O cenário penal (material e processual) foi inovado com o advento da Lei nº 9.099, de 26.09.1995, a qual é responsável pela criação dos Juizados Especiais Criminais no âmbito das justiças estaduais.
A questão do novo tratamento dado aos delitos de menor lesividade [01], começando pela sua delimitação (conceituação) e ultimando com o procedimento, trouxe modernas tendências e críticas à concepção de justiça. Assim, é que parte da doutrina pugna pelo fracasso [02] da lei supracitada, outra pelo sucesso [02] e uma última corrente que prefere elencar novos preceitos visando uma melhoria dos JECrim´s [03].
Ora, crimes diferentes devem ser tratados de maneiras diferentes. Para os delitos hediondos, a Lei nº 8.072/90; para os delitos "comuns", o Código Penal, o Código de Processo Penal etc.; para os crimes de ínfimo potencial lesivo, a Lei 9.099/95...
Com as novidades introduzidas pela lei em comento (termo circunstanciado de ocorrência, audiência de tentativa de composição dos danos, transação penal etc.), pode-se afirmar que o legislador preocupou-se não só com a vítima [04] mas também com o infrator (autor do fato), uma vez que possibilitou a aceitação de um acordo (audiências preliminares) a fim de que não se submeta ao desgaste de um processo, evitando assim a reincidência e outras conseqüências.
Atualmente, questão muito interessante de se assinalar é a que se refere sobre a forma como cada concepção doutrinária aborda os JECrim´s, levando-se em conta sua adoção por um determinado modelo político-criminal [05].
Assim, por um mesmo ângulo é possível destacar aspectos diferentes sobre a temática, v.g., sob o enfoque do "direito penal mínimo" poder-se-ia afirmar que a Lei 9.099/95 trouxe medidas despenalizadoras e buscou a resolução do conflito entre as partes dando preferência ao ressarcimento do dano ou aplicação de medida não privativa de liberdade (preferência por penas restritivas de direito), ou, ainda sob o mesmo enfoque, poder-se-ia aduzir que, com o advento da mencionada Lei, elevou-se a intervenção estatal nos delitos de menor lesividade já que, antes da Lei, a suposta vítima não procurava tanto as delegacias (que agora de imediato, ou quase, aciona o judiciário) para noticiar tais ínfimos eventos, buscando até mesmo uma resolução extrajudicial ou, no máximo, judicialmente em ação reparatória na órbita civil.
Para Alexandre Wunderlich:
"[..] os Juizados Especiais Criminais passaram a dar conta de um tipo de delituosidade que não chegava até às Varas Judiciais, sendo resolvido através de processos informais de ‘mediação’ (ou ‘intimidação’) nas Delegacias de Polícia." (WUNDERLICH, 2005, p. 36)
Mas, questiona-se: será que os conflitos surgidos em conseqüência dos aludidos delitos eram mesmo resolvidos "através de processos informais de mediação"? Ou ainda: Seria correto adotar um sistema de ‘intimidação’ nas delegacias visando a mencionada resolução?
As respostas são simples: se nas delegacias obtinham-se resoluções por mediação, estes órgãos estavam realizando o que se faz hoje através dos Juizados, então se justifica a criação de destes, até por que são ‘especializados’ em ‘mediações’. Quanto à intimidação, tudo bem que ocorra (como ocorre) nas delegacias, mas não com objetivo de solucionar a questão "resolvendo o conflito de interesses" (essa é a função do judiciário), pois neste caso configuraria verdadeiro impedimento ao acesso do judiciário (resposta estatal) onde nem mesmo a lei poderia promover tal exclusão (art. 5º, inciso XXXV, da CF/88).
Para nós, o nascimento dos JECrim´s fez com que o direito pátrio desse "dois passos à frente": um para o direito material, outro para o processual. Além do mais, temas como a morosidade da justiça, a participação da vítima no processo penal, a ressocialização do infrator dentre outros pontos, sempre foram objeto de discussões pelos operadores do direito, materializando-se na Lei o que boa parte pugnava.
Ora, configura-se real avanço a Lei 9.099/95. É evidente que não pregamos aqui a celeridade procedimental [06] em detrimento da preservação de garantias, principalmente do acusado, e de uma justa apreciação da lide (seja na etapa da composição dos danos, da aceitação da proposta ofertada pelo MP ou na fase de julgamento).
Chies (2005, p. 196-210) elenca em sua obra algumas alterações na legislação com a precípua finalidade de os Juizados Especiais Criminais atingirem, ou pelo menos possibilitar uma chance maior de atingirem, os fins para os quais foram criados. Dentre tais alterações podemos citar: modificação do termo "pena" (art. 76 da Lei nº 9.099/95) para "obrigações de sanção sócio-reparatórias" (p. 197); "a necessidade de uma melhor delimitação legal do conteúdo dos Termos Circunstanciados" (p. 202) etc.
Sobre o modelo consensual de justiça, assim se manifesta Ada Pellegrini Grinover (2005, p. 49):
"É indiscutivelmente a via mais promissora da tão esperada desburocratização da Justiça criminal (grande parte do movimento forense criminal já foi reduzido), ao mesmo tempo em que permite a pronta resposta estatal ao delito, a imediata (se bem que na medida do possível) reparação dos danos à vítima, o fim das prescrições (essa não corre durante a suspensão), a ressocialização do autor dos fatos, sua não-reincidência, uma fenomenal economia de papéis, horas de trabalho etc."
Concordamos inteiramente com as palavras supracitadas, entretanto não dissertamos contra possíveis alterações na lei objeto deste trabalho; ao contrário, se é para melhorar, que venham as modificações.
O modelo consensual de Justiça penal no Brasil – e, diga-se de passagem, não há outro igual no mundo (cf. GRINOVER, 2005, p. 41) – é símbolo de uma real preocupação dos juristas por um adequado tratamento aos delitos de menor grau lesivo. Assim, em consonância com os critérios [07] dispostos no art. 2º da Lei 9.099/95 e os novos institutos, como por exemplo, a tentativa de composição dos danos, pode-se afirmar que o interesse das partes pela resolução do conflito (agora sob a égide de um procedimento sumaríssimo) foi resguardado e até mesmo elevado, principalmente quando comparamos com o que vinha ocorrendo diante dos procedimentos comuns ordinário e sumário.
Notas:
01 Com o advento da Lei nº 10.259/01 passou-se a entender que "delitos de menor potencial ofensivo" são aqueles cuja lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos, em que pese haver entendimento contrário: vide Martini (2002).
02 Nesse sentido: Coutinho (2005) e Wunderlich (2005).
03Vide Grinover et al. (2006).
04Vide Azevedo (2005) e Chies (2005).
05 "O estudo empírico do funcionamento dos Juizados Especiais Criminais revela que o fim do inquérito policial garantiu às vítimas o acesso ao judiciário, que antes lhes era negado". (AZEVEDO, 2005, p. 132)
06 Para Alexandre Wunderlich, "os movimentos radicais ressaltam a ‘impunidade’. Os movimentos de resistência garantista exaltam a aplicação de pena sem acusação formal e sem o devido processo legal e, ainda, outras violações às garantias constitucionais." (WUNDERLICH, 2005, p. 34)
07 Preferimos o termo "procedimento" para os Juizados Criminais por que assim englobamos tanto a fase preliminar (em que não há processo, mas sim um rito pré-processual) e a fase processual.
08 É comum chamarmos de princípios os critérios delineados no art. 2º da Lei 9.099/95, e talvez não esteja de todo errado, mas assim disciplina Ada Pellegrini et al: "Merece, contudo, ser realçado desde já que os critérios elencados no art. 2º, aplicáveis aos dois Juizados, não introduzem no sistema nova principiologia, como bem ressaltava Dinamarco [...]" (GRINOVER, 2005, p. 66)
Referências Bibliográficas
AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de. O paradigma emergente em seu labirinto: notas para o aperfeiçoamento dos Juizados Especiais Criminais. In: WUNDERLICH, Alexandre; CARVALHO, Salo (Orgs.). Novos diálogos sobre os Juizados Especiais Criminais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, p. 109-139, 2005.
BRASIL. Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995. Dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais e dá outras providências. In: EDITORA SARAIVA. Códigos Penal, Processo Penal e Constituição Federal. São Paulo: Saraiva, p. 676-686, 2005.
BRASIL. Lei nº 10.259, de 12 de julho de 2001. Dispõe sobre a instituição dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais no âmbito da Justiça Federal.. In: EDITORA SARAIVA. Códigos Penal, Processo Penal e Constituição Federal. São Paulo: Saraiva, p. 749-752, 2005.
CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2005.
CHIES, Luiz Antônio Bogo. Por uma utopia do possível! (pretensas contribuições a um projeto de reforma dos juizados especiais criminais). In: WUNDERLICH, Alexandre; CARVALHO, Salo (Orgs.). Novos diálogos sobre os Juizados Especiais Criminais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, p. 185-213, 2005.
COUTINHO, Jacinto Nélson de Miranda. Manifesto contra os juizados especiais criminais. In: WUNDERLICH, Alexandre; CARVALHO, Salo (Orgs.). Novos diálogos sobre os Juizados Especiais Criminais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, p. 3-14, 2005.
GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Juizados Especiais Criminais: comentários à Lei 9.099, de 26.09.1995. 5. ed. São Paulo: RT, 2005.
SILVA JÚNIOR, Edison Miguel da. Violência doméstica e Lei nº 9.099/95. Jus Navigandi, Teresina, a. 5, n. 51, out. 2001. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/2027>. Acesso em: 08 mai. 2006.
MARTINI, Paulo. A não aplicação da Lei nº 10.259/01 no âmbito estadual. Jus Navigandi, Teresina, a. 6, n. 56, abr. 2002. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/2892>. Acesso em: 08 mai. 2006.
WUNDERLICH, Alexandre. A vítima no processo penal (impressões sobre o fracasso da Lei nº 9.099/95). In: WUNDERLICH, Alexandre; CARVALHO, Salo (Orgs.). Novos diálogos sobre os Juizados Especiais Criminais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, p. 15-56, 2005.