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Eutanásia no cinema

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5. A Bela Que Dorme (Itália)

O filme A Bela Que Dorme (La Bella Addormentata, 2012, Itália) retrata algumas histórias fictícias que se desenrolam na Itália em meio a discussão da possível morte de Eluana Englaro, que está em coma há 17 anos.

São retratados três núcleos familiares, no primeiro nos deparamos com o Senador Uliano Beffardi e sua filha Maria, cuja relação está passando por uma crise desde a morte da sua esposa. A jovem marcada pela dor da morte da mãe, se torna defensora do movimento pró-vida e faz parte dos protestos contra a decisão de dar fim à vida de Eluana.

Beffardi, é chamado a Roma pelo partido, para votar a favor de uma lei estadual que tem como objetivo impedir os médicos de concretizarem a Decisão da Suprema Corte, mas acaba decidindo sair do partido por acreditar que nesses casos deve prevalecer a vontade do paciente. Em outra cena, nos é mostrado que ele foi o responsável pela antecipação da morte da esposa, ao entender que ela nunca iria se curar da doença fatal, ele atendeu ao pedido dela e desligou a máquina que a mantinha viva, mantendo a realização do gesto em segredo.

Enquanto Beffardi treina o discurso no qual confessaria a morte da esposa e diria ser a favor da decisão do pai de Eluana por não acreditar em preceitos religiosos, o parlamento noticia a morte de Eluana e ele acaba sendo dispensado da votação.

Ao reencontrar a filha Maria, ela diz que nunca o havia perdoado por achar que ele tinha sufocado a mãe, mas que finalmente podia compreender que tinha sido apenas um abraço, ele diz que renunciou ao cargo e ela pede para ler o discurso que o pai faria.

No segundo núcleo, encontramos a família de Divina Madre, uma atriz de cinema famosa que abandonou a carreira pra cuidar da filha Rossa, que se encontra em estado vegetativo, a família passa por muitos conflitos familiares, principalmente por causa do filho Federico que não aceita o fato da mãe ter abandonado a carreira por causa da irmã, em um rompante de raiva, ele acaba retirando a válvula que mantém a irmã respirando, mas o pai entra no quarto a tempo de impedir o ato, e pede que ele a coloque de volta.

No terceiro núcleo, temos uma mulher viciada em drogas que vive nas ruas e tenta se matar, mas é socorrida por um médico que decide ajudá-la, após a tentativa de suicídio, ela fica vários dias desacordada e ao acordar tenta se jogar da janela do Hospital, mas é novamente impedida pelo médico, ela diz que não deseja mais viver e pergunta se não tem liberdade para tirar a sua vida, ele responde que assim como ela tem liberdade para tirar a própria vida, ele tem liberdade para tentar evitar que isso ocorra.

5.1. Eutanásia no Código Penal Italiano

O Código Penal Italiano não prevê um delito específico para a prática da eutanásia, mas há a previsão do homicídio piedoso nos artigos 62, n.1 e 62, para os casos em que a pessoa comete o delito motivado por relevante valor moral e social:

62. Circunstâncias atenuantes comuns.

Quando não existam elementos constitutivos ou circunstâncias atenuantes especiais, os seguintes elementos atenuam a infração:

agir por razões de especial valor moral ou social;11 (CODICE PENALE, 1930).

No entanto, a eutanásia também pode ser considerada homicídio qualificado quando o método utilizado for o uso de substâncias tóxicas ou quando houver premeditação, conforme especificado no art.576, parágrafo 1º e 577, parágrafo 1º, nº 3 do CP:

576. Circunstâncias agravantes:

A pena de prisão perpétua é aplicada se o ato previsto no artigo anterior for praticado:

1. com a adesão de qualquer das circunstâncias indicadas no nº 2 do artigo 61;

577. Outras circunstâncias agravantes:

A pena de prisão perpétua é aplicável se for praticado o ato previsto no artigo 575:

3. com premeditação;12 (CODICE PENALE, 1930).

Para tentar compensar a omissão legislativa em relação ao tema, o legislador inseriu no artigo 579, o consentimento de assassinato, que embora seja tido como um crime menos grave de assassinato, é punido com multa e até 15 anos de prisão, para a aplicação deste artigo, é necessário que estejam preenchidas algumas circunstâncias, o agente deve ser maior de idade, plenamente capaz mentalmente e o consentimento não pode ter sido obtido por meio de violência:

579. Assassinato da pessoa que consentiu:

Quem causar a morte de uma pessoa, com o seu consentimento, será punido com pena de prisão de seis a quinze anos.

As circunstâncias agravantes referidas no artigo 61 não são aplicáveis.

As disposições relativas ao homicídio são aplicáveis se o ato for cometido:

1. contra uma pessoa com idade inferior a dezoito anos;

2. contra uma pessoa que esteja mentalmente doente ou em estado de deficiência mental, por conta de outra pessoa, doença ou abuso de álcool ou drogas;

3. contra uma pessoa cujo consentimento tenha sido obtido pelo perpetrador através de violência, ameaça ou sugestão, ou seja, por engano, roubado.13 (CODICE PENALE, 1930).

Mais adiante, o artigo 580 pune o agente que contribui no suicídio de outrem por meio da instigação ou do auxílio. Nesse caso, deve haver a intenção, não apenas o desejo de realizar o ato, mas também o desejo de obter os efeitos nocivos resultantes deste. Assim, apenas se aplica nos casos em que o suicídio realmente ocorre ou quando da tentativa resulta lesões graves. Nos casos em que a vítima sofre de alguma doença mental, a pena aplicada será a mesma do homicídio.

580. Instigação ou auxílio ao suicídio.

Qualquer pessoa que determine que outros cometam suicídio ou que reforce a intenção de outros de cometer suicídio, ou que o facilite de alguma forma

A execução, é punida, se o suicídio se concretizar, com pena de prisão de cinco a doze anos. Se o suicídio não ocorre, é punido com pena de prisão de um a cinco anos, desde que a tentativa de cometer suicídio resulte em uma lesão corporal grave ou muito grave.

As penalidades são aumentadas se a pessoa instigada ou motivada ou ajudada estiver em uma das seguintes condições nos números 1 e 2 do artigo anterior. No entanto, se a pessoa em questão tiver menos de 14 anos de idade ou, em qualquer caso, seja privado da capacidade de intenção ou vontade, são aplicáveis as disposições relativas ao homicídio.14 (CODICE PENALE, 1930).

A facilitação do suicídio também pode se dar por meio da omissão, prevista no art.40, que ocorre quando alguém que tem a obrigação legal de impedir o ato, não o faz, nesses casos o agente é punido como se o tivesse provocado.

A eutanásia passiva é permitida nos termos do art.32, parágrafo 2º da Constituição Italiana que prevê a possibilidade de o paciente rejeitar o tratamento médico e deixar a doença seguir o seu curso natural até levá-lo a morte:

Art. 32 A República tutela a saúde como direito fundamental do indivíduo e interesse da coletividade, e garante tratamentos gratuitos aos indigentes.

Ninguém pode ser obrigado a um determinado tratamento sanitário, salvo disposição de lei. A lei não pode, em hipótese alguma, violar os limites impostos pelo respeito à pessoa humana.15 (COSTITUZIONE, 1947).

5.2.Caso Eluana Englaro e Jurisprudência

Eluana Englaro foi uma jovem italiana que entrou em estado vegetativo em 18 de janeiro de 1992, por causa de um trauma irreversível ocorrido após um acidente de carro.

Em janeiro de 1994, foi comprovado pelos médicos que não havia possibilidade de recuperação da sua cognição, seu estado exigia total dependência em todas as funções corporais, devendo ser assistida por médicos e paramédicos, além de estar sempre ligada a um tubo nasogástrico para alimentação, o prognóstico negativo para a recuperação foi o que levou o seu pai Beppino Englaro a entrar com o processo de interdição para se tornar seu tutor.

Sob o argumento de que uma ano antes do acidente, Eluana havia manifestado o desejo de não ser reanimada em caso de acidente grave, em 18 de janeiro de 1999, Beppino Englaro, entrou nos termos do art. 732 do Código de Processo Civil16, com um pedido de permissão para interromper a alimentação e administração de todos os medicamentos que garantiam a vida “biológica” da filha, perante o Tribunal de Lecco, que rejeitou o pedido em 02 de março de 1999, nos termos do art. 579 do Código Penal, que dispõe sobre a indisponibilidade do direito à vida.

Inconformado com a decisão, Beppino apresentou recurso ao Tribunal de Apelação de Milão, argumentando que como tutor da filha tinha o direito de decidir sobre a continuidade ou não do tratamento médico ao qual estava submetida, conforme disposições dos artigos 357 e 424 do Código Civil Italiano:

Art. 357. O tutor cuida da pessoa da criança, representa-a em todos os atos civis e administra os seus bens.

Art.424 Proteção dos interditos e cuidados a prestar aos deficientes.

As disposições relativas à proteção dos menores e aos cuidados a prestar aos menores emancipados aplicam-se, respectivamente, à proteção das pessoas incapacitadas e aos cuidados a prestar às pessoas com deficiência.

As mesmas disposições são igualmente aplicáveis, respectivamente, nos casos de nomeação do tutor temporário do interdito e do tutor temporário da pessoa incapacitada nos termos do artigo 419. (CODICE CIVILE, 1942).

No entanto, em dezembro de 1999, o Tribunal rejeitou o Recurso sob o fundamento de que a autodeterminação e as diretivas antecipadas de vontade são fundamentais em casos como esse, e não havia meio inequívoco e rigoroso o suficiente para comprovar a existência destas no caso de Eluana.

Em abril de 2005, o recurso também foi negado pela Corte de Cassação Italiana, que fundamentou a negativa na prevalência do direito à vida sobre a autonomia da vontade presente no artigo 32 da Constituição, argumentando que não existe um “direito de morrer”, e que não havia como comprovar a clara e inequívoca vontade da paciente.

Em 2007, a Corte de Cassação Italiana autorizou um novo julgamento do pedido pela Corte de Apelação de Milão.

No novo julgamento, em 09 de julho de 2008, a Corte autorizou a suspensão da alimentação e hidratação artificiais nos termos do artigo 32 da Constituição Italiana, afirmando que tal ato não poderia ser considerado homicídio, mas apenas uma permissão para a doença seguir o seu curso natural.

Em novembro de 2008, a Corte de Cassação Italiana, julgou improcedente o recurso interposto pelo Ministério Público, por considerá-lo parte ilegítima, após isso, ocorreu o trânsito em julgado da decisão que autorizou a suspensão da alimentação e hidratação artificiais.

Eluana morreu em 09 de fevereiro de 2009, três dias após a suspensão total de sua alimentação, enquanto o Senado debatia um projeto de lei para proibir a eutanásia em casos como o dela.

5.3. Caso Fabiano Antoniani (DJ Fabo)

Fabo foi um DJ italiano17 que ficou tetraplégico e cego após um acidente em 2014, depois do ocorrido, ele passou a pedir que os deputados aprovassem a lei do fim da vida, que já tramitava há mais de um ano no Congresso, o apelo repercutiu entre a população italiana.

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No entanto, o pedido de Fabo não foi atendido a tempo e o DJ resolveu pedir o suicídio assistido na Suíça onde a prática é legalizada, para isso recebeu a ajuda do amigo e deputado, Marco Capatto, grande defensor da descriminalização da eutanásia na Itália.

No seu testamento, Fabo demonstrou indignação com o seu país e agradeceu a ajuda do amigo, também reforçou que os seus dias eram cheios de sofrimento e desespero e que não via mais sentido na vida.

Fabo foi submetido a duas entrevistas particulares com um médico em Zurique, seguindo o procedimento prescrito pela lei suíça, com o objetivo de verificar a eficácia, atualidade e liberdade da escolha do suicídio, e apenas com o resultado positivo dessa avaliação, o médico prescreveu a dose letal do medicamento, que foi colocado em uma seringa, cujo êmbolo foi conduzido por Fabo, pressionando um botão com a boca conectada a um equipamento especial. Esse procedimento, tornado mais complexo pelas condições de quase total imobilidade do paciente é feito para garantir que o suicídio não se transforme em uma forma de eutanásia ativa voluntária, ato proibido na lei Suíça, sua morte ocorreu em 27 de fevereiro de 2017.

5.4. Lei 219/2017 (Disposição Antecipada de Tratamento)

Com a repercussão da morte de Fabo, o Congresso Italiano aprovou em 14 de dezembro de 2017, a lei da Disposição Antecipada de Tratamento, que tem como escopo garantir que a autonomia do paciente prevaleça no fim da sua vida. A nova lei trouxe no artigo 2°, parágrafo 2º, a proibição de obstinação irracional nos cuidados e dignidade na fase final da vida, que consiste em permitir que o paciente desista de um tratamento considerado desnecessário ou desproporcional e o artigo 3° traz a possibilidade de recusa a sedação:

2. Nos casos de pacientes com mau prognóstico a curto prazo ou iminência de morte, o médico deve abster-se de qualquer obstinação irracional na administração dos cuidados e pelo recurso a tratamentos desnecessários ou desproporcionais.

Na presença de sofrimento refratário a tratamentos de saúde, o médico pode usar a sedação profunda paliativa contínua em associação com terapia de dor, com o consentimento do paciente.

3. O uso de sedação paliativa profunda contínua ou a recusa do mesmo são motivadas e são anotadas na pasta de registros clínicos e eletrônicos de saúde. (LEGGE 219/2017, 2017).

Para fazer a Disposição Antecipada de Tratamento, é necessário que o paciente seja civilmente capaz e esteja em pleno gozo de sua capacidade psíquica, esse documento permite que ele preveja as decisões que poderão ser tomadas no caso de futura incapacidade física e psíquica, nomeando um representante que poderá agir em seu nome, tanto o representante quanto o médico responsável pelo tratamento deverão respeitar a vontade do paciente, fazendo com que ela prevaleça.

5.5. Decisão do Tribunal Constitucional

O Deputado Marco Capatto que ajudou o DJ Fabo a viajar para a Suíça, se auto denunciou em Milão, por auxílio ao suicídio nos termos do artigo 580 do Código Penal, crime punível com até 12 anos de prisão.

Em maio de 2017, o Ministério Público pediu que a denúncia contra Cappato fosse rejeitada, porque de acordo com a declaração dos promotores, Cappato "ajudou o Dj Fabo a exercer seu direito à dignidade humana". Mas em abril o juiz responsável pelas investigações preliminares rejeitou o pedido.

As audiências que ocorreram a partir de 8 de novembro de 2017, testemunhas, como a mãe e a namorada de Fabiano foram ouvidas e Marco foi interrogado.

Em janeiro, o promotor público siciliano, pedindo a absolvição de Cappato, mostra na sala de aula os vídeos de Dj Fabo e diz: "Nós reconstruímos a dramática história de Fabiano. Conseguimos tocar a vida de Fabo a partir do momento do acidente da mesma maneira, com a mesma ausência de esperança e as mesmas deficiências físicas.” Em 14 de fevereiro de 2018, o Tribunal de Milão decidiu que os documentos do julgamento deveriam ser encaminhados ao Tribunal Constitucional para que pudesse proferir um julgamento da constitucionalidade da lei. Não houve absolvição ou condenação.

Em 26 de setembro deste ano, o Tribunal Constitucional Italiano julgou o caso e descriminalizou a eutanásia em casos específicos, quando o paciente sofra de uma doença incurável, esteja sendo mantido vivo por meio de tratamentos de suporte à vida, esteja passando por intenso sofrimento físico e psicológico e seja totalmente capaz de tomar decisões livres e conscientes.

A Corte determinou ainda que o Congresso crie uma lei sobre o tema abrindo portas para uma possível legislação própria para a prática no país.

5.6. Condutas retratadas no filme

No filme há três condutas que precisam ser analisadas do ponto de vista legal. A conduta de Federico ao retirar o aparelho utilizado para manter a irmã Rossa respirando, a conduta de Beffardi ao desligar as máquinas que mantinha a esposa viva e a conduta do médico que impede o suicídio da mulher que encontra.

A conduta de Federico, tentativa de eutanásia passiva ou ortotanásia, não é prevista no Código Penal, que só pune a eutanásia quando resulta a morte do paciente, não é possível falar em tentativa de homicídio, pois a atuação do agente não trouxe consequências para a vítima, pois a retirada do equipamento apenas teria como consequência a ortotanásia, que implica em deixar a doença seguir o seu curso natural, caso semelhante ao de Eluana Englaro.

A conduta de Beffardi, é prevista no art.579 do Código Penal italiano, que dispõe sobre o consentimento de assassinato, que ocorre quando a vítima pede ao sujeito que a mate, este crime é tratado como espécie menos grave de homicídio, punido com pena de prisão de seis a quinze anos.

Por fim, temos a conduta do médico que salvou uma mulher de duas tentativas de suicídio, caso não agisse para socorrê-la e impedir a morte, o médico poderia ser responsabilizado por omissão de socorro, crime previsto no art.593 do Código Penal, punido com até um ano de prisão e multa de 2.500 euros.

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Sobre a autora
Maria Thamyres de Souza Almeida

Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Instituto de Educação Superior de Brasília.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALMEIDA, Maria Thamyres Souza. Eutanásia no cinema. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6348, 17 nov. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/86404. Acesso em: 25 abr. 2024.

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