4 Tentativa de Efetivação dos Direitos das Pessoas Portadoras de Deficiência Física
Observa-se que, apesar de tímida, a sociedade como um todo e, antes disso, as próprias pessoas em situação especial, iniciam um processo de conscientização da necessidade da proteção e do respeito aos direitos coletivos e difusos, num movimento chamado por Séguin (2002, p. 25) de "microdesvitimização, privilegiando a análise de situações específicas e individualizadas de vitimização, adotando comportamentos de ações afirmativas em prol das minorias e dos grupos vulneráveis".
Essa tomada de consciência crítica é de crucial importância, uma vez que através de uma observação rápida e superficial da infra-estrutura das cidades brasileiras, em especial, do Estado do Rio Grande do Sul, percebe-se que as conquistas legais não têm refletido na real situação urbana. O Poder Público não tem se mostrado solícito à efetivação de políticas públicas consistentes, de modo a atender as necessidades das pessoas portadoras de deficiência física.
Nesse sentido, não se pode obstar o exercício da cidadania de uma parcela considerável da população, bem como relativizar sua dignidade e independência, por tempo indefinido, até que a Administração, considerada em suas três esferas, se organize e desenvolva mecanismos que proporcionem o efetivo cumprimento das leis vigentes.
É por tudo isso que se propõe a utilização da via judicial para compelir o Poder Executivo a implementar as medidas necessárias, a fim de conferir agilidade à prestação estatal, e mais que isso, iniciar o processo de modernização e democratização das vias públicas e locais de acesso ao público, minimizando a dicotomia verificada entre a teoria e a realidade urbana de nosso país.
Afinal, Bobbio (1992, p. 67) já asseverava que:
Num discurso geral sobre os direitos do homem, deve-se ter a preocupação inicial de manter a distinção entre teoria e prática, ou melhor, deve-se ter em mente, antes de mais nada, que teoria e prática percorrem duas estradas diversas e a velocidades muito desiguais. Quero dizer que, nestes últimos anos falou-se e continua a se falar de direitos do homem, entre eruditos, filósofos, juristas, sociólogos e políticos, muito mais do que se conseguiu fazer até agora pra que eles sejam reconhecidos e protegidos efetivamente, ou seja, para transformar aspirações (nobres, mas vagas), exigências (justas, mas débeis), em direitos propriamente ditos (isto é, no sentido e que os juristas falam de "direito").
Nesse contexto, na seara dos direitos transindividuais, o Ministério Público, a União, os Estados, os Municípios e o Distrito Federal (quando o agente violador for particular ou órgão privado), bem como associações constituídas há mais de um ano, as autarquias, as empresas públicas, as fundações ou as sociedades de economia mista que incluam, entre suas finalidades institucionais, a proteção das pessoas portadoras de deficiência são legitimadas a propor ação civil pública com o intuito de cumprir o disposto na legislação (art. 3° da Lei n° 7.853/89).
Corrobora tal proposta a noção da indivisibilidade dos direitos humanos, conforme o explicitado por Soberón (1998, p. 20):
Nesse novo cenário, convém realçar dois aspectos essenciais para o avanço dos direitos humanos no mundo: o combate à impunidade e o reconhecimento do caráter indivisível daqueles direitos.
Quanto ao princípio de indivisibilidade, ele exprime em primeiro lugar o rechaço de uma hierarquização dos direitos humanos aliado ao reconhecimento da relação dialética entre as liberdades individuais e as condições indispensáveis a seu exercício.
Já se observa a propositura tímida de ações judiciais, visando ao alcance de tais objetivos, como se pode verificar no Resp. n° 37.162, oriundo do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, através do qual se propôs uma obrigação de fazer para a construção de obras de acesso dos deficientes físicos ao "metrô".
Por epílogo, cumpre tecer algumas considerações acerca da competência jurisdicional para o processo e julgamento das ações com o conteúdo invocado.
Destarte, a partir da Emenda Constitucional n° 45/2004 a competência para o processo e julgamento das causas relativas a direitos humanos é da Justiça Federal, a qual está prevista no art. 109, inciso V-A, observado o disposto no parágrafo 5° do mesmo artigo.
Mister frisar que as questões suscitadas constituem uma incipiente tentativa de colocar em prática um verdadeiro Estado Democrático de Direito, com ampla participação social, no qual a "democracia" se destaque como a realização de valores para a otimização da convivência humana.
5 Conclusão
Através do explanado não se teve a pretensão de solucionar todos os problemas enfrentados pelos portadores de deficiência física, os quais sofrem com a ignorância e descaso da população reputada "normal", do governo e, inclusive, dos próprios familiares, pois o "sentimento" de igualdade perante os demais transcende o âmbito jurídico.
Com efeito, afigura-se fato notório que o ideal de inserção, em que o indivíduo pudesse estar ativo e integrado no convívio social, independente das suas diferenças, revela-se uma utopia, devendo ser esta concebida no sentido de ser uma luta constante, uma idéia que se constrói pelo esforço de inúmeras pessoas, em todas as épocas.
Por outro lado, todo o exposto deve ser considerado como uma modesta apresentação da matéria, a qual pode ser utilizada como referencial teórico na fundamentação de ações judiciais, ou melhor, como um norteador de pesquisas nas principais fontes apresentadas, uma vez que há tratados, há previsão constitucional, há leis específicas sobre a matéria, os quais não se convertem em realidade.
Isso tudo com o escopo primordial de informar os diretamente implicados no assunto, muitas vezes leigos, esclarecendo-os acerca dos seus direitos, bem como apresentando a legislação existente, inclusive, mostrando a preocupação mundial sobre a questão da inserção do deficiente.
Para tanto, foram explanados os instrumentos existentes no âmbito internacional, bem como a legislação nacional pertinente à temática, de modo a viabilizarem-se meios de conferir conseqüências práticas úteis às pessoas com necessidades especiais, obstando as violações observadas cotidianamente.
Destarte, há o intuito de minimizar a revolta das pessoas em tal situação que não obstante ter de conviver com suas limitações físicas, sofrem, ainda, com as limitações ambientais impostas por construções mal projetadas. Por exemplo, o meio-fio das vias públicas, em geral, não apresenta rampas de acesso em bom estado de conservação para a passagem de cadeiras de rodas; os edifícios não possuem elevadores; não há locais específicos destinados ao estacionamento de deficientes nas áreas mais movimentadas dos centros urbanos; assim como, os meios de transporte coletivos não priorizam as pessoas com necessidades especiais.
Ademais, tais inadequações corroboram a formação dos pré-conceitos de um imaginário social deletério em relação ao portador de deficiência, considerado, na maioria das vezes, uma pessoa menos apta, menos capaz e, conseqüentemente, de menor "valor".
Gize-se que o ora tratado não está afeto a qualquer paternalismo ou assistencialismo estatal, apenas intenta-se a efetivação dos instrumentos já existentes para a concretização dos direitos inerentes à pessoa, em especial do portador de deficiência física, ainda segregado na sociedade.
Cumpre asseverar, por fim, que a legislação explanada não se encontra exaurida, porquanto se deve observar, inclusive, a legislação pertinente de cada estado, de cada município, a fim de examinar, minuciosamente, as peculiaridades atinentes a cada localidade.
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Notas
01
Extraída do periódico O Correio da Unesco (1981, p. 07).02
Disponível em:03
Disponível em:04
Disponível em:05
"A conferência Mundial sobre os direitos Humanos reafirma que todos os direitos humanos e liberdades fundamentais são universais e a sua observância inclui as pessoas com deficiência. Todas as pessoas nascem iguais e têm os mesmo direitos à vida e bem estar, à educação e ao trabalho, à vida autônoma e à participação ativa em todos os aspectos da sociedade. Qualquer discriminação direta ou outro tratamento discriminatório negativo de uma pessoa com deficiência constitui, por isso, uma violação dos seus direitos." (Disponível em:06
Sarlet (2005, p. 36) pondera que "a expressão ‘direitos humanos’ guardaria relação com os documentos de direito internacional, por referir-se àquelas posições jurídicas que se reconhecem ao ser humano como tal, independentemente de sua vinculação com determinada ordem constitucional, e que, portanto, aspiram à validade universal, para todos os povos e tempos, de tal sorte que revelam um inequívoco caráter supranacional (internacional)".07
"Todos os direitos humanos são universais, indivisíveis, interdependentes e inter-relacionados. A comunidade internacional deve tratar os direitos humanos de forma global, justa e eqüitativa, em pé de igualdade e com a mesma ênfase. Embora particularidades nacionais e regionais devam ser levadas em consideração, assim como diversos contextos históricos, culturais e religiosos, é dever dos Estados promover e proteger todos os direitos humanos e liberdades fundamentais, sejam quais forem seus sistemas políticos, econômicos e culturais." (Disponívelem08
Proclamada pela Resolução 217 A (III) da Assembléia Geral das Nações Unidas, de 10 de dezembro de 1948.09
Aprovada na IX Conferência Internacional Americana, em Bogotá, em abril de 1948.10
Adotado pela Resolução 2.200 A (XXI) da Assembléia Geral das Nações Unidas, de 16 de dezembro de 1966, e ratificado pelo Brasil em 24 de janeiro de 1992.11
Adotada e aberta à assinatura na Conferência Especializada Interamericana sobre Direitos Humanos, em San José de Costa Rica, em 22 de novembro de 1969. Ratificada pelo Brasil em 25 de setembro de 1992.12
Adotado e aberto à assinatura no XVIII Período Ordinário de Sessões da Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos – OEA -, em San Salvador, El Salvador, em 17 de novembro de 1988. Ratificado pelo Brasil em 21 de agosto de 1996.13
Aprovada pela Resolução 45/91 de 14/12/1990 pela Assembléia Geral da ONU. Foi aprovada pelo Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo n° 198 de 13/06/2001, e promulgado pelo Decreto Legislativo n° 3.956 de 08/10/2001, da Presidência da República.14
Ressalta-se que a norma internacional contida em um ato ou tratado do qual o Brasil seja signatário, por si só, não dispõe de qualquer vigência e eficácia no direito interno.15
Ainda não se teve notícia acerca dessa forma de incorporação. Ressalte-se que, antes da EC n° 45/2004, as normas previstas nos atos, tratados, convenções ou pactos internacionais ingressavam, indistintamente, como normas infraconstitucionais.16
A Lei n° 7.853/89 prevê a defesa dos interesses coletivos ou difusos dos portadores de deficiência física. Circunstância aferível na leitura da própria ementa da Lei, bem como estabelecida em seu artigo 3°.