7. FORMAS COMPOSITIVAS DOS CONFLITOS DE VIZINHANÇA
A Constituição Federal Brasileira (1988) estabeleceu, em seu art. 98, inciso I, a criação de Juizados Especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade.
Para estabelecer o procedimento judicial e a alçada respectiva, foi promulgada a Lei Federal n.º 9.099, de 26 de setembro de 1995, a qual tem como princípios basilares, a oralidade, a simplicidade, a informalidade, a economia processual e a celeridade, buscando, sempre que possível, a conciliação ou a transação judiciais. O objetivo é a resolução das questões de menor complexidade, em curto espaço de tempo, sem qualquer custo para as partes, considerando que determinadas formalidades inerentes ao processo judicial comum são dispensadas neste âmbito.
Requisito imprescindível para o aforamento de demandas perante o Juizado Especial Cível, é que o pedido formulado não ultrapasse a quantia de quarenta salários mínimos (art. 3.º, I), salvo a hipótese de ressarcimento por danos em prédio urbano ou rústico, que comportará pedido envolvendo qualquer valor (art. 3.º, II). O essencial, quanto a isso, é demonstrar que, nesse âmbito jurisdicional, trabalha-se exaustivamente com a consecução da conciliação ou da transação judicial, visando desarmar o ânimo dos contendores. Somente quando o poder de persuasão dos conciliadores ou do próprio Juiz togado falha, é que se resolve a lide mediante sentença prolatada em favor de um dos litigantes.
Mas a maioria das ações judiciais são propostas perante a justiça comum, onde a exagerada burocracia forense retarda a marcha processual, encarece os custos judiciais, onera a máquina judiciária e penaliza a parte que tem razão, dificultando a prestação da tutela jurisdicional em curto prazo, malferindo-se, por assim dizer, o princípio da razoável duração do processo.
Conquanto a realidade forense assim se apresente, nada impede que o Juiz tente, por todos os meios legais, obter a conciliação das partes, pois entre os poderes jurisdicionais sobreleva o de convocar, a qualquer tempo, os litigantes à sua presença com o escopo de aparar as arestas e o fim exclusivo de convencê-los a se conciliarem.
No direito de vizinhança, a mais usual das ações manejadas entre vizinhos busca a indenização de danos ocasionados por obras em suas proximidades. No entanto, isso não significa dizer que outras, como a ação de nunciação de obra de nova, aforada para impedir a continuação da construção, não seja também muitíssimo utilizada. São tantas as ações judiciais que daria para escrever um tratado. Cada uma tomando por fundamento, ora dispositivos do Código Civil, ora do Código de Processo Civil, assim como de leis especiais. Por isso é que dispensaremos aqui o estudo sobre esse rol extensivo para não tornar a pesquisa enfadonha e redundante.
Voltando os olhos para o Direito Argentino, lembramos que a Constitución de la Nación protege a propriedade em seu art. 41, e veda o uso abusivo pelo proprietário. O direito de ação é garantido, por sua vez, no art. 2.618. do Código Civil.
Um acórdão da Suprema Corte da Província de Buenos Aires asseverou que o art. 2.618. do Código Civil “confiere al juez amplias facultades, ya que puede disponer la cesación de las moléstias, la indemnización de los daños o ambas medidas al mismo tiempo, conforme a la magnitud de las moléstias, a la possibilidad de hacerlas cesar o al daño que causen, según las circunstancias del caso. Es decir, reparar el daño pretérito e impedir que se siga produciendo.”35
A doutrina argentina também adere a esse ponto de vista, conforme se observa do escólio de Nelson Cossari36:
El juez, al aplicar el art. 2618. del Cód. Civil, deberá escudriñar si el infractor se encuentra utilizando o no, su propriedad regularmente. Deberá tener en cuenta la directriz de la norma como pauta para aplicar la solución más adecuada al caso, por ejemplo, para elegir entre ordenar el cese de la actividad o disponer una indemnización, si resultare que aunque se exceda la normal tolerancia no existe abuso por estar justificado sobrepasar dicho limite por las exigencias de la producción y no existe outro modo posible, incluso económicamente posible, de realizar dicha actividad.
Nessa investigação processual, deve o juiz verificar diversos fatores de cunho social e ambiental, pois seria injusto, por exemplo, encerrar as atividades de uma indústria que já se encontrava instalada no local vinte anos antes de o vizinho queixoso aí chegar. Há de se considerar a atividade lícita que a indústria explora, a quantidade de pessoas que emprega ou de negócios que realiza, assim como a produção de bens de consumo e a geração de renda para a cidade e de ocupação lucrativa para outro tanto de trabalhadores. O regramento a ser utilizado, no caso argentino, está disciplinado nos arts. 1.071. e 2.618 do Código Civil de la Nación. No Brasil, essa circunstância está prevista no art. 1.278. do Código Civil.
A solução existente no direito civil brasileiro não diverge da encontrada pelo direito argentino. Por isso, algumas vezes, é resolvida indenizando-se o proprietário molestado; outras vezes, determinando-se que sejam cessados os atos que vêm causando prejuízos ao vizinho.
8. CONCLUSÃO
O ser humano sempre foi considerado como uma espécie singular, pois existe um grande abismo que o separa do resto do reino animal. Essa singularidade lhe confere a particularidade de escolhas resultante de seu livre arbítrio. Assim, o homem, ser gregário, por excelência, desde tempos imemoriais, vem se apropriando das coisas que a natureza disponibiliza para sua subsistência e suprimento de suas necessidades.
A natureza deu - e ainda dá - ao homem a oportunidade de comer os frutos que a terra produz e os animais silvestres que nela habitam; de consumir os peixes que os rios e os mares oferecem e de explorar uma série de outras atividades, assim como tornar-se proprietário de tudo que existe na terra.
No início, sem a noção precisa do termo propriedade, o homem apenas se apropriava do mínimo existencial para sua sobrevivência, como os instrumentos utilizados para a caça e para a pesca, visto que sua característica errante o obrigava a migrar periodicamente em busca de alimentos e de abrigo para o grupo.
Por isso mesmo, quando adquiriu a noção exata da palavra propriedade, passou a fixar-se sobre a terra, exercendo poderes de proprietário sobre a mesma, cuja característica, no início, era coletiva e inalienável, somente podendo ser transferida de geração em geração dentro do grupo familiar de proprietários. Em nossos dias, embora a propriedade imóvel possa pertencer a uma só pessoa, nem por isso perde a sua função social, assegurada na Carta Magna da maioria das nações do mundo.
Partindo da concepção divina da criação do mundo, a Igreja Católica reconhece na encíclica Rerum Novarum, de Leão XIII, com base em sua doutrina social, os direitos decorrentes da propriedade privada. Contudo, defende a observância de sua função social, a qual deve conferir oportunidade de trabalho e de crescimento humano para todos, considerando que os bens deste mundo estão originariamente destinados a todos, por influência do destino universal dos bens, conforme foi concebido por Deus.
A ocupação da terra pelo homem, no entanto, gerou - e continua gerando – vários conflitos, pois muitas vezes seu uso anormal causa incômodos intoleráveis ao vizinho, cuja solução desafia a intervenção permanente do poder judiciário para a composição do litígio.
Desse modo, na Roma antiga, a propriedade e o direito de vizinhança eram assuntos para ser discutido por jurisprudentes, que se esforçavam em incansáveis debates para encontrar uma solução plausível dentro da tradição do direito pretoriano, com os elementos da lógica e da filosofia, que sustentavam suas conclusões.
É sabido que, embora exista norma legal regulando o direito de vizinhança, tanto na Argentina, como no Brasil, a regra, por si só, não é capaz de evitar a ocorrência das hipóteses que enumera, porquanto o ser humano possui vocação para a desobediência e o cometimento de abusos. Daí porque, é necessário que a lei estabeleça regras para a vigência entre imóveis vizinhos, propiciando a boa convivência entre os seus proprietários e as restrições ao direito de construir, usar, gozar e abusar do direito de propriedade.
Em caso de transgressão de tais regras, compete ao proprietário ou ao possuidor da coisa, pleitear junto à autoridade competente o direito correspondente, a qual pode, como vimos durante este estudo, determinar que sejam cessados ou reduzidos os incômodos ocasionados pelo uso anormal ou irregular da propriedade, assim como a demolição e o pagamento de indenização cabal.
O objeto da tutela ao direito de vizinhança é, em última análise, a incolumidade do vizinho, sob todos os aspectos, especialmente no plano do direito material. Ao julgador compete decidir a querela com a mais completa prudência, cabendo ao postulante expor os fatos com clareza, exatidão e objetividade e apresentar as provas para a correta solução do impasse – Narra mihi factum, dabo tibi jus.
Constatada a hipótese de abusividade no uso da propriedade, deverá o julgador verificar se é imprescindível ou não, pois não sendo e não havendo interesse público a resguardar a situação existente, se estará diante de caso respeitante à tolerabilidade mediante indenização e redução da nocividade. Se, por acaso, a situação é de intolerabilidade, além do pagamento da indenização pelos danos ocorridos, a moléstia apresentada terá que ser reduzida aos limites da tolerabilidade.
Conseqüentemente, deve ser dito que sendo constatada a ocorrência de interesse público, o uso da coisa persistirá mediante o pagamento de indenização proporcional ao dano, com a redução máxima da nocividade.
Concluindo, pode-se dizer, que, na conformidade do disposto no art. 1.277. do Código Civil Brasileiro e do art. 2.618. do Código Civil Argentino, o conflito de vizinhança pode ser dirimido pelo Juiz de três maneiras, a saber:
comprovando que os incômodos são normais, e que não seria adequado privar o interferente da livre prática dos atos reclamados, o juiz mandará tolerá-los, atuando o direito de vizinhança, igualmente concedido a todos os proprietários, de terem as suas interferências toleradas pelos proprietários dos prédios vizinhos;
constatando o magistrado que os incômodos são intoleráveis pela anormalidade do uso da propriedade que lhes dá origem, investigará se a prevalência do interesse público justifica esse uso excepcional; em caso afirmativo, e se a ofensa à segurança, à saúde ou ao sossego provocada pelo imóvel vizinho não prejudica sua utilização, o Juiz conservará os incômodos inevitáveis e mandará que em favor do proprietário molestado se faça indenização justa;
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observando, contudo, que o interesse público não respalda o uso irregular da propriedade, por tratar-se de utilização abusiva da mesma, o julgador mandará reduzi-lo ou cessá-lo, determinando sua total eliminação, quando esta for possível.
É importante observar que, embora a demolição do prédio vizinho seja possível, tanto no ordenamento brasileiro, quanto no argentino, a pedido do proprietário ou do possuidor do prédio lindeiro, essa medida drástica somente deve ser deferida pelo Juiz quando ameace ruína. Atualmente, as decisões do judiciário têm sido orientadas no sentido de fixar valor indenizatório em favor do proprietário ou do possuidor do prédio afetado ou, de outro modo, de determinar a prestação de caução pelo dano iminente. A demolição fica postergada como ultima ratio.
Finalmente, ainda que por decisão judicial devam ser toleradas as interferências que prejudicam o uso regular da propriedade, poderá o vizinho exigir a sua redução, ou eliminação, quando estas se tornarem possíveis, nos precisos termos do art. 1.279. do Código Civil Brasileiro.
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