Brasil ser uma federação republicana, a desigualdade jurídica é patente.  Esses atores recebem a prestação jurisdicional mais célere do mundo; pode-se inclusive afirmar que para eles a Lei da Improbidade Administrativa existindo ou não, sendo feroz ou mansa, não arranha os seus calcanhares. Então, talvez com caráter compensatório, o martelo bate na cabeça dos fracos e daí resultam funcionários públicos em todos os níveis e agentes políticos municipais como os preferidos do sistema: são os cara de prontuário de que falam juristas do peso de Figueiredo Dias (Portugal) e Eugenio Zaffaroni (Argentina).

Não se trata, nesse prumo, de afrouxamento, mas de correção de nível. É verdade que a Câmara dos Deputados não é um santuário; está longe de ser uma catedral que agasalha apenas cidadãos de inabalável fé patriótica. Por certo, muitos deles já perceberam que ou os próprios ou gente do seu compadrio são vítimas dessa armadilha. Isso, entretanto, não afasta a relevância da matéria. O complexo enredo de leis tem vários meios de impingir punições àqueles que subvertem a ordem pública e amealham fortuna com ilícitos praticados nos ofícios públicos. Quem se abasteceu com dinheiro público indevidamente continuará sob a regência do texto; quem causou dano ao Tesouro, idem. O benefício está no afastamento do exagero que leva cidadãos inocentes para a pocilga onde somente deveriam estar os genuínos larápios.

É natural que o Projeto de Lei tenha, também, pontos controversos, como a redução do tempo mínimo de suspensão dos direitos políticos, o que pode favorecer personalidades perversas; mas traz como principal a separação entre o que é efetivamente improbidade e o que é ou superstição do acusador ou uma situação de erro ou culpa (negligência, imprudência e imperícia) – incidentes que podem ser tratados em outro cenário.

Ademais, o Código Penal mantém a relação de crimes contra a administração pública; desde 1950 está em vigor a legislação que trata de responsabilidade de altas autoridades da República; e o Decreto-Lei nº 201/67 aborda exaustivamente os crimes de responsabilidade dos prefeitos municipais e vereadores. Os estatutos de servidores trazem as infrações disciplinares e as respectivas sanções. Incontáveis dispositivos paralelos permitem promover responsabilidade administrativa, civil e criminal, avançando para as consequências políticas e na reparação de danos públicos (perda de mandato, tomada de contas especial, restrições eleitorais, etc.). Então, afaste-se a excentricidade e se valorizem a ciência e a eficiência. Os juristas não têm compromisso com egos engomados, com olhares disformes ou com leis sem proporção.

                                                             

O autor escreveu mais de 50 livros e 800 artigos sobre responsabilidade de agentes públicos. É conferencista na América do Sul, Europa e África e advogado em Brasília.

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Sobre o autor
Léo da Silva Alves

Jurista, autor de 58 livros. Advogado especializado em responsabilidade de agentes públicos e responsabilidades de pessoas físicas e jurídicas. Atuação em Tribunais de Contas, Tribunais Superiores e inquéritos perante a Polícia Federal. Preside grupo internacional de juristas, com trabalhos científicos na América do Sul, Europa e África. É professor convidado junto a Escolas de Governo, Escolas de Magistratura e Academias de Polícia em 21 Estados. O autor presta consultoria às mais importantes estruturas da Administração Pública do país desde os anos 1990. Conhece os riscos da gestão e as formas de prevenir responsabilidades, o que o tornou conferencista internacional sobre matérias relacionadas ao serviço público.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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