3 OS QUESITOS NO PROJETO DE REFORMA DO JÚRI
Muitos juristas e doutrinadores vêm almejando uma reestruturação do nosso Código de Processo Penal de 1941, a fim de que este se harmonize com os princípios e regras da Constituição Federal superveniente. Ada Pellegrini Grinover, Presidente da última Comissão de Reforma do Código de Processo Penal, argumentando acerca da necessária reforma do processo penal do Brasil, descreve as idéias fundamentais do Código Modelo:
(...) os valores fundamentais do moderno processo penal são o garantismo e a efetividade. ‘Garantismo’, visto tanto no prisma subjetivo dos direitos das partes, sobretudo da defesa, como no enfoque objetivo da tutela do justo processo e do correto exercício da função jurisdicional. ‘Efetividade’, na visão instrumental do sistema processual, posto a serviço dos escopos jurídicos, sociais e políticos da jurisdição. (...) A transparência, a desburocratização e a celeridade são corolários da estrutura acusatória pelo novo processo penal. (...) O processo forjado em 1940, moroso, complicado extremamente formal, não se coaduna com sua almejada efetividade, levando freqüentemente à impunidade. [132]
O discurso de celeridade e informalização das ações penais tem sido a tendência político-criminal que vem fundamentando as reformas legislativas contemporâneas, dentre elas, o projeto de reforma do procedimento relativo ao Tribunal do Júri [133].
Registra-se, contudo, que as idéias reformistas do nosso Código de Processo Penal de 1941 são de longa data, tendo marco inicial no Anteprojeto de 1970, do jurista José Frederico Marques. Como afirma Geraldo Prado: não é recente o movimento de Reforma do Código de Processo Penal brasileiro. Nas últimas décadas alguns anteprojetos foram idealizados e por motivos variados terminaram sendo colocados de lado [135].
Dessa forma, voltemos as atenções ao trabalho mais recente visando reformar o Código de Processo Penal: o realizado pela Comissão de juristas presidida por Ada Pellegrini Grinover e constituída pelo Ministro da Justiça José Carlos Dias - Portaria n.° 61, de 20.01.2000 -, bem como confirmada pelo sucessor Ministro da Justiça José Gregori – Portaria n.° 371, de 11.05.2000 [136].
Após dez meses de trabalho de dita Comissão, com reuniões e a análise de projetos elaborados, em 1994, por comissão anterior, foram concluídos sete anteprojetos de lei, os quais, depois de revisados pelo Poder Executivo, resultaram em sete propostas legislativas encaminhadas, em 12 de março de 2001, pela Casa Civil da Presidência à Câmara dos Deputados. Dentre as propostas apresentadas, está o Projeto de Lei n.° 4.203/2001, que visa reformar o procedimento relativo ao Tribunal do Júri [137].
Quanto ao método de tópicos para a reforma do Código de Processo Penal, criticado por alguns doutrinadores [138], esclarece Ada Pellegrini Grinover:
A reforma total teria a seu favor a completa harmonia do novo sistema. Mas seria inexeqüível operacionalmente. A morosidade própria da tramitação legislativa dos códigos, a dificuldade prática de o Congresso Nacional aprovar um estatuto inteiramente novo (...), tudo milita contra a idéia de uma reforma global do Código de Processo Penal. [139]
Assim, a metodologia adotada pela Comissão foi visando aproveitar, tanto quanto possível, as normas em vigor, modificando somente aquelas necessárias à agilização e desburocratização do processo.
Rui Stoco, membro da Comissão Ada Pellegrini [140]e responsável pela proposta atinente ao Júri após a saída de René Ariel Dotti da Comissão, justifica a necessidade de modificações no Tribunal do Júri:
(...) os julgamentos no Tribunal do Júri são custosos, demorados e sem eficiência desejada, seja na sua organização, seja na seleção dos jurados, ou na demora das sessões e no equívoco dos resultados. Mantém-se, ainda, um procedimento extremamente formal e pouco garantista. [141]
Entre as inúmeras inovações introduzidas ao Júri pelo referido projeto de lei está o vértice da presente obra: "a nova redação do questionário". Uma das maiores razões alegadas para tal inovação é citada acima: "equívoco dos resultados". Como refere Rui Stoco: no sistema vigente, de cada quatro julgamentos dois são anulados por vícios do questionário ou por decisão contrária à prova dos autos, levando os Tribunais de Justiça a determinar sua renovação [142].
Esta sombria constatação de inúmeras nulidades nos julgamentos realizados no Tribunal do Júri, mormente por má formulação dos quesitos, tem sido a principal justificativa apontada por parte da doutrina para impor um novo sistema de redação e formulação do questionário. Nesse sentido é o entendimento de Luiz Flávio Gomes:
Uma das maiores fontes de nulidade hoje (no júri) reside na formulação dos quesitos, que apresenta moldura arcaica e complicada. A tese da legítima defesa, por exemplo, faz com que o juiz formule aos jurados nove quesitos. Indaga-se deles temas sobre os quais não existe consenso nem sequer na doutrina (a agressão era injusta?, era atual? Houve excesso?, o excesso foi doloso ou culposo?, etc.). (...) A descomplicação da quesitação é sumamente relevante e com isso muitas nulidades serão evitadas. [143]
3.1 Sistema de redação dos quesitos no Projeto de Lei n.° 4.203/2001
O questionário proposto no Projeto de Lei n.° 4.203/2001 é consideravelmente simplificado, fazendo com que sejam formulados apenas três quesitos "básicos" para obter-se a condenação ou a absolvição: 1) materialidade do fato; 2) autoria ou participação; 3) se o acusado deve ser absolvido ou condenado [144]. Se absolvido, estará encerrada a votação. No caso de condenação, poderá haver a necessidade de mais dois quesitos: 4) se existe causa de diminuição de pena; 5) se existe qualificadora ou causa de aumento de pena reconhecidas na pronúncia. As agravantes e atenuantes cabem ao juiz reconhecer e não serão mais objeto de quesitação.
Quanto ao terceiro quesito – ponto crucial na reforma do questionário –, esclarece o Ministro José Gregori, nas exposições de motivos para o projeto: o terceiro quesito terá redação na própria lei (‘os jurados absolvem ou condenam o acusado?’) [145] e abrange todas as teses de defesa (...). (Grifo nosso). Ou seja, com dito quesito, elimina-se a necessidade de indagações sobre as teses defensivas sustentadas que isentem ou excluam o crime, às quais, atualmente, são quesitadas individualmente e de forma desmembradas.
Como se denota, a indagação imposta pelo terceiro quesito assemelha-se ao sistema inglês, em que os jurados respondem tão-somente se o acusado é culpado ou inocente (guilty or not guity). Há, na verdade, uma fusão dos sistemas inglês e francês, na medida em que se mantém o sistema de questionário – francês – mas se adere a este o questionamento único feito aos jurados no sistema inglês.
Assim dispõe o projeto de lei em comento, na seção XIII:
Art. 483. Os quesitos serão formulados na seguinte ordem, indagando sobre:
I - a materialidade do fato;
II - a autoria ou participação;
III - se o acusado deve ser absolvido ou condenado;
IV - se existe causa de diminuição de pena alegada pela defesa;
V - se existe circunstância qualificadora ou causa de aumento de pena, reconhecidas na pronúncia.
Cabe destacar que se a defesa sustentar a desclassificação do delito, a situação será outra, pois prevê o projeto que, neste caso, o quesito referente à tese desclassificatória deverá ser formulado após a confirmação da materialidade e autoria [146].
No tocante ao quarto e quinto quesitos (incisos IV e V), cabe expor a lição do jurista Walter Nunes da Silva Júnior, favorável ao projeto num todo:
(...) deveriam ter merecido redação mais técnica. Da forma como redigidos, deixam transparecer que o juiz, sempre e sempre, deverá formulá-los, conferindo, aos jurados, a tarefa de verificar se a defesa sustentou tese embasada em causa de diminuição, e se na pronúncia houve o reconhecimento de causa de aumento ou circunstância qualificadora. [147]
Além disso, observa-se que a interpretação doutrinária faz concluirmos que o projeto de lei em comento prevê um "único" quesito para a(s) causa(s) de diminuição de pena e um "único" quesito para a(s) qualificadora(s) e causa(s) de aumento reconhecida(s) na pronúncia. Assim é a noção dada por Rui Stoco, relator do anteprojeto do Júri:
Estabelecida a condenação com o terceiro quesito, serão formulados mais dois outros (...). Exceto o quesito alternativo a ser formulado na hipótese de desclassificação da infração para outra do juiz singular, além daqueles cinco quesitos acima apontados, nenhum outro poderá ser formulado pelo juiz presidente. [148] (Grifou-se).
Tal circunstância traz perplexidade ao presente estudo, pois, por exemplo, no caso de mais de uma qualificadora reconhecida na pronúncia, e tendo os jurados se convencido da existência de somente uma delas, não poderão votar pela ocorrência de uma e inocorrência da outra, separadamente.
Compete lembrar que Rui Stoco afirma que apenas as teses efetivamente defendidas pelas partes é que estarão subentendidas nas respostas aos quesitos, pois são eles que congregam tais teses [149]. Por essa leitura, tem-se que somente as qualificadoras e causas de aumento sustentadas pela acusação em plenário, bem como as causas de diminuição postuladas pela defesa, é que estarão subentendidas nas respostas ao quarto e quinto quesitos (art. 483, incisos IV e V, do Projeto de Lei 4.203/2001).
Enfim, o que se pretende com a nova redação dos quesitos é instituir um processo simplificador, que propicia condições para uma decisão do Conselho de Sentença. Nesse sentido, aduz Ibrahim Abi-Ackel, relator do Projeto de Lei n.º 4.203/2001, na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados: (...) questionário substancialmente modificado pelo projeto, que elimina a complexidade atual ao reduzi-lo a questões sobre matéria de fato, objetivas e simples [150]. De acordo com este argumento, determina o art. 482 do projeto de lei que o Conselho de Sentença "seja questionado sobre matéria de fato", vedando qualquer proposição jurídica.
Em suma, os motivos para a nova redação dos quesitos, segundo Rui Stoco, são: afastar grande fonte de nulidades, atender determinação constitucional de que os jurados julguem somente matéria de fato, simplificar o julgamento, e permitir segurança e garantia de um julgamento justo [151].
3.2 As críticas à simplificação do questionário
A resposta única do Conselho de Sentença à pergunta: "o jurado absolve ou condena o acusado?", abrangendo todas as teses defensivas, tem sido objeto de discussões na doutrina acerca de seus aspectos positivos e negativos, inclusive num confronto com alguns dos princípios constitucionais que norteiam o Júri (art. 5°, inciso XXXVIII, da CF).
Embora se justifique que a simplificação do questionário tornaria os julgamentos menos vulneráveis a nulidades, inúmeras são as objeções à proposta prevista no Projeto de Lei n.° 4.203/2001, especialmente por não apresentar alteração que facilite a apreciação, pelos jurados, dos temas expostos nos debates em plenário.
Como já referido, as alterações pretendidas no questionário têm como fonte inspiradora o Júri norte-americano (sistema inglês), o qual, aliás, é amplamente divulgado em filmes e livros como modelo de julgamento naquele país. Como nas palavras de Lenio Luiz Streck: há uma verdadeira – e equivocada – fascinação pelo sistema americano do ‘guilty or not guilty’ [152]. Todavia, em dita nação, o Júri não se esgota no guilty or not guilty, pois não se fala em quesitos. Ou seja, no Júri norte-americano, onde não há incomunicabilidade entre os jurados, estes podem – e devem – deliberarem entre si os detalhes e circunstâncias do fato, a prova colhida e etc., até concluírem por um veredicto unânime [153].
Sobre o tema, conquanto crítico ao atual sistema dos quesitos, bem observa James Tubenchlak:
O princípio do Guilty or Not Guilty? (Culpado ou inocente?) não se coaduna com os ditames constitucionais, no que concerne ao ‘sigilo das votações’ (...). Se fosse exigido, diante da proibição da Carta Magna à comunicabilidade dos Jurados, que estes se limitassem, somente, a considerar o réu culpado ou inocente, sem terem antes discutido entre si, e por completo, os termos da imputação, ver-se-ia ampliada de maneira invulgar a competência do Juiz togado, em havendo condenação. [154]
Acerca da acumulação das teses defensivas no terceiro quesito ("culpado ou inocente"), primorosa é a lição de Aramis Nassif, contrário a tal medida:
Existem figuras de direito penal que não podem ser apresentadas inteiras ao jurado para sua identificação. A legítima defesa, por exemplo, é composta de vários elementos; a existência da agressão, sua injustiça, a contemporaneidade dela com a reação, os meios empregados, sua necessidade e moderação. Se não apresentada de maneira decomposta, o jurado, certamente, não apreenderá conceitualmente o instituto (nem é sua função), do que derivariam, sem dúvidas, graves injustiças. [155]
Nota-se que da maneira atual de quesitação, sendo descompostos os elementos das excludentes de ilicitude ou da culpabilidade alegadas, ainda nos deparamos com alguns veredictos manifestamente contrários à prova dos autos. Então imaginem se os jurados não respondessem e refletissem, no "momento da votação", sobre os "detalhes" expostos durante os debates em plenário, os quais confirmam ou afastam os pressupostos da tese sustentada pela defesa: o número de decisões contra a evidência dos autos seria certamente maior.
Nesse sentido, Hermínio Porto leciona que a pergunta "absolve ou condena?" pode apresentar ao jurado, pela cumulação de soluções alternativas – implícitas na pergunta – o difícil encargo de, prontamente, decidir entre teses alternativas levantadas nos debates [156]. O jurado decidiria, assim, por impulso, diferente do que ocorre com a atual redação dos quesitos, onde a memória do jurado é provocada com questionamentos sobre circunstâncias do fato contidas nas teses de defesa e nas qualificadoras e causas de aumento sustentadas pela acusação.
Sobre este aspecto, trazemos, novamente, o magistério de Aramis Nassif:
O quesito, segmentando em sua função teleológica o comportamento do agente no fato, e da estrutura deste, faz com que o jurado ‘rememorize’ o detalhe pertinente, isolando-o na indagação, e decisivo para a conclusão decisória. Percebo (...) um verdadeiro impasse se persistir a vocação reformadora, pois, se mantidos a incomunicabilidade e o sigilo das votações (o que é inquestionável), ficará o jurado submetido ao raciocínio genérico(...). Não responderá com apego à verdade que apreendeu, já que ela se encontra no que lhe estão sonegando indagar: no detalhe. [157] (Grifo nosso).
Uma outra crítica à simplificação do questionário, num confronto com o princípio da ampla defesa, consiste na impossibilidade ou dificuldade que esse método de formulação dos quesitos impõe para a interposição de recurso de apelação, uma vez que não se conheceria a tese defensiva acolhida ou afastada pelos jurados. Ou seja, sem a quesitação detalhada das teses defensivas, não saberíamos os pontos cruciais - "detalhes" – que resultaram na condenação ou absolvição do acusado.
Rui Stoco, ao responder tal crítica, alega que ela não tem procedência porque as teses sustentadas em plenário constarão obrigatoriamente na ata de julgamento [158]. René Ariel Dotti, primeiro relator do projeto de reforma do Júri, sustenta que: considerando-se que o juiz de fato não precisa motivar a sua decisão, desnecessário se torna saber se a absolvição resulta do reconhecimento de uma causa de exclusão do crime ou de isenção da pena [159].
Contudo, nos parece correta a crítica em comento. Assim é a lição de Ariosvaldo de Campos Pires, o qual afirma que, embora deva ser simplificado o questionário imposto ao Conselho de Sentença, saiu-se de um extremo e caiu-se em outro com o método sugerido no projeto. Em se tratando de defesas que veiculem mais de uma tese, não se saberia qual a adotada, inviabilizando a discussão do mérito em sede recursal [160].
O registro em ata das teses expostas em plenário, na hipótese de haver múltiplas teses sustentadas, não tem o condão de apontar qual a tese acolhida ou negada pelos jurados. Portanto, visível a ofensa ao princípio da ampla defesa, pois tolhido ao acusado o conhecimento dos pormenores que fizeram os jurados votarem pela sua condenação, dificultando, assim, o pleito recursal.
Guilherme de Souza Nucci, outra voz contrária ao novo questionário, entendendo que haveria afronta à soberania dos veredictos e à plenitude de defesa, afirma:
(...) como sugere o anteprojeto, ficaria o tribunal togado, ao analisar uma apelação, satisfeito com a singela resposta do Conselho de Sentença dizendo que o acusado não deve ser condenado? Se, atualmente, sabendo o motivo pelo qual os jurados desejaram absolver o réu (...), há decisões de 2° grau que invadem a soberania e reformam o veredicto unicamente porque não concordam com a tese acolhida, parece lógico que, sem saber a razão, ficará o réu absolvido mais sujeito à reforma da decisão do júri. Essa conduta (...) ofenderá não somente o princípio-garantia da soberania dos veredictos, mas também a plenitude de defesa (...). [161](Grifo nosso).
Para Nucci, a simplificação do questionário somente seria útil se a decisão do Conselho de Sentença fosse soberana, e não pudesse ser modificada pelo Tribunal de Justiça [162].
Lembra Hermínio Porto, ainda, que a fórmula simplificativa do questionário tornará impossível a identificação do excesso doloso ou culposo nas excludentes da ilicitude [163], ferindo assim, ao nosso ver, a plenitude de defesa do acusado, caso a defesa sustente o excesso punível.
Trazemos a lume outro fator relevante acerca do novo sistema de questionário proposto: a impossibilidade de se quesitar a tentativa, caso a defesa tenha alegado em plenário que o crime não foi consumado, como reconhecido na pronúncia, mas tentado. Sobre o tema, esclarece Rui Stoco:
(...) se a acusação imputou crime consumado e a defesa não alegou a tentativa no momento oportuno, ou seja, antes da pronúncia, evidente que, respondendo os jurados com a cédula ‘condeno’ no terceiro quesito, estarão condenando o acusado por crime consumado. (...) nem a acusação, nem a defesa poderão reviver em plenário a questão relativa à tentativa. [164]
Outro aspecto a ser lembrado é a simplificação dos quesitos frente à ação civil ex delicto. Sobre a matéria, o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), por ocasião da análise dos anteprojetos de reforma do CPP, concluiu com maestria:
(...) a simplificação dos quesitos importa em modificar o Código de Processo Penal no que diz respeito aos efeitos civis da sentença penal. ‘Em muitos casos de absolvição não será possível determinar a motivação dos jurados e há hipóteses em que a absolvição transitada em julgado produz efeitos na esfera civil e outras em que isso não ocorre. (...) a fórmula de elaboração dos quesitos não pode ser extraordinariamente sumária. [165]
Quanto à justificativa de que a simplificação dos quesitos é necessária para que os jurados julguem somente matéria de fato, cumpre expor a lição de Lenio Luiz Streck: (...) o que é ‘atenuante’? ‘E agressão injusta’? ‘Uso moderado dos meios’? Afinal, qual a fronteira entre o que seja matéria de fato e o que seja matéria de direito, no âmbito do júri? [166] Se pretende destacar com tal magistério que a afirmação de que os jurados julgam somente matéria fática é "falsa e equivocada", como já referido pela doutrina de José Frederico Marques [167].
Por derradeiro, reafirmando a manutenção da atual sistemática do questionário, vale expor que, em pesquisa feita com jurados do 3° Tribunal do Júri de São Paulo, citada por Guilherme de Souza Nucci, 82,08% responderam que não consideram o sistema de votação, na sala secreta, complexo demais. E que 81,19% afirmaram que entendem plenamente as teses e os argumentos apresentados pelas partes durante os debates, permitindo-lhes votar com consciência e de modo seguro [168].
3.3 Outros sistemas possíveis de julgamento
Tendo em vista a discussão acerca de uma reformulação do questionário, outros sistemas de votação surgiram como alternativas, em tese, mais eficazes que a proposta contida no Projeto de Lei n.° 4.203/2001.
Uma das opções sugeridas pelos doutrinadores, em consonância com o antigo Projeto de Lei n.° 1.655/83 – proibia o desdobramento dos quesitos de defesa [169] – prevê que as teses defensivas devem ser quesitadas individualmente, mas sem desdobramentos, afastando assim, o controvertido quesito "absolve ou condena".
Essa foi a sugestão do grupo de estudiosos do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, em análise ao Projeto de Lei n.° 4.203/2001:
A melhor forma possivelmente combina o propósito de simplificar os quesitos que orientou a Comissão, com a de ao menos preservar a nomeação das teses de defesa, evitando a simples indagação sobre se os jurados absolvem ou condenam. (...) Sugere-se, assim, a inserção do dever de o juiz presidente formular quesitos indagando ao menos de modo genérico a respeito de cada tese de defesa. [170]
No mesmo caminho, ainda que em análise ao antigo projeto de 1983, foi o entendimento da Comissão constituída no âmbito do Ministério Público do Rio Grande do Sul [171], estipulando que para cada tese defensiva corresponderia um quesito específico a ser votado, segundo a ordem de prejudicialidade. Seguindo esta linha, por exemplo, caso a tese alegada fosse de legítima defesa, esta seria questionada ao jurado com a seguinte redação: "o réu, ao eliminar a vida vítima, defendeu-se de agressão a sua pessoa?" [172].
Ressalte-se que a proposta inicial de reforma, sustentada por René Ariel Dotti, relator do anteprojeto do Júri, sugeria que as causas de isenção de pena ou de exclusão do crime alegadas deveriam ser esclarecidas aos jurados antes de responder ao quesito "absolve ou condena?". Todavia, tal proposta foi afastada durante os trabalhos da Comissão [173]. Tal medida ventilada, embora não alcançasse a hipótese sugerida pelo IBCCrim, já estaria impondo alguma melhoria ao projeto de lei de 2001.
Uma outra sugestão de sistemática do questionário foi elaborada pela Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (CONAMP), por ocasião do exame ao Projeto de Lei n.° 4.203/2001. Tal sugestão, que teve entre os idealizadores o Promotor de Justiça gaúcho José Fernando Gonzalez, traz o seguinte texto normativo:
Art. 482. Os quesitos serão formulados com observância das seguintes regras:
I – o primeiro indagará se "o júri considera o réu culpado?";
II – o segundo versará sobre causa de diminuição de pena, quando alegada pela defesa ou quando resultar de exame pericial;
III – o terceiro indagará sobre as formas qualificadoras do delito, ou causas de aumento de pena, desde que acolhidas na pronúncia.
(...) § 4°. Quando mais de uma circunstancia qualificadora tiver sido acolhida na pronúncia, será formulado quesito específico sobre cada uma delas, adotando-se idêntico procedimento quando a defesa sustentar mais de uma causa de diminuição de pena.
Esclarece a CONAMP que o primeiro quesito englobaria materialidade e autoria, assim como toda a matéria de antijuridicidade e os elementos da culpabilidade, à exceção da inimputabilidade. Desse modo, impõe-se com tal sistema uma hipótese ainda mais simplificativa dos quesitos que a do Projeto de Lei n.° 4.203/2001, o que nos parece inadequado.
Ressalte-se que ponto esclarecedor no sistema proposto pela CONAMP está no § 4° do art. 482, dispositivo que traria alguma melhora ao projeto de lei de 2001, no tocante à quesitação das qualificadoras e causas de diminuição de pena.
De outra banda, há os que sustentem que o Brasil deveria adotar, rigorosamente, o sistema inglês (guilty or not guilty) nos julgamentos pelo Tribunal do Júri. Essa é a visão do jurista José Guido de Andrade [174], sob o argumento de que o sistema francês – de questionário – não tem funcionado satisfatoriamente em nosso país durante todos os anos em que foi utilizado, pois eterna fonte de nulidades.
Em consonância com o entendimento acima, foi proposto em 14 de maio de 2001, pelo Senador Carlos Patrocínio, o Projeto de Lei do Senado n.° 81/2001, que pretendia implantar, literalmente, o sistema inglês no Júri brasileiro, retirando a incomunicabilidade entre os jurados, impondo um único quesito (culpado ou inocente?), o veredicto unânime, e assim por diante. Contudo, tal projeto foi arquivado ao final da legislatura (20.12.2002).
Sem adentrar no mérito da constitucionalidade, tal projeto, embora desativado, traz à evidência a hipótese de transformar nosso Tribunal do Júri no Júri norte-americano, onde vigora a deliberação entre os jurados. No entanto, vale trazer a lição de Aramis Nassif, que reflete os principais motivos para crermos que o sistema brasileiro de julgamento (sistema de questionário) é superior ao sistema norte-americano:
(...) preservados o sigilo das votações e a incomunicabilidade dos jurados, evita-se a influência entre os julgadores de fato. (...) Poupa-se-lhe, inclusive, de sofrer a influência da lei do mais forte, da ditadura do intelectual, da submissão do tímido pelo extrovertido, da sedução e de tantas outras hipóteses opressivas possíveis de ocorrer sob o regime anglo-americano entre os indivíduos-jurados, enquanto debatem na sala especial. [175]
Desse modo, temos como totalmente descabida a hipótese de impor o sistema norte-americano de julgamento pelo Júri em nosso ordenamento jurídico, o que, aliás, seria novamente fruto da mencionada "fascinação equivocada" pelo Júri americano.