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Venda de coisa alheia

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Discute-se até hoje se o negócio que tenha por objeto coisa que não pertence ao vendedor é nulo, anulável ou simplesmente ineficaz.

Resumo: A venda de coisa que não pertence ao vendedor pode ocorrer de várias maneiras, sendo que algumas apresentam conseqüências problemáticas, enquanto outras são finalizadas normalmente, sem qualquer forma de conflito. A doutrina majoritária entende que o contrato que tenha por objeto coisa alheia é válido mas ineficaz, podendo vir a ser eficaz. Importante ressaltar, entretanto, que a posterior eficácia do contrato muitas vezes depende da boa-fé dos contratantes.


INTRODUÇÃO

A venda de coisa alheia sempre foi causa de divergências, não só no meio doutrinário, mas também no jurisprudencial. Discute-se até hoje se o negócio que tenha por objeto coisa que não pertence ao vendedor é nulo, anulável ou simplesmente ineficaz. Alguns doutrinadores chegaram a classificar tal venda como inexistente, mas, por tão inadequado, como veremos no decorrer deste trabalho, não analisaremos este posicionamento.

A discussão advém, primeiramente, da confusão que muitos autores fazem entre os três planos jurídicos, quais sejam: da existência, da validade e da eficácia. Estando o problema do contrato no plano da validade, o negócio será nulo ou anulável, enquanto diz-se ineficaz se o problema encontrar-se no plano da eficácia.

Na prática, a chamada venda a non domino poderá resultar em conseqüências bastante prejudiciais, inesperadas e irreversíveis para o comprador ou para o verdadeiro proprietário do bem indevidamente alienado.

Veremos também, entretanto, que o contrato em questão é bastante comum, e poderá ser finalizado, em determinados casos, sem qualquer prejuízo para qualquer das partes ou a terceiros.

Para que possamos entender com clareza esta matéria, será necessário explicarmos, primeiramente, diversas figuras jurídicas, tais como: a boa-fé; os negócios jurídicos; o contrato de compra e venda e seus elementos; e os planos da existência, da validade e da eficácia.

Destarte, faremos, no primeiro capítulo, uma análise da boa-fé, tanto da subjetiva como da objetiva, esta chamada de princípio da boa-fé. Para tanto, faremos algumas considerações acerca das cláusulas gerais, normas que carregam conceitos abertos, adaptáveis às modificações causadas na sociedade pelo decorrer do tempo. A boa-fé objetiva, neste contexto, é um princípio que foi inserido no Código Civil de 2002 através de cláusulas gerais. Por sua vez, a boa-fé subjetiva já podia ser encontrada no Código de 1916, sendo conceituada como um estado de consciência, contrapondo-se, assim, à idéia de má-fé.

No segundo capítulo, estudaremos os negócios jurídicos, seus pressupostos de existência, validade e eficácia, para, após, analisarmos especificamente o contrato de compra e venda. Será necessário, ainda, verificarmos em que consistem os mencionados planos da existência, da validade e da eficácia, bem como os elementos exigidos para que um contrato possa penetrar em tais planos.

Com essa visão geral, será possível entendermos quais as conseqüências da venda de uma coisa que não pertença ao vendedor, o que será particularmente analisado no terceiro e último capítulo. Veremos, assim, os diferentes posicionamentos encontrados na doutrina para a classificação deste contrato, se nulo, anulável ou simplesmente ineficaz.

Neste derradeiro capítulo também tentaremos descrever as possíveis ocorrências de venda a non domino, isto é, mencionaremos as diversas hipóteses de contratos em que a coisa vendida não pertença ao vendedor e seus diferentes desfechos.

Finalizando o capítulo 3, analisaremos a venda de coisa alheia com ênfase na boa-fé subjetiva, que tem importância fundamental no tema em questão, como veremos no transcorrer do trabalho. Veremos que, dependendo da boa-fé do adquirente, este terá direito a permanecer com o bem ou não, em determinados casos. Na mesma esteira, faremos breves considerações acerca da aparência de direito, onde se encontram as maiores controvérsias a respeito da matéria, pois, levando-se em consideração alguns aspectos, poderá ser resguardado o direito do verdadeiro proprietário ou do terceiro adquirente.


1 A BOA-FÉ

1.1 Considerações preliminares

Para abordar o tema central deste trabalho – venda de coisa alheia –, necessário se faz esclarecer o que se entende por boa-fé, tema de grande importância para que haja harmonia na convivência em sociedade, e essencial para o perfeito entendimento que se almeja com a presente pesquisa.

Antes, porém, faremos uma breve exposição a respeito das cláusulas gerais frente aos ordenamentos jurídicos atuais, haja vista que aquelas representam uma importante ajuda contra a desatualização das normas jurídicas, pois carregam em seu contexto conceitos amplos e genéricos, como o referido princípio da boa-fé, o que viabiliza a adequação às mudanças que ocorrem constantemente na nossa sociedade.

1.2 Cláusulas gerais

Pode-se dizer que as chamadas cláusulas gerais são uma necessidade dos ordenamentos modernos, pois é através delas que estes permanecem atualizados, afastando adaptações que seriam inevitáveis em decorrência das constantes modificações que ocorrem na sociedade. Judith Martins-Costa conceitua com clareza:

Estas normas buscam a formulação da hipótese legal mediante o emprego de conceitos cujos termos têm significados intencionalmente imprecisos e abertos, os chamados conceitos jurídicos indeterminados. Em outros casos, verifica-se a ocorrência de normas cujo enunciado, ao invés de traçar punctualmente a hipótese e as suas conseqüências, é intencionalmente desenhado como uma vaga moldura, permitindo, pela abrangência de sua formulação, a incorporação de valores, princípios, diretrizes e máximas de conduta originalmente estrangeiros ao corpus modificado, bem como a constante formulação de novas normas: são as chamadas cláusulas gerais. [01]

Sílvio de Salvo Venosa, reforçando a atividade criadora e de interpretação dos julgadores, afirma que: "A cláusula geral não é, na verdade, geral. O que primordialmente a caracteriza é o emprego de expressões ou termos vagos, cujo conteúdo é dirigido ao juiz, para que este tenha um sentido norteador no trabalho de hermenêutica, de interpretação". Conclui acrescentando que: "Trata-se, portanto, de uma norma mais primordialmente dita genérica, a apontar uma exegese". [02] O que parece ser indiscutível é que o Código Civil brasileiro de 2002 é formado por um sistema aberto, consolidando o abandono do formalismo positivista que predominou no séc. XIX.

O dinamismo característico da sociedade moderna deve refletir-se no direito, sob pena de este não atingir sua finalidade, como bem demonstra Flávio Alves Martins:

Se o direito não fosse dinâmico, imporia, certamente, um imobilismo incompatível com nossa sociedade em constante evolução. O direito é uma ciência especial com métodos próprios, que tem a função essencial de prevenir e solucionar os anseios e os conflitos nas relações jurídicas. Por essas razões, deve manter-se atualizado com o estágio social, porque, se não, torna-se ineficiente, não apresentando as soluções que dele se esperam. [03]

Complementando o conceito de cláusula geral, cumpre mencionar outro trecho da obra da professora Judith Martins-Costa, in verbis:

(...) as cláusulas gerais constituem o meio legislativamente hábil para permitir o ingresso, no ordenamento jurídico, de princípios valorativos, expressos ou ainda inexpressos legislativamente, de standards, máximas de conduta, arquétipos exemplares de comportamento, das normativas constitucionais e de diretivas econômicas, sociais e políticas, viabilizando a sua sistematização no ordenamento positivo. [04]

Após um profundo estudo acerca do ordenamento alemão, a autora cita o § 242 do BGB – Bürgerliches Gesetzbuch (Código Civil Alemão) – como o mais célebre exemplo de cláusula geral, afirmando que, a partir deste diploma, e principalmente do referido parágrafo, surgiu uma nova visão de sistema, o que causou discussões e muitas críticas contra o caráter elástico das suas disposições e, conseqüentemente, contra o amplo poder que coube aos juízes. [05]

Por serem amplas, abertas, genéricas, as cláusulas gerais possibilitam diferentes interpretações e, deste modo, a aplicação a diferentes casos concretos, o que resulta num poder maior aos julgadores, pois são eles que aplicam as normas jurídicas, determinando a regra cabível a cada caso. Nas palavras de Flávio Alves Martins: "O direito cada vez é menos um sistema que sai pronto e acabado das mãos do legislador, para cada vez mais aparecer como algo a fazer em concreto, na prática dos tribunais e na prática da vida jurídica não-contenciosa (fenômeno da concretude)". [06]

As cláusulas gerais surgiram em substituição ao sistema que utilizava o método da casuística, no qual o legislador enumerava todas as hipóteses possíveis, o que tornava o julgador mero aplicador da lei. Vale transcrever trecho de artigo publicado na Revista de Direito do Consumidor:

As cláusulas gerais existem por autorização do próprio legislador, quando admite a impossibilidade e, muitas vezes, a inconveniência de previsão legislativa casuística, preferindo deixar em aberto para que a jurisprudência e a doutrina formulem os critérios mais adequados para preenchê-las.

O legislador não pode prever todos os motivos, interesses e situações fáticas que surgem envolvendo as circunstâncias da vida, que também ocorrem por meio de desenvolvimentos futuros tanto da técnica como da existência social. Por isso, o legislador, por meio das cláusulas gerais (...), busca a preservação da norma, visto que a mantém mesmo com as alterações da vida, pois são válvulas de escape que permitem adaptação eqüitativa do direito à realidade. [07]

Assim, com o auxílio da doutrina, o julgador exerce um papel fundamental de criação: "A doutrina traça os contornos, estabelecendo as linhas gerais, recolhendo da sociedade o padrão ético a ser seguido na criação e aplicação do direito, e a jurisprudência faz a aplicação de todo esse material, revelando o seu alcance, concretamente". [08]

Porém, salienta-se que, como refere Clóvis do Couto e Silva, a prestação jurisdicional não pode ser arbitrária, como se percebe do seguinte trecho: "A criação do direito, com base na concretização de princípios éticos, exige um trabalho conjunto dos juízes e juristas, cabendo a estes últimos o exame crítico da fundamentação das decisões para que não impere o arbítrio". [09]

Disso resulta a importância da positivação de valores e princípios que constantemente servem de embasamento para as decisões dos julgadores, como o princípio da boa-fé, como bem explicita Clóvis do Couto e Silva afirmando que: "Nas situações mais evidentes, é possível que o juiz julgue, aplicando o princípio da boa fé, mas com uma outra denominação, afirmando que se trata, por exemplo, de construção jurisprudencial a partir de uma interpretação integradora da vontade das partes; (...)". [10]

Cumpre destacar que este posicionamento, apresentado em texto datado de 1980, é anterior ao Código Civil em vigor, o que se verifica pela prática judicial apontada pelo autor, eis que o Código Civil de 1916 não continha previsão acerca do princípio da boa-fé, diferentemente do diploma atual. Daí a necessidade do julgador em utilizar outros caminhos no intuito de proteger aquele princípio.

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O citado autor destaca a importância do princípio na seguinte passagem: "No Direito brasileiro poder-se-ia afirmar que, se não existe dispositivo legislativo que o consagre, não vigora o princípio da boa-fé no Direito das Obrigações. Observe-se, contudo, ser o aludido princípio considerado fundamental, ou essencial, cuja presença independe de sua recepção legislativa". [11] Mais adiante, refere-se à importância da normatização:

Quando num código não se abre espaço para um princípio fundamental, como se fez com o da boa-fé, para que seja enunciado com a extensão que se pretende, ocorre ainda assim a sua aplicação por ser o resultado de necessidades éticas essenciais, que se impõem ainda quando falte disposição legislativa expressa. A percepção ou a captação de sua aplicação torna-se muito difícil, por não existir uma lei de referência a que possam os juízes relacionar a sua decisão. [12]

Com relação a este tópico, Flávio Alves Martins esclarece que a positivação expressa e específica de um princípio limita sua aplicação aos casos previamente determinados pelo legislador. Porém, o autor lembra que o sistema brasileiro tem nas leis sua principal fonte de direito, o que leva a crer que a falta de previsão legislativa do princípio da boa-fé pode deixá-lo em segundo plano. [13]

Judith Martins-Costa defende a aplicação de princípios inexpressos, como se vê na seguinte passagem:

São princípios inexpressos ou implícitos aqueles que, embora não formulados em determinada disposição legislativa, são, à vista da racionalidade do sistema, da natureza de certa instituição, ou do conjunto normativo aplicável a certo campo, elaborados, construídos, ‘recolhidos’ ou formulados pelo intérprete. [14]

Muito pertinente a exposição de Clóvis do Couto e Silva, referindo-se à época da transição que ocorreu entre os séculos XIX e XX, quando a autonomia da vontade deixou de ser princípio absoluto, dando espaço à boa-fé, funcionando como princípio limitador:

Essas modificações ensejaram as mais diferentes análises a respeito da interpretação e mesmo da fundamentação das inumeráveis decisões que faziam a concreção das disposições legislativas abertas, denominadas geralmente de ‘cláusulas gerais’, em que ao juiz se facultara editar a regra ao caso. Com a edição de conceitos abertos como o da boa fé, a ordem jurídica atribui ao juiz a tarefa de adequar a aplicação judicial às modificações sociais, uma vez que os limites dos fatos previstos pelas aludidas cláusulas gerais são fugidios, móveis; de nenhum modo fixos. [15]

Flávio Alves Martins faz uma síntese dessa mudança legislativa:

A superação do positivismo científico e legalista, com os seus ideais de um sistema fechado de normas jurídicas, sucintas e lapidares, e de códigos dotados de soluções para todas as hipóteses (...), leva à adoção, cada vez mais usual, de soluções que se destinam a conferir ao juiz ampla margem de liberdade de apreciação em cada caso concreto.

Assim, iniciando-se na Europa, surge, ante a complexidade cada vez maior das relações jurídicas advindas da transformação econômico-social do mundo, um emprego crescente de alternativas, sobrepujando o legalismo cristalizado ou (...) a utilização do sistema aberto no direito e na jurisprudência dos valores. [16]

Nas palavras do professor Clóvis do Couto e Silva: "A história da importância do princípio da boa-fé relaciona-se com o da autonomia da vontade. Pode-se mencionar que no séc. XIX o princípio da autonomia foi o mais importante e o conceito da ‘pacta sunt servanda’, o seu corolário necessário". [17]

Percebe-se, assim, que a cláusula geral surgiu como tentativa de um ordenamento moderno, adaptável às constantes modificações que ocorrem na sociedade, para que não seja preciso modificar as leis reiteradamente, de acordo com a evolução do homem. Para isso, priorizou-se o princípio da boa-fé em detrimento do princípio da autonomia da vontade.

Nesta senda, referindo-se ao abandono do positivismo legalista, assim leciona Judith Martins-Costa:

A esta nova cultura corresponde um novo modelo de código. (...). Hoje a sua inspiração, mesmo do ponto de vista da técnica legislativa, vem da Constituição, farta em modelos jurídicos abertos. Sua linguagem, à diferença do que ocorre com os códigos penais, não está cingida à rígida descrição de fattispecies cerradas, à técnica da casuística. Um código não-totalitário tem janelas abertas para a mobilidade da vida, pontes que o ligam a outros corpos normativos – mesmo os extrajurídicos – e avenidas, bem trilhadas, que o vinculam, dialeticamente, aos princípios e regras constitucionais. [18]

Complementando a idéia, a autora lembra que as novas leis têm sido elaboradas de forma distinta da forma tradicional, a qual costumava conter hipóteses fáticas especificadas e que indicavam, da mesma forma, suas conseqüências. [19]

Vê-se, assim, que a tendência é que haja cada vez mais normas abertas, com conceitos vagos e adaptáveis a diferentes casos fáticos, a diferentes situações. O legislador não busca arrolar todas hipóteses possíveis, mas sim indicar o caminho para que o julgador aplique as leis da forma mais adequada para cada caso concreto, evitando, com isso, por exemplo, a falta de disposição para um determinado caso eventualmente não tipificado porque não vislumbrado pelo criador das normas.

É possível concluir, do que foi exposto até aqui, que as cláusulas gerais são compostas, também, de princípios, dos quais se sobressai o da boa-fé. Alguns doutrinadores entendem que cláusula geral e princípio são sinônimos, posição não compartilhada pela professora Judith Martins-Costa, que aponta sutis distinções. Não faremos aqui tal diferenciação, apenas faz-se o registro. Importa mencionar, no que tange a esta discussão, que "(...) as cláusulas gerais não são princípios, embora na maior parte dos casos os contenham, em seu enunciado, ou permitam a sua formulação". [20]

Neste contexto, necessário ressaltar que existem dois enfoques para a boa-fé: objetiva e subjetiva, as quais apresentam significados completamente distintos, como adiante se vê:

(...). A boa-fé subjetiva é a consciência ou a convicção de se ter um comportamento conforme ao direito ou conforme à ignorância do sujeito acerca da existência do direito do outro. Já a boa-fé objetiva permite a concreção de normas impondo que os sujeitos de uma relação se conduzam de forma honesta, leal e correta. [21]

O princípio da boa-fé refere-se à chamada boa-fé objetiva, como se conclui da seguinte citação:

A boa-fé objetiva, entretanto, diz respeito a elementos externos, a normas de conduta, que determinam como o sujeito deve agir. É a boa-fé princípio, que corresponde à fides bona romana, uma regra de conduta, um dever de agir, ou seja, de agir de acordo com determinados padrões, socialmente recomendados, de correção, de lisura e honestidade, para não frustrar a confiança legítima da outra parte. [22]

Feita a introdução acima, passaremos, então, a uma análise mais profunda dos enfoques da boa-fé recém mencionados.

1.3 A boa-fé objetiva

Miguel Reale conceitua a chamada boa-fé objetiva como "uma exigência de lealdade, modelo objetivo de conduta, arquétipo social pelo qual impõe o poder-dever de que cada pessoa ajuste a própria conduta a esse arquétipo, obrando como obraria uma pessoa honesta, proba e leal". [23]

Na mesma linha de raciocínio, Sílvio de Salvo Venosa descreve o princípio da boa-fé de acordo com a visão do julgador:

O intérprete parte de um padrão de conduta comum, do homem médio, naquele caso concreto, levando em consideração os aspectos sociais envolvidos. Desse modo, a boa-fé objetiva se traduz de forma mais perceptível como uma regra de conduta, um dever de agir de acordo com determinados padrões sociais estabelecidos e reconhecidos. [24]

Este princípio não estava expressamente previsto no Código Civil brasileiro de 1916, diferentemente do que aconteceu com o Código Civil em vigor, que faz referência à boa-fé, em sentido objetivo, em diversos artigos, como, por exemplo, o 422, o qual dispõe: Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios da probidade e boa-fé. [25].

Importante referir, também, que o Código de Defesa do Consumidor, de 1990, portanto anterior ao Código Civil atual, já dedicava várias disposições àquele princípio, garantindo a proteção necessária ao mais vulnerável na relação de consumo. Destaca-se, ainda, que, mesmo antes da positivação, a boa-fé objetiva já era reconhecida e utilizada, como afirma Maria Cristina Cereser Pezzella:

Recentemente o Código de Defesa do Consumidor introduziu no sistema jurídico brasileiro o sentido objetivo da boa-fé, materializando a interpretação objetiva da boa-fé que já existia, mesmo que timidamente, na doutrina e na jurisprudência. [26]

Judith Martins-Costa também se refere à aplicação do princípio antes da normatização, ressaltando o pioneirismo dos Tribunais gaúchos, como se comprova da seguinte passagem:

(...) não tendo sido posto no Código Civil como cláusula geral [27], o princípio da boa-fé objetiva tem sido utilizado pela jurisprudência gaúcha, principalmente nos últimos anos, como se o fosse, mediante um engenhoso artifício, qual seja o de dar caráter e, principalmente, função de cláusula geral ao princípio inexpresso que resultaria do conjunto das disposições do Código Civil em matéria obrigacional. [28]

Cumpre transcrever acórdão datado de 1999, que exemplifica o acima disposto:

JUSTIÇA - PARTÍCIPES - RESPEITO MÚTUO. Advogados, membros do Ministério Público e magistrados devem-se respeito mútuo. A atuação de cada qual há de estar voltada à atenção ao desempenho profissional do homem médio e, portanto, de boa-fé. Não há como partir para a presunção do excepcional, porque contrária ao princípio da razoabilidade. (...). (Grifou-se) [29]

As origens da boa-fé são, entretanto, muito mais remotas. Surgiu no direito romano, representando, como descreve Flávio Alves Martins, um dever de cooperação, de lealdade, uma garantia de que os contratantes manteriam a palavra dada, abstendo-se de quaisquer atos que dificultassem o adimplemento; era a conhecida "fides" romana. [30]

Já naquela época havia a distinção entre a boa-fé objetiva ("fides bona") e a subjetiva ("bona fides"), porém não nos mesmos moldes que conhecemos atualmente [31]. Foi no direito alemão, com a promulgação do BGB (Código Civil germânico), em 1896, que a diferenciação dos dois sentidos conferidos à boa-fé ficou mais evidente [32]. O Código Civil brasileiro de 2002 sofreu profunda influência do BGB, assim como ocorreu com os códigos português, espanhol, suíço e muitos outros que surgiram após a promulgação do diploma alemão. Isso se deveu, principalmente, à atuação dos juízes, que interpretaram o BGB de maneira inovadora, dando uma nova concepção ao princípio da boa-fé, mudando os rumos do sistema jurídico ao limitarem a incidência da autonomia da vontade, o que, nas palavras de Flávio Alves Martins, "consiste na faculdade concedida aos particulares de auto-regulamentação dos seus interesses". [33]

O autor considera que são princípios das obrigações a autonomia e a boa-fé objetiva; ressalta o autor, entretanto, que há diversos posicionamentos quanto ao assunto, sendo que o princípio da autonomia é aceito pacificamente pelos doutrinadores [34]. Este era considerado princípio absoluto no período dominado pelo formalismo jurídico, quando os particulares tinham total liberdade para contratar como e com quem quisessem [35]. Conforme o mesmo doutrinador:

(...) o dogma da supremacia da autonomia da vontade conheceu uma fase áurea que passou; formularam-se, então, sérias críticas, principalmente por se perceber, com os movimentos sociais da segunda metade do séc. XIX, o desmascaramento da falácia de que ‘todos são iguais’. Veio, então, uma fase de redução do âmbito de atuação desse princípio. [36]

O princípio da autonomia da vontade teve seu apogeu nos séculos XVIII e XIX, e continua sendo considerado de suma importância em nossos dias. De acordo com Ubirajara Mach de Oliveira, este princípio reinou quase absoluto durante seu apogeu, quando a vontade do particular preponderava até mesmo sobre a lei. Ocorre que, no século XX, a partir da 1ª Grande Guerra, observaram-se muitas transformações, tanto sociais quanto políticas e econômicas, o que resultou na relativização da autonomia da vontade. A esse respeito, cumpre transcrever:

Ela continua a ocupar lugar de relevo dentro da ordem jurídica privada, mas, a seu lado, a dogmática moderna admite a jurisdicização de certos interesses, em cujo núcleo não se manifesta o aspecto volitivo. Da vontade e desses interesses juridicamente valorizados dever-se-ão deduzir as regras que formam a dogmática atual. [37]

A boa-fé exerce, nesse contexto, função limitadora de grande relevância, bem como o fazem as normas e a atuação jurisprudencial. Flávio Alves Martins lembra também que "A vigência do princípio da boa-fé não pode ser revogada pela vontade das partes". [38] O autor destaca a importância do princípio afirmando que "pode-se dizer que é um dos princípios que mais influência exerce sobre o sistema, representando, inclusive, reflexo da ética no fenômeno jurídico". [39]

Percebe-se, então, que os princípios da boa-fé e da autonomia coexistem. Neste sentido:

A concepção de sistema aberto permite que se componham valores opostos, vigorantes em campos próprios e adequados, embora dentro de uma mesma figura jurídica, de molde a chegar-se a uma solução que atenda à diversidade de interesses resultantes de determinada situação. Em certos casos, o exame da vontade será prevalente; em outros não. [40]

Em suma, a boa-fé objetiva é uma norma de comportamento, regra de conduta segundo a qual as pessoas devem agir com lealdade e correção, tendo como parâmetro o homem comum. Importante ressaltar que se deve levar em consideração a época, o local e demais aspectos sócio-culturais que possam influenciar na conduta dos contratantes. [41]

Maria Cristina Cereser Pezzella é categórica: "Elevada à categoria de um princípio geral do direito, todos os membros de uma comunidade jurídica devem comportar-se de acordo com a boa-fé objetiva em suas relações recíprocas (...)". Em outra passagem, a autora afirma que a doutrina dominante e a jurisprudência alemãs consideram a boa-fé princípio supremo a absoluto. [42]

Importante salientar que agir segundo a boa-fé é pressuposto de segurança jurídica. As negociações dependem da confiança entre as pessoas, pois se costuma contratar visando o adimplemento. Assim, o desenvolvimento econômico está diretamente ligado àquele princípio, haja vista que a desconfiança é um empecilho às negociações. Flávio Alves Martins diz que "Como admitimos o consensualismo [43], o princípio da boa-fé é a tradução do interesse social de segurança das relações jurídicas (...)". [44]

Concluindo, transcreve-se conceito de boa-fé objetiva, extraído da obra do mesmo autor:

(...) é um dever das partes de uma relação jurídica comportarem-se, tomando-se por fundamento a confiança que deve existir, de maneira correta e leal; mais especificamente, caracteriza-se como retidão e honradez dos sujeitos de direito que participam de uma relação jurídica, pressupondo o fiel cumprimento do estabelecido. [45]

1.4 A boa-fé subjetiva

Este enfoque da boa-fé está relacionado a um estado de consciência. Uma pessoa age de boa-fé quando acredita que está tomando uma atitude correta, em conformidade com o direito. É a boa-fé crença, pois o sujeito age sem saber que está prejudicando direito alheio, ele ignora a ilicitude de seu ato. [46]

Nas palavras de Judith Martins-Costa:

A boa-fé subjetiva denota, portanto, primariamente, a idéia de ignorância, de crença errônea, ainda que excusável, acerca da existência de uma situação regular, crença (e ignorância excusável) que repousam seja no próprio estado (subjetivo) da ignorância (...), seja numa errônea aparência de certo ato (...). Pode denotar, ainda, secundariamente, a idéia de vinculação ao pactuado, no campo específico do direito contratual, nada mais aí significando do que um reforço ao princípio da obrigatoriedade do pactuado, de modo a se poder afirmar, em síntese, que a boa-fé subjetiva tem o sentido de uma condição psicológica que normalmente se concretiza no convencimento do próprio direito, ou na ignorância de se estar lesando direito alheio, ou na adstrição ‘egoística’ à literalidade do pactuado. [47]

Pode-se dizer, assim, que a boa-fé subjetiva contrapõe-se à má-fé, pois esta está relacionada à intenção de lesar alguém. Age de boa-fé quem ignora a irregularidade de seu ato, acreditando estar em conformidade com o direito. [48]

Sílvio de Salvo Venosa ensina que se deve levar em consideração o grau de conhecimento que a pessoa possui sobre o negócio para que seja possível avaliar se ela estava ou não de boa-fé. Estando relacionada a um estado de consciência, é difícil termos certeza acerca da boa-fé subjetiva; é preciso avaliar cautelosamente os atos e o aspecto psicológico da pessoa. [49]

José Fernando Simão conceitua a boa-fé ora tratada lembrando da nomenclatura alemã, como se vê:

A boa-fé subjetiva é aquela ligada a uma avaliação individual e equivocada de dados da realidade. Significa que o sujeito tem ou não ciência de algo. Trata-se de um estado de consciência. É chamada pelos alemães de boa-fé crença (‘Gutten Glauben’). [50]

As expressões utilizadas no BGB (Código Civil alemão) evidenciam a diferença entre a boa-fé subjetiva e a objetiva. A primeira é conhecida por boa-fé crença e a segunda por lealdade e correção, nomenclatura que expressa o significado de ambas. [51]

Flávio Alves Martins lembra que a boa-fé subjetiva já era conhecida no direito romano, assim como a objetiva, como se percebe da seguinte passagem:

Reconheciam não apenas a subjetiva, baseada na convicção de não cometer dano a outro e que se baseava na crença, no erro e na ignorância, desenvolvendo-se, sobretudo, no campo dos direitos reais, mas, também, a objetiva, normativa da relação obrigacional, a partir do desenvolvimento do ius gentium. [52]

Em sentido subjetivo, já havia previsão expressa no Código Civil de 1916, diferentemente do que ocorreu com a boa-fé objetiva. Aquela estava prevista, por exemplo, no artigo 622 [53], o qual assegurava direitos ao adquirente de boa-fé. Da mesma maneira, o Código Civil vigente contém inúmeros dispositivos que tratam da boa-fé subjetiva, como o artigo 1268, § 1º, equivalente ao supra citado artigo do Código Civil de 1916. [54]

Na jurisprudência, também é possível perceber a relevância da boa-fé em sentido subjetivo, a qual é mencionada reiteradamente pelos julgadores. Vejamos um exemplo:

AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ESPECIAL. MERCADORIA IMPORTADA. PENA DE PERDIMENTO. ORIENTAÇÃO SSENTADA NO STJ NO SENTIDO DO SEU AFASTAMENTO, ANTE A BOA-FÉ DO ADQUIRENTE. REEXAME DE MATERIAL PROBATÓRIO. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA 7/STJ.

1. É orientação assentada nesta Corte aquela segundo a qual a boa-fé do adquirente de mercadoria importada, que se presume por sua compra em estabelecimento regularmente estabelecido e mediante nota fiscal, afasta a pena de perdimento do bem, imposta em decorrência de sua irregular entrada no país. (...). [55]

Percebe-se, da leitura do acórdão acima, que muitas vezes a boa-fé é determinante na decisão do julgador, o qual considera o aspecto psicológico das partes para reconhecer direitos ou não.

A análise do estado de consciência do adquirente pode ser fundamental quando, por exemplo, a coisa alienada não era do alienante, mas de terceiro. É disso que tratam os artigos acima referidos, quando concedem direito ao adquirente de boa-fé se o alienante, apesar de não ter a propriedade no momento da transferência, adquirir depois o domínio, revalidando a transferência.

A análise da boa-fé subjetiva é, portanto, fundamental para o estudo da venda de coisa alheia, pois esta pode ter eficácia ou não dependendo da boa-fé do adquirente. Veremos, no decorrer dos próximos capítulos, que ora será resguardado o direito do proprietário anterior, e ora será privilegiado o adquirente, novo proprietário.

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Sobre a autora
Ana Carolina Garcez de Azevedo

advogada em Porto Alegre (RS)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AZEVEDO, Ana Carolina Garcez. Venda de coisa alheia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1083, 19 jun. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8525. Acesso em: 25 abr. 2024.

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