V – CONCLUSÕES
O fato de alguém retirar-se para dentro de casa ao avistar uma guarnição PM não constitui crime nem legitima a perseguição ou a prisão, menos ainda a busca nessa casa, por não ser suficientemente indicativo de algum crime em curso, a par de ser pouco crível, pois é de esperar que tais suspeitos tentem tomar distância do que possa incriminá-los.
Na apreciação dessa busca e apreensão tem-se o imperativo mandamental da inviolabilidade do domicílio.
Ensinou Ada Grinover, invocando Nuvolone, que a intromissão na esfera privada do indivíduo, a pretexto da realização do interesse público, torna-se cada vez mais penetrante e insidiosa, a ponto de ameaçar dissolvê-lo no anônimo e no coletivo, como qualquer produto de massa (GRINOVER, Ada P. Liberdades públicas e processo penal. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1982, p. 67).
No julgamento do REsp 1.574.681⁄RS, o ministro Rogério Cruz trouxe lições importantes.
“O crime de tráfico de drogas, por seu tipo plurinuclear, enseja diversas situações de flagrante que não devem ser confundidas. A título meramente exemplificativo, menciono o caso em que determinado indivíduo, surpreendido portando certa quantidade de drogas, empreende fuga para o interior de sua residência e, logo depois, é perseguido por policiais. Nesse caso, há evidente estado de flagrância que justifica a invasão de domicílio, haja vista que o simples guardar ou trazer consigo já configura o delito.
Todavia, nem sempre o agente traz consigo drogas ou age ostensivamente de modo a ser possível antever que sua conduta se insere em alguma das dezoito alternativas típicas que justificam o flagrante, com a mitigação de um direito fundamental. Nessas hipóteses, espera-se que a autoridade policial proceda a investigações preliminares que a levem a descobrir, v. g., que a residência de determinado indivíduo serve de depósito ou de comercialização de substâncias entorpecentes, de modo a autorizar o ingresso na casa, a qualquer hora do dia ou da noite, dada a natureza permanente do tráfico de drogas.
Há, ainda, hipóteses outras como a dos autos, em que o indivíduo, ao avistar o patrulhamento policial, empreende fuga até sua residência (por motivos desconhecidos) e, em razão disso, é perseguido por policiais, sem, contudo, haver um contexto fático do qual se possa concluir (ou, ao menos, ter-se fundada suspeita), que, no interior da residência, também ocorre uma conduta criminosa, o que torna a questão da legitimidade da atuação policial, ao invadir o domicílio, extremamente controversa.
Importante aspecto a enfatizar, de natureza sociológica, não passou despercebido por magistrados do Supremo Tribunal Federal, que não deixaram de anotar praxe policial não de todo rara em abordagens feitas a pessoas moradoras de comunidades em situação de maior vulnerabilidade sócia que são especialmente suscetíveis de serem vítimas de ingerências arbitrárias e abusivas em domicílios" (voto do Ministro Gilmar Mendes no RE n. 603.616⁄RO). Tal percepção recomendaria a necessidade de se colocar alguma limitação para o ingresso na residência ou alguma responsabilização para os agentes estatais, porquanto" sabemos como as coisas acontecem na vida real", ou seja," a Polícia invade, arrebenta, sobretudo, com casas mais humildes, e depois dá uma justificação qualquer, a posteriori, de forma oral, na delegacia de polícia" (voto do Ministro Ricardo Lewandowski p. 29 do referido acórdão).
Com igual ênfase se posicionou, nesse julgado, o Ministro Marco Aurélio, ao provocar a seguinte reflexão: O próprio juiz só pode determinar a busca e apreensão durante o dia, mas o policial, então, pode, a partir de capacidade intuitiva, a partir de uma indicação, ao invés de recorrer à autoridade judiciária, simplesmente arrombar a casa, entrar na casa e, então, fazer busca e apreensão e verificar se há, ou não, o tóxico? Creio que estaremos esvaziando a garantia constitucional prevista no inciso XI do artigo 5º da Carta (p. 31 do acórdão).
De fato, a complexa e sofrida realidade social brasileira ineludivelmente sujeita, amiúde, as forças policiais a situações de risco e à necessidade de tomada urgente de decisões no desempenho de suas relevantes funções, o que há de ser considerado quando, no conforto de nossos gabinetes, realizamos os juízes o controle posterior das ações policiais. Mas, não se há de desconsiderar, por outra ótica, que ocasionalmente a ação policial submete pessoas que vivem em condições sociais desfavoráveis a situações abusivas e arbitrárias.
Em verdade, se, de um lado, a dinâmica e a sofisticação do crime organizado exigem uma postura mais efetiva do Estado, a coletividade, sobretudo a integrada por segmentos das camadas sociais mais precárias economicamente, também precisa, a seu turno, sentir-se segura e ver assegurada a preservação de seus mínimos direitos e garantias constitucionais, em especial o de não ter a residência invadida, a qualquer hora do dia, por agentes das forças policiais, sob a única justificativa, extraída de apreciações pessoais dos invasores, de que o local supostamente é um ponto de tráfico de drogas, ou que o suspeito do tráfico ali possui droga armazenada.
Não se desconhece que, consoante afirmou o Ministro Gilmar Mendes, por ocasião do julgamento do referido RE n. 603.616⁄RO,"A busca e apreensão domiciliar é uma medida invasiva, mas de grande valia para a repressão à prática de crimes e para a investigação criminal"(p. 10 do acórdão). Também não perco de vista que, não raro, é tênue a distinção dos limites circunstanciais entre a legitimidade da ação de ingresso e a afetação do direito à inviolabilidade de domicílio.
No entanto, é de particular importância (re) pensar em que medida o ingresso na esfera domiciliar para apreensão de drogas em determinadas circunstâncias representa uma intervenção restritiva legítima do ponto de vista constitucional e não uma violação do direito fundamental à inviolabilidade de domicílio. Isso porque a ausência de justificativas e de elementos seguros a autorizar a ação dos agentes públicos, diante da discricionariedade policial na identificação de situações suspeitas relativamente à ocorrência de tráfico de drogas, pode acabar esvaziando o próprio direito à privacidade e à inviolabilidade de sua condição fundamental.”
A prova colhida sem observância da garantia da inviolabilidade do domicílio é ilícita, não necessariamente porque ausente mandado de busca e apreensão, mas sim, porque ausentes, no momento da diligência, mínimos elementos indiciários da ocorrência do delito cujo estado flagrancial se protrai no tempo em face da natureza permanente e, assim, autoriza o ingresso na residência sem que se fale em ilicitude das provas obtidas ou em violação de domicilio. Acresce que, sendo o perigo na demora vetor decisivo para que o flagrante autorize a entrada no domicílio, nos crimes permanentes a intensidade desta razão diminui, já que, em tese, viável socorrer-se de mandado judicial , diferente da intervenção para evitar-se a consumação de um delito instantâneo, como um homicídio. (SARLET, Info W. Posição do Supremo sobre violação de domicílio é prudencial . Disponível em http:⁄⁄www.conjur.com.br⁄2015-dez-04⁄direitos-fundamentais-posicao-supre mo-violacao-domicilio-prudencial )
Em síntese, a entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori que indiquem que, dentro da casa, ocorre situação de flagrante delito, sob pena disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade dos atos praticados.
Para isso, exortou o ministro Gilmar Mendes, no julgamento do RE 603.616:
“Ao respeitar a literalidade do texto constitucional, que simplesmente admite o ingresso forçado em caso de flagrante delito, contraditoriamente estamos fragilizando o núcleo essencial dessa garantia. Precisamos evoluir, estabelecendo uma interpretação que afirme a garantia da inviolabilidade da casa e, por outro lado, proteja os agentes da segurança pública, oferecendo orientação mais segura sobre suas formas de atuação.”