Segundo divulgado pelo Estadão, em 15 de outubro do corrente ano, os elogios ao presidente Jair Bolsonaro durante o jogo, entre Brasil e Peru, transmitido na terça-feira pela TV Brasil, podem configurar crime de responsabilidade ou improbidade administrativa por parte dos gestores da emissora estatal. Para especialistas ouvidos pelo Estadão/broadcast, os agrados na transmissão afrontam o princípio da impessoalidade previsto na Constituição.
O narrador da partida, André Marques, mandou “abraço especial” para Bolsonaro nos dois tempos da partida. No intervalo, houve repercussão da sanção do projeto que mudou as regras da Carteira Nacional de Habilitação (CNH) e da audiência pública na qual o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, disse no Senado que o governo é responsável por apenas 6% da área do Pantanal. No segundo tempo, o narrador voltou a fazer uma saudação ao governo e leu uma nota de agradecimento à Confederação Brasileira de Futebol (CBF), em nome do secretário executivo do Ministério das Comunicações, Fábio Wajngarten.
A emissora em tela deverá fazer a publicidade oficial dos atos do governo que deve ter caráter educativo, informativo e social.
Lembro, outrossim, que ‘a Mediapro comprou os direitos dos jogos da seleção peruana em casa e também de outras equipes sul-americanas, como revelou a Veja, em 14 de outubro de 2020, em seu site. Segundo ainda aquele órgão de informação, “a Globo tentou chegar a um acordo para poder exibir as partidas na TV aberta e no canal por assinatura SporTV, mas não quis pagar os 20 milhões de dólares (110 milhões de reais) exigidos pela Mediapro.”
Mas a partida de futebol foi transmitida por uma emissora estatal.
Não se admite que uma emissora pública faça publicidade favorável ao chefe do Poder Executivo.
Se o fizer, poderá haver ofensa ao princípio da impessoalidade.
Há de se observar uma necessária separação entre o público e o privado, de sorte a que não se afronte ao princípio da impessoalidade.
Para Maria Sylvia Zanella Di Pietro (Direito administrativo. 27. ed. São Paulo: Atlas, 2014), o princípio da impessoalidade tem desdobramento em dois prismas, o primeiro com relação a igualdade de atuação em face dos administrados, por meio da qual busca-se a satisfação do interesse público; o segundo com referência a própria Administração, de modo que os atos não são atribuídos aos seus agentes, mas ao órgão responsável, não cabendo àqueles promoção pessoal mediante publicidade de atos, programas, obras, serviços e campanhas dos órgãos públicos, assim destaca-se:
¨[...] Exigir impessoalidade da Administração tanto pode significar que esse atributo deve ser observado em relação aos administrados como à própria Administração. No primeiro sentido, o princípio estaria relacionado com a finalidade pública que deve nortear toda a atividade administrativa. Significa que a Administração não pode atuar com vistas a prejudicar ou beneficiar pessoas determinadas, uma vez que é sempre o interesse público que tem que nortear o seu comportamento. [...] No segundo sentido, o princípio significa, segundo José Afonso da Silva (2003:647), baseado na lição de Gordillo que “os atos e provimentos administrativos são imputáveis não ao funcionário que os pratica, mas ao órgão ou entidade administrativa da Administração Pública, de sorte que ele é o autor institucional do ato. Ele é apenas o órgão que formalmente manifesta a vontade estatal”. Acrescenta o autor que, em consequência “as realizações governamentais não são do funcionário ou autoridade, mas da entidade pública em nome de quem as produzira. A própria Constituição dá uma consequência expressa a essa regra, quando, no § 1º do artigo 37, proíbe que conste nome, símbolo ou imagens que caracterizem promoção pessoal de autoridade ou servidores públicos em publicidade de atos programas, obras, serviços e campanhas dos órgãos públicos”.
Pelo princípio da impessoalidade há a ideia de que a Administração tem que tratar a todos os administrados sem discriminações, benéficas ou detrimentosas. Sem dúvida, há afronta a esse princípio da impessoalidade, se o ato tem o liame da concretude em afronta à generalidade própria de uma medida legal.
Como explicitou José Afonso da Silva(Curso de direito constitucional, 5ª edição, pág. 562) o principio ou regra da impessoalidade da Administração Pública significa que os atos e provimentos administrativos são imputáveis não ao funcionário que os pratica, mas ao órgão ou entidade administrativa em nome do qual age o funcionário que expediu o ato.
Tem-se que a personalização, ou seja, a individualização do funcionário, pode ser recomendável, quando atue não como expressão da vontade do Estado, mas como expressão de veleidade, capricho ou arbitrariedade pessoal.
O princípio da impessoalidade veda, portanto, atos e decisões administrativas motivadas por represálias, favorecimentos, vínculos de amizade, nepotismo, dentre outro sentimentos pessoais desvinculados dos fins coletivos.
O princípio da impessoalidade, que se insere dentro dos limites do princípio republicano, busca trazer, para toda a sociedade, plena segurança jurídica em relação à administração pública, procurando sempre colocar em primeiro lugar o interesse público da população, tendo diversas garantias garantindo a igualdade e deixando impedido qualquer tipo de imparcialidade.
Lembro que a Administração deve abster-se de demonstrar simpatias, privilégios ou até mesmo aversões pessoais sobre determinados órgãos.
A Administração deve tratar a todos os administrados sem discriminações benéficas ou detrimentosas. Nem favoritismo, nem perseguições, como asseverou Celso Antônio Bandeira de Mello (Curso de direito administrativo, 17ª edição, pág. 104). Para ele, o principio em causa não é senão o próprio princípio da igualdade ou isonomia.
Para Cármen Lúcia Antunes Rocha (Princípios constitucionais da administração pública, 1994), há quatro possibilidades de vícios enquadráveis aqui: o nepotismo, o partidarismo, a pessoalidade administrativa na elaboração normativa e a promoção pessoal. Por sua vez, a parcialidade sistêmica se dirige às tendências do indivíduo, seja porque pertence a determinada classe social, trabalhar em determinado segmento.
O primeiro tipo de parcialidade, envolve a ampla defesa de interesses pessoais ou financeiros em benefício de terceiros.
A impessoalidade é agredida, muitas vezes, com a prática de nepotismo.
A promoção pessoal, por sua vez, é presente no artigo 37, parágrafo primeiro da Constituição de 1988.
Próximo a agressão ao princípio da impessoalidade está o desvio de finalidade.
O Supremo Tribunal Federal costuma ser bastante rigoroso na interpretação dessa vedação explicitada no §1º do art. 37 da Constituição Federal. Com efeito, entende a Corte Suprema que nenhuma espécie de vinculação entre propaganda oficial e a pessoa do titular do cargo público pode ser tolerada, nem mesmo quando se trata de utilização , na publicidade do governo, de elementos que permitam relacionar a mensagem veiculada com o partido político do administrador público ou de detentor de mandato eletivo. Ilustra enfaticamente tal posição do partido político do administrador público ou ocupante de cargos eletivos. Também não pode haver alusão ao partido político na publicidade sobre obras, serviços, feitos da administração pública.
Pelo princípio da impessoalidade há a ideia de que a Administração tem que tratar a todos os administrados sem discriminações, benéficas ou detrimentosas.
Repito, na íntegra, a lição de Miguel Seabra Fagundes (O controle dos atos administrativos, 2ª edição, pág. 89 e 90), assim disposta; “A atividade administrativa, sendo condicionada pela lei à obtenção de determinados resultados, não pode a Administração Pública dele se desviar, demandando resultados diversos dos visados pelo legislador. Os atos administrativos devem procurar as consequências que a lei teve em vista quando autorizou a sua prática, sob pena de nulidade.”
Prossegue o eminente administrativista, que tantas lições deixou entre nós, alertando que se a lei previu que o ato fosse praticado visando a certa finalidade, mas a autoridade o praticou de forma diversa, há um desvio de finalidade.
Se não existe a possibilidade de proteção ao interesse público, por medida que afronta ao princípio constitucional da impessoalidade, não há que falar em legitima defesa de um modelo voltado a atuação discricionária da Administração.
Será mister, em face do princípio da obrigatoriedade, que o Ministério Público Federal no Distrito Federal abra procedimento no sentido de saber se houve despesa do governo federal com a transmissão dessa partida, quais foram as tratativas para tal, e se houve afronta ao princípio da impessoalidade, à luz do que determina o artigo 37 da Constituição Federal.