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Eutanásia no cinema

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8. Minissérie Justiça (Brasil)

O 4º episódio da minissérie Justiça (TV Globo, 2016, Brasil) retrata o acidente e eutanásia da bailarina Beatriz, que ficou tetraplégica após ser atropelada por um carro e ter a medula espinhal lesionada.

Beatriz era uma bailarina que estava estreando um espetáculo no teatro, e em um dia, na saída do espetáculo acaba sendo atropelada por um carro que não a socorre, o marido Maurício vê toda a cena e se desespera.

Ao acordar no Hospital, ela relata que não sente mais o corpo, Maurício diz que é por causa da cirurgia porque tem medo da sua reação ao descobrir que está tetraplégica. Ele vai até o médico e pergunta se a situação é definitiva, o médico responde que a lesão na medula espinhal é irreversível e que Beatriz ficará tetraplégica para o resto da vida.

Maurício conta a esposa que ela está tetraplégica, ela diz que só existe um jeito e que se não pode mais dançar, acabou, em seguida, pergunta se o marido entendeu, ele responde que sim, mas que não concorda, ela diz que não conseguirá viver sem o corpo, ambos choram.

Maurício resolve acolher o pedido da esposa e pega os remédios que serão utilizados com um amigo, em seguida vai até o Hospital para realizar o procedimento. Ao chegar, diz a Beatriz que jamais faria aquilo se fosse uma escolha dele, ela diz que entende e que sabe que a motivação dele é para atender o pedido dela, em seguida pede que ele comece a gravar seu depoimento com o intuito de inocentá-lo.

Meu nome é Beatriz Vieira, hoje é dia 28 de junho de 2009, eu pedi para o meu marido me matar, Maurício não é um assassino, a escolha foi minha. Eu admiro muito as pessoas que conseguem passar por isso e seguir em frente, mas eu já estou morta e não foi o acidente que me deixou assim, o acidente foi eu não ter morrido, não julguem meu marido. Ele está me salvando. (JUSTIÇA, 2016).

Ao final do depoimento, Maurício diz a ela que ainda dá tempo de desistir, mas ela responde que não há motivo para isso, em seguida, ele aplica a injeção letal e Beatriz agradece, Maurício diz que vai amá-la para sempre. Ao perceber que a esposa estava morta, Maurício sai correndo pelo Hospital enquanto chora e é amparado pelos seguranças.

Maurício é preso por homicídio, nos termos do art.121 do CP, os jornais noticiam a morte de Beatriz como eutanásia, narrando que o procedimento foi feito a pedido dela, ele é libertado da prisão em 2016.

8.1. Eutanásia no Código Penal Brasileiro

O legislador brasileiro optou por não classificar a eutanásia, então não há uma definição clara sobre a regulação ou não do tema no país, que até então é entendida como homicídio, que pode ser simples ou privilegiado de acordo com as circunstâncias do caso, ambos são previstos no art.121 e art.121, §1º do Código Penal:

Art. 121. Matar alguém:

Pena - reclusão, de seis a vinte anos.

Caso de diminuição de pena

§ 1º Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço. (CÓDIGO PENAL, 1940).

Por não haver uma definição clara, não é possível afirmar que a eutanásia seja apenas espécie de homicídio privilegiado, no entanto, a previsão do art.121,§1º parece ser a mais adequada para definimos como eutanásia, pois trata do homicídio por relevante valor moral ou social, que neste caso seria a piedade do agente com o sofrimento do paciente terminal que padece de grande sofrimento físico.

No mesmo diploma legal, temos a previsão do artigo 122 que proíbe a indução ou a prestação de auxílio ao suicídio:

Art. 122 - Induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou prestar-lhe auxílio para que o faça:

Pena - reclusão, de dois a seis anos, se o suicídio se consuma; ou reclusão, de um a três anos, se da tentativa de suicídio resulta lesão corporal de natureza grave. (CÓDIGO PENAL, 1940).

A eutanásia passiva também pode ser entendida como crime pela previsão do art.135, também do Código penal, que pune a omissão de socorro:

Art. 135 - Deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade pública:

Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa.

Parágrafo único - A pena é aumentada de metade, se da omissão resulta lesão corporal de natureza grave, e triplicada, se resulta a morte. (CÓDIGO PENAL, 1940).

A eutanásia no Brasil, ainda é objeto de grande discussão e está sujeita a várias interpretações onde a escolha da espécie normativa adequada só poderá ser feita de acordo com o caso concreto.

Aqueles que são contra a regulamentação da Eutanásia no Brasil, afirmam que a vida é um direito garantido pelo art.5º da CF/88 que tem aplicação erga omnes, atingindo a todos, e tornando ilícita qualquer conduta que tenda a aboli-la, além de ser o pré-requisito para se adquirir todos os demais direitos, sendo, portanto, um direito inviolável e irrenunciável.

Para os que defendem a prática, a eutanásia é um último ato de vontade do doente que não lhe pode ser negado, pois é verdadeira manifestação dos direitos individuais a autonomia, a liberdade de convicção e consciência, que também são previstos na Constituição.

8.2. Resoluções do Conselho Federal de Medicina

O Código de Ética Médica brasileiro aprovado pelo Conselho Federal de Medicina por meio da Resolução CFM n° 2.217, de 27 de setembro de 2018 e modificado pelas Resoluções CFM nº 2.222/2018 e 2.226/2019, aprovou a ortotanásia no capítulo I (princípios fundamentais), inciso XXII, e também, no parágrafo único do art.41, que possibilitam a descontinuidade dos tratamentos desnecessários para os casos de pacientes irreversíveis e terminais:

XXII - Nas situações clínicas irreversíveis e terminais, o médico evitará a realização de procedimentos diagnósticos e terapêuticos desnecessários e propiciará aos pacientes sob sua atenção todos os cuidados paliativos apropriados.

Art. 41. (...) Parágrafo único. Nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal. (CFM, 2018).

Por meio da Resolução nº 1995/2012, o Conselho Federal de Medicina estabeleceu as diretrizes antecipadas da vontade, que tem como objetivo respeitar a vontade pré-estabelecida do paciente que está impossibilitado, as diretrizes antecipadas são definidas no art. 1º como o “conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que estiver incapacitado de expressar livre e autonomamente sua vontade.” (CFM, 2012).

A resolução estabelece que a vontade do paciente ou do seu representante deve prevalecer sobre qualquer parecer não-médico e sobre a vontade de seus familiares, além disso, o médico deve anotar no prontuário qualquer diretriz antecipada que lhe tenha sido comunicada pessoalmente pelo paciente.

8.3. Eutanásia no Projeto de Lei nº 236/2012

O projeto de lei n° 236/2012 em tramitação no Congresso Nacional, tem como objetivo instituir um novo Código Penal, e propõe uma tipificação própria para a eutanásia no art.122, onde passa a ser considerada como espécie de crime menos grave, punindo com pena de prisão de dois a quatro anos, a morte motivada por piedade ou compaixão, após pedido da vítima em estado terminal, desde que esta seja plenamente capaz.

Art. 122. Matar, por piedade ou compaixão, paciente em estado terminal, imputável e maior, a seu pedido, para abreviar-lhe sofrimento físico insuportável em razão de doença grave:

Pena – prisão, de dois a quatro anos (PL n° 236/2012, 2012).

O projeto também propõe no §1º do art.122 o perdão judicial para o agente que praticar a eutanásia em alguém com quem tenha relação de parentesco ou relação íntima de afeto “o juiz deixará de aplicar a pena avaliando as circunstâncias do caso, bem como a relação de parentesco ou estreitos laços de afeição do agente com a vítima.”

A eutanásia passiva ou ortotanásia passa a ser válida e legal conforme disposição do §2º do art.122, de modo que, não há crime quando o paciente tiver o uso de tratamentos por meios artificiais interrompido em razão da irreversibilidade da doença, se a condição for atestada por dois médicos e houver concordância dos familiares ou cônjuge:

Parágrafo 2º - Não há crime quando o agente deixa de fazer uso de meios artificiais para manter a vida do paciente em caso de doença grave irreversível, e desde que essa circunstância esteja previamente atestada por dois médicos e haja consentimento do paciente, ou, na sua impossibilidade, de ascendente, descendente, cônjuge, companheiro ou irmão. (PL n° 236/2012, 2012).

O projeto de lei ainda está em fase de deliberação nas Comissões do Senado e não há previsão sobre uma possível discussão do tema no Plenário.

8.4. Conduta retratada na minissérie Justiça

A conduta de Maurício foi descrita como homicídio conforme disposição do art.121 do Código Penal, isso é o que se abstrai da cena que retrata a sua prisão. No entanto, sua conduta também poderia ser a do art.121, §1º que traz as hipóteses de homicídio privilegiado, sendo uma delas, o relevante valor moral e social.

Maurício matou a esposa movido pelo sentimento de amor e compaixão a ela, e demonstrou desde o início que não estava confortável com o crime, é nítido que o pedido de Beatriz teve grande influência na concretização de sua morte, pois, partiu dela a autoria psicológica do delito, e coube ao marido apenas a execução.

Assim, embora não seja hipótese de suicídio, porque a vítima não participou da execução direta do crime, a conduta do agente foi motivada por ela, logo, caberia a hipótese de homicídio privilegiado, já que a conduta foi realizada por relevante valor moral, a compaixão pela vítima.


Conclusões

O presente trabalho se propôs a analisar a eutanásia presente em obras cinematográficas dos EUA, Espanha, França, Itália, Bélgica, Suíça e Brasil, a partir das legislações de cada um desses países, permitindo a imersão em seus valores éticos, morais e culturais, de modo a entender o lugar que a eutanásia ocupa em cada um deles e como é vista pela sua sociedade.

Podemos concluir que é possível dividir os países apresentados em três blocos, o dos países que permitem a Eutanásia composto por Bélgica e Suíça; os que a consideram homicídio privilegiado composto por Brasil e Itália e os que a tratam como tipo penal próprio composto por França e Espanha. Nos EUA, a eutanásia ocupa o status de homicídio simples, mas a prática é permitida em alguns Estados, por isso não é possível encaixá-lo nos blocos.

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Os países que tratam a prática como homicídio privilegiado possui, pelo menos, uma característica em comum, a forte influência da religião cristã na sociedade e nos espaços de poder.

No Brasil a eutanásia é pouco discutida e ainda desconhecida pela maioria da população, parte dessa falta de informação deve-se a influência da religião que enfatiza a ideia de que apenas Deus pode tirar a vida, em razão disso quase não existem casos sobre o tema no direito brasileiro, o código penal italiano e brasileiro também são muito parecidos nesse quesito.

A Itália que sofre forte influência da própria sede da Igreja Católica, o Vaticano, também tem certa aversão ao tema, que só foi decidido em caso concreto 26 anos após o pai de Eluana Englaro ter ingressado no poder judiciário requerendo a ortotanásia para a filha e sofreu grande oposição a sua decisão principalmente por parte da Igreja Católica.

Aqui no Brasil, considerando o atual cenário é difícil vislumbrar uma discussão sobre o tema em alguma das casas do Congresso Nacional, pois grande parte dos políticos adotam o conservadorismo advindo das religiões católicas e evangélicas, que é uma vertente crescente no país, principalmente entre a população que se declara cristã.

Apesar disso, pode ser possível uma discussão sobre a ortotanásia e as diretrizes antecipadas da vontade, já que são práticas reguladas pelo Conselho Federal de Medicina, que precisam de uma legislação própria para que possam ser cumpridas efetivamente sem riscos de responsabilização penal para o médico e para a família.

A França e na Espanha, países que adotam um tipo penal próprio para a eutanásia são fronteiriços. Ambos tiveram casos de grande repercussão que fizeram com que o poder legislativo mudasse o tratamento dado ao tema, como a influência do caso Sampedro na criação da ley de muerte digna na Espanha e a influência do caso Chantal Sebiré e Vincent Lambert na França.

A aproximação da população com os casos de eutanásia nesses países, fizeram com que apoiassem a luta pela morte digna ainda que apenas nesses casos específicos, na França, as pessoas apoiavam a luta dos requerentes e desejavam que conseguissem a morte digna, isso demonstra a importância de conhecer os casos e o tema, pois só quando a sociedade conhece a eutanásia é capaz de opinar sobre ela.

Na Suíça e Bélgica, a eutanásia é legalizada. A Suíça deu a eutanásia o status de crime próprio e permite a prática apenas em casos de pacientes terminais que sofram de doenças incuráveis, essa restrição é importante pois respeita a autonomia do paciente terminal que pode optar por antecipar a morte dada como certa. O país traçou um modelo aceitável de eutanásia pautada efetivamente na dignidade da pessoa humana frente à doença incurável, no qual a vida mantém o seu valor como bem jurídico fundamental, sendo permitida a sua renúncia apenas para os casos em que não se é mais possível viver com dignidade.

No caso da Bélgica, a eutanásia é uma política pública destinada a toda a população desde que o requerente afirme estar passando por um sofrimento profundo. Este é um critério subjetivo amplo que pode acabar sendo utilizado por pessoas atraídas pela proposta de dar um fim ao seu sofrimento de forma digna. No entanto, não há critério para analisar a dimensão desse sofrimento, pois só a própria pessoa é capaz de determiná-lo.

Assim, tendo em vista que o todo processo ocorre de forma sigilosa, não é possível saber as reais motivações de alguém sem qualquer doença física incurável pedir a eutanásia. Pois, aos problemas físicos a ciência pode determinar um limite suportável, mas aos problemas psicológicos não.

Portanto, dar a eutanásia o status de política pública é potencialmente lesivo, ainda mais quando se estabelece um único critério para a sua escolha, uma política permissiva nesse sentido acaba por deixar em segundo plano o próprio direito à vida, valor fundamental do ser humano pelo qual exerce todos os demais direitos.

Parece precipitado fazer prevalecer a autonomia da vontade frente o direito à vida de forma tão ampla, quando a ansiedade e depressão, doenças que podem ser amenizadas por meio de tratamentos e acompanhamentos psiquiátricos e psicológicos estão em constante crescimento.

Por óbvio, não se pode atribuir as doenças psicológicas status de menos graves que as doenças físicas, mas a pessoa que se encontra sob esse espectro não é portadora de uma doença terminal e incurável, casos que justificam o pedido de eutanásia, em razão da morte próxima. Assim, a eutanásia não deveria ser permitida a pacientes com doenças psicológicas, pois pelo próprio estado de comprometimento da sua mente, não é capaz de opinar conscientemente e livremente sobre a sua escolha, a estas deve ser oferecido tratamento e não a morte. Pois, a eutanásia deve estar restrita apenas a casos muito específicos, como os de pacientes incuráveis e terminais em grande sofrimento físico.

No entanto, a discussão sobre a eutanásia é bastante ampla, e em razão de sua complexidade exige muitos debates, principalmente por ainda ser relativamente nova no mundo jurídico, já que as legislações sobre o tema são bem recentes.

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Sobre a autora
Maria Thamyres de Souza Almeida

Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Instituto de Educação Superior de Brasília.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALMEIDA, Maria Thamyres Souza. Eutanásia no cinema. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6348, 17 nov. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/86404. Acesso em: 18 mai. 2024.

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