A medida cautelar proferida pelo Ministro Luiz Fux em sede de ADI e a Lei 13.964/19.

Ainda há resquícios de um sistema inquisitivo em pleno século XXI?

11/11/2020 às 18:52

Resumo:


  • O Ministro Luiz Fux suspendeu a eficácia do artigo 3-A do Código de Processo Penal, que trazia a adoção do sistema acusatório em uma estrutura inquisitiva presente desde 1941.

  • A suspensão do artigo 3-A gerou debates sobre a constitucionalidade, visto que a Constituição Federal atribui ao Ministério Público a ação penal pública, promovendo o sistema acusatório.

  • A suspensão do artigo 3-A do CPP pelo Ministro Luiz Fux pode impactar a estrutura do processo penal, buscando consolidar o sistema acusatório e separação de funções entre juiz, Ministério Público e autoridade policial.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

É inegável falarmos que, ainda vivemos em uma era inquisitiva, mesmo havendo a adoção expressa pelo sistema acusatório na Carta Magna, garantindo ao Ministério Público, no artigo 129, inciso I da Constituição Federal,a promoção da ação penal pública.

O Ministro Luiz Fux, atualmente presidente do Pretório Excelso, em sede de Ação Direta de Inconstitucionalidade, suspendeu a eficácia de um dos artigos mais importantes do Código de Processo Penal, o artigo 3-A que, por vias óbvias, trouxe em sua forma literal, a adoção do sistema acusatório em uma estrutura inquisitiva presente desde 1941. 

Ao meu ver, me parece ser uma atitude contrária a Carta Magna, no qual a mesma, expressamente, elucida, demostra, expõe expressamente que incumbe ao Ministério Público “promover, privativamente, a ação penal pública”, prevista no artigo 129, inciso I da CF. Logo, como bem dito por Jacinto Coutinho. 

É inegável falarmos que o processual criminal ainda possui, em pleno século XXI, raízes de uma sistemática inquisitiva, na qual o juiz, infelizmente, possui a livre atuação e gestão probatória. Paulo Rangel¹, em sua obra, cita uma passagem de Aurélio na qual o mesmo relata que “inquisitivo é relativo ou que envolve inquisição, ou seja, antigo tribunal eclesiástico instituído com o fim de investigar e punir crime contra fé católica”. 

Em conformidade a isso, é necessário mencionar que, a existência de certos trechos presentes na estrutura do Código de 1941 pode causar estranheza, haja vista que é aprendido na faculdade que a investigação preliminar é uma fase que antecede a pretensão acusatória e que, após o exercício da ação penal e o seu recebimento, seja ela por meio de uma denúncia, queixa-crime ou uma ação penal privada subsidiária da pública, o processo criminal é deflagrado e o magistrado passa a atuar. 

Contudo, desde as primeiras aulas, o seu professor, a depender da corrente que adote, lhe disse que a Constituição Federal de 1988 adotou, expressamente, o sistema acusatório. Nada obstante, todas essas afirmações encontram-se verdadeiras, mas incompletas. Pois, é só observarmos certos trechos do Código de Processo Penal para chegarmos à conclusão que, a divisão de funções, acusar e julgar, é insuficiente para a materializar o sistema acusatório.  Pois, de nada adianta ter a (des)aglutinação de funções, se o juiz da instrução ainda pode “ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas considerada urgentes e relevantes”, passagem está prevista no artigo 156 do CPP, permitindo que o magistrado atue, de ofício, na fase investigativa.  

Ademais, ainda tratando sobre a investigação preliminar, outro cenário não poderia deixar de ser dito, que é a conclusão do inquérito policial. Na sistemática “anterior”, ainda atual pela suspensão da eficácia proferida pelo Ministro Luiz Fux, a autoridade policial elaborava o relatório - peça descrevendo todas as diligências feitas e os elementos de informações obtidos - e tinha como destinatário o juiz competente, como bem demonstra o artigo 10, §1 do CPP, quando traz em sua literalidade o termo “enviará autos ao juízo competente”. É dizer, o juiz da instrução atua, devido a suspensão dos artigos 3-A ao 3-F do CPP, como “ponte” entre a autoridade policial e o Ministério Público, permanecendo com o inquérito policial até que o órgão ministerial, titular da ação penal e destinatário da investigação realizada, tome como base o inquérito policial para o oferecimento da denúncia, acompanhando-o, como cita o artigo 12° do CPP.  

Assim, mostra-se inegável que, o juiz não mais deve atuar entre a autoridade policial e o Ministério público, titular da ação penal e destinatário da investigação realizada, pois tal cenário abre margem e pactuar com a possibilidade do juiz da instrução, o mesmo que posteriormente a denúncia irá julgar, ter conhecido do inquérito e se contaminado, (in)conscientemente, como bem demonstrado por Aury Lopes Jr. E Alexandre de Morais da Rosa, no artigo “Contaminação (in)consciente do julgador e a exclusão física do inquérito”. ³ Por fim, na visão da 5° turma do Superior Tribunal de Justiça, “não é ilegal a portaria editada por Juiz Federal que, fundada na Resolução n° 63 do Conselho da Justiça Federal, estabelece a tramitação direta do inquérito policial entre a Polícia Federal e o Ministério Público Federal”. 4 

Diante a isso, quando o intitulado “juiz das garantias” entrar em vigor, o mesmo causará mudanças consideráveis na investigação preliminar, mudanças estas necessárias para pôr fim a iniciativa do juiz da instrução na fase pre-processual e consolidar o sistema acusatório. Pois, não é possível enxergarmos entre os artigos que disciplinam o juiz das garantias a possibilidade de atuação como intermédio entre a autoridade policial e o Ministério Público, bem como a atuação ex offico do juiz da instrução, mas somente atuando no controle da legalidade das investigações e salvaguardar direitos e garantias fundamentais, como dito no artigo 3-B, caput do CPP. Portanto, ao realizar uma leitura literal e sistêmica da Lei 13.964\19, nos artigos 3-B ao 3-F do CPP, não mais o juiz da instrução poderá ao mesmo ter a possibilidade de se contaminar com os elementos de informação obtidos na investigação preliminar anteriormente o oferecimento da denúncia, pois também será o juiz das garantias que fará o juízo de admissibilidade da denúncia e, acautelará todos os elementos de informação que for da sua reserva constitucional de jurisdição, ficando a disposição das partes, como previsto no artigo 3-C, §3 e§4 do CPP. 

Em adição, é mister também salientar o artigo 385 do respectivo Código. Pois, a presente norma de cunho inquisitorial permite ao juiz sentenciar o réu, condenando-o quando o Ministério Público pede a sua absolvição, é dizer, o órgão de acusação, detentor da pretensão acusatória, não possui autonomia para pedir absolvição quando entender não caber condenação, mas sim o juiz, pelo simples fato de já estar contaminado com a investigação preliminar – o juiz das garantias “mudará” tal órbita -, diante alguns artigos, como o artigo 10, §1, artigo 12°, artigo 13, inciso II, artigo 16, artigo 19 e artigo 28 do CPP, decide atuar como parte fosse, condenando quando o acusador pede absolvição, possuindo total iniciativa no processo, o que notoriamente e literalmente o artigo 3-A do CPP veda. Mas, como ainda não possui eficácia, continuamos vivendo na era inquisitiva, sonhando se um dia o processo se tornará não somente o caminho necessário para se aplicar, perseguir o crime e a pena, mas também assegurar direito se garantias fundamentais.   

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Deste modo, as medidas cautelares proferidas pelo Ministro Luiz Fux em sede de Ação Direta de Inconstitucionalidade causaram diversas discussões no cenário jurídico, haja vista que os institutos, ditos por muitos processualistas penais, foram e são grandes avanços no processo penal. Pois, tais mudanças feitas pela Lei 13.964\19 possibilita, dentre outros fatores a adoção expressa do sistema acusatório no bojo do Código de Processo Penal, revogando tacitamente alguns dispositivos inquisitivos, dito por muitos processualistas penais como Aury Lopes Jr¹, como exemplo o artigo 156 do CPP mencionado supra e o procedimento de arquivamento do inquérito policial em sua redação antiga.   

Dessa forma, como dito supra, o legislador ordinário ao elaborar a Lei 13.964\19 pretendia “mudar de face” o processo penal, deixando de ser primitivo e inquisitivo e passando a ser, o que a Constituição Federal já preconizava, acusatório. Entretanto, atitude está presente no artigo 3-A do CPP, na qual o respectivo artigo traz a adoção do sistema acusatório no processo penal, vedando o juiz instrutor ter “iniciativa na fase investigativa e na substituição probatória do órgão de acusação”. Todavia, infelizmente e assustadoramente encontra-se suspensa a sua eficácia pelo Ministro Luiz Fux ao conceder liminarmente a suspensão por tempo indeterminado na sua decisão cautelar em sede de ADI.   

Com a devida vênia ao Pretório Excelso e seus respectivos Ministros, mas comportamento este proferido pelo Ministro Luiz Fux, ao meu ver, não condiz com a função precípua do Supremo Tribunal Federal, pois foi incumbido a Corte Suprema ser a guardiã da Constituição Federal e, se a Carta Magna atribui ao Ministério Público a pretensão acusatória, adotando expressamente o sistema acusatório, cabe a Suprema corte assegurar o que a Constituição Federal preconiza.   

Logo, diante dos inúmeros traços inquisitivos presentes no Código de Processo Penal, a adoção expressa do sistema acusatório presente no artigo 3-A causaria uma “filtragem constitucional” nos dispositivos incompatíveis com a CF, pois tais artigos estariam parcialmente inconstitucionais. Contudo, mudanças pontuais feitas pelo legislador ordinário causam não só um avanço na sistemática processual, mas um problema de filtragem e acoplagem constitucional, como bem dito por Aury Lopes Jr.²  

Portanto, o artigo 3-A do CPP, suspenso liminarmente por tempo indeterminado, almeja a adoção expressa do sistema acusatório no Código de Processo Penal, atitude esta compatível com a Constituição Federal. Na qual, o presente artigo veda a iniciativa do juiz na fase da investigação, concedendo cautelares, requisitando diligências como previsto no artigo 13, inciso II do CPP e, após o oferecimento da denúncia, realizar o juízo de admissibilidade para analisar se há justa causa ou não, como previsto no artigo 395, inciso III do CPP.   

Ainda sobre o artigo 3-A do CPP veda a substituição probatória do órgão de acusação, é dizer, o juiz não mais realiza as funções probatórias e persecutórias, como era na sistemática inquisitiva, pois a Constituição Federal incumbiu ao mesmo a função de acusar, artigo 129, inciso I, e de ter em mãos a iniciativa probatória, como requisitar diligências, artigo 129, inciso VIII da CF e não o Juiz, como previsto no artigo 13, inciso II do CPP que ainda possui eficácia e não foi suspenso pela Lei 13,964\19. Assim, mais um argumento de que mudanças pontuais não só causam avanços no sistema processual, mas o prejudica, pois existe no CPP dois dispositivos antagônicos.    

Em suma, é afirmativo a indagação feita no título e subtítulo do presente artigo, pois independentemente de existir expressamente o sistema acusatório na Carta Magna, demostrada pela radical separação de funções e a iniciativa probatória na mão das partes, o sistema processual penal ainda goza de uma essência inquisitiva, como bem dito por Jacinto Coutinho, em pleno século XXI, seja porque já encontra-se enraizada em nossa cultura, em nosso jeito de ser mesquinho e truculento, alguns, obviamente, bem como devido a concessão de liminar na medida cautelar em sede de ADI que, apenas confirma a nossa cultura.    

Referência:  

¹ RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. São Paulo: Ed. Atlas S.A., 2015, p.47 

² LOPES JR. Aury. Direito Processual Penal. São Paulo. Ed 17: Saraiva Educação, 2020. 

³ https://www.conjur.com.br/2018-out-26/limite-penal-contaminacao-inconsciente-julgador-exclusao-inquerito 

4 STJ, 5° Turma, RMS 46.165/SP, Rel. Min. Gurgel de Faria, J. 19/11/2015, DJe 4/12/2015 

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Sobre o autor
Rodrigo Bacellar

Graduando do 4° semestre de Direito da Faculdade Universidade Salvador (Unifacs) Atualmente, monitor de Direito Penal II

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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