A expressão em língua portuguesa “carta branca” surgiu do francês “carte blanche” e teve origem bélica. O comandante da tropa vencida assinava uma folha em branco e entregava ao inimigo vencedor para que este estipulasse os termos de rendição. Uma espécie de procuração que outorgava plenos poderes a outrem para executar em nome alheio o que bem entender.
Em decisão plenária de 29 de junho de 2020, o Supremo Tribunal Federal fixou tese, por maioria, no sentido de que "é taxativa a lista de serviços sujeitos ao ISS a que se refere o art. 156, III, da Constituição Federal, admitindo-se, contudo, a incidência do tributo sobre as atividades inerentes aos serviços elencados em lei em razão da interpretação extensiva". Tese esta formada pelo voto da Ministra Relatora Rosa Weber, acompanhada pela maioria dos ministros, divergindo da tese os Ministros Gilmar Mendes, Celso de Melo, Ricardo Lewandowski e divergindo completamente o Ministro Marco Aurélio.
A decisão do RE 784.439, de tema nº 296 com repercussão geral conhecida, negou provimento ao recurso extraordinário de contribuinte, após decisões de 1º e 2º grau desfavoráveis ao seu pleito e que reconheceram a legalidade da cobrança pelo ente público municipal do ISS sobre atividades não previstas literalmente na lista de serviços da Lei Complementar nº 116/2003, pois com aplicação da interpretação extensiva seriam consideradas inerentes às atividades descritas ou serviços congêneres.
Ainda de acordo com o voto da Ministra Relatora Rosa Weber, embora a Lei Complementar nº 116/2003 preveja a taxatividade da lista de serviços sujeitos ao ISS, não se poderia fazer uma interpretação literal das atividades realizadas, pois não seria a nomenclatura do serviço que o definiria como tributável e sim a atividade em si realizada e os seus efeitos jurídicos.
Cediço que o Imposto sobre serviços de qualquer natureza, ISSQN ou ISS, é um imposto de competência privativa municipal, ou seja, a Constituição Federal outorgou aos Municípios e ao Distrito Federal competência para instituí-lo através de lei ordinária[1], nos ditames do art. 156, III da Constituição Federal[2]. Todavia, o ISS está submetido à norma de caráter geral, mais precisamente a lei complementar editada pelo Congresso Nacional que definirá os serviços tributáveis pelo imposto.
Apesar da Constituição Federal estabelecer que caberá a Lei complementar editada pelo congresso nacional definir os serviços tributáveis, tal previsão não viola o princípio da indelegabilidade tributária previsto no Art. 7º do Código Tributário Nacional[3], pois segundo Luciano Amaro[4], a competência tributária outorgada pela constituição permite ao ente competente não exercê-la ou exercê-la parcialmente, mas não permite transferi-la ou delegá-la.
A norma prevê “prestar serviço” como a hipótese de incidência do tributo, que paira num plano abstrato e possui um mandamento eivado de tributariedade, possuindo como aspecto material a realização do serviço descrito em lista anexa à lei, como aspecto temporal o momento de sua prestação e o aspecto pessoal o prestador desse serviço como contribuinte/sujeito passivo do tributo. Seguindo com a lição do Professor Paulo de Barros Carvalho:
[...] diremos que houve a subsunção, quando o fato (fato jurídico tributário constituído pela linguagem prescrita pelo direito positivo) guardar absoluta identidade com o desenho normativo da hipótese (hipótese tributária). Ao ganhar concretude o fato, instala-se, automática e infalivelmente, como diz Alfredo Augusto Becker, o laço abstrato pelo qual o sujeito ativo torna-se titular do direito subjetivo público de exigir a prestação, ao passo que o sujeito passivo ficará na contingência de cumpri-la[5].
Embora preveja que o serviço prestado, para ser objeto de tributação não precisa ser necessariamente a atividade principal ou do cotidiano do sujeito passivo, por óbvio que esta atividade deve ser praticada por este sujeito passivo específico para que seja este denominado contribuinte e deve estar descrita na lista de serviços estabelecida pela Lei Complementar nº 116/2003.
A Constituição Federal de 1988 estabelece as bases de um Estado Democrático de Direito. Através desta norma rígida, analítica e dogmática que rege o Estado de Direito, há previsão de direitos e deveres dos seus cidadãos, bem como confere competências e limita poderes dos entes públicos, União, Estados, Distrito Federal e Municípios.
A partir da premissa de uma cláusula pétrea do Estado Democrático de Direito, tem-se o princípio da legalidade como pilar reconhecido no Art. 5º, II da lei Constituição Federal de 1988, ao dispor que ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei.
No âmbito do Direito Tributário, o princípio da legalidade se faz presente na Constituição Federal de 1988 ao conferir aos entes públicos a competência para criar e cobrar tributos mediante lei, com o dever de obedecer aos princípios constitucionais, verdadeiros limites ao poder de tributar. Dessa forma, a União, Estados, Municípios e Distrito Federal não poderão cobrar tributo sem que haja lei que o instituiu, em contrariedade a lei que o instituiu e em contrariedade aos princípios e previsões constitucionais.
Ato contínuo, a Constituição Federal de 1988 além de premiar o princípio da legalidade como corolário do Estado Democrático de Direito, impõe também em âmbito do Direito Tributário, a obrigatoriedade do legislador, ao instituir um tributo, estabelecer todos os aspectos e/ou critérios da hipótese de incidência da norma, promovendo em seu Art. 150, inciso I, o princípio da legalidade estrita ou estrita legalidade tributária, ao prever que somente mediante lei o ente público poderá exigir ou aumentar tributo.
Por sua vez, Amaro (2009, p. 112) expõe que o princípio da legalidade não apenas autoriza o legislador a criar e cobrar determinado tributo, mas é necessário que ela defina abstratamente todos os aspectos relevantes para que, concretamente, se determine quem pagará, quanto, a quem, em razão de que fato ou circunstância.
Portanto a norma tributária deve seguir as premissas constitucionais e obedecer aos limites constitucionais, em especial ao princípio da legalidade e legalidade estrita tributária, que tanto obrigará o legislador a dispor na norma todos os aspectos e/ou critérios na hipótese de incidência, como para impedir o ente público de impor obrigação não prevista na norma ou obrigação não devida por determinada pessoa.
No âmbito do Direito Processual, os fundamentos determinantes da decisão do STF, ratio decidendi, poderão prevalecer sobre outros temas, caso existam pontos necessários e suficientes para decidir o caso, de forma que a aplicação da norma e sua interpretação aos casos devem ocorrer de forma semelhante.
Sobre a ratio decidendi ensina o Professor Luiz Guilherme Marinoni que:
[...] constitui uma generalização das razões adotadas como passos necessários e suficientes para decidir um caso ou as questões de um caso pelo juiz. Em uma linguagem própria à tradição romano-canônica, poderíamos dizer que a ratio decidendi deve ser formulada por abstrações realizadas a partir da justificação da decisão judicial.[6]
Dessa forma, cediço que para julgar uma causa com base em um precedente judicial não é necessário que as causas sejam idênticas, mas sim que possuam elementos semelhantes e a fundamentação de ambas parta de um mesmo raciocínio lógico adequado, a ratio decidendi.
Ressalta o Professor Fredie Didier Jr. sobre o efeito vinculante da ratio decidendi:
Mas é preciso que a mesma ratio decidendi tenha sido adotada pelos membros do colegiado. Assim, “o efeito vinculante do precedente decorre da adoção dos mesmos fundamentos determinantes pela maioria dos membros do colegiado, cujo entendimento tenha ou não sido sumulado” (enunciado nº 317 do Fórum Permanente de Processualistas Civis). Por isso, a contrario sensu, “os fundamentos não adotados ou referendados pela maioria dos membros do órgão julgador não possuem efeito precedente vinculante” (enunciado nº 319 do Fórum Permanente de Processualistas Civis) – nesse caso, são, também, obter dicta.[7]
Dessa forma, sob o prisma processual, não restam dúvidas que a decisão do STF é um (perigoso) precedente judicial, posto que os fundamentos determinantes para a aquela decisão poderão possuir pontos necessários e suficientes semelhantes para a conclusão de outros temas que venham a surgir e assim a suprema corte poderá adotar interpretação extensiva como a utilizada no julgamento do RE 784.439.
Sendo assim, estabelecidas as premissas materiais e processuais acima acerca do ISS, princípios constitucionais limitadores ao poder de tributar e do precedente judicial formado, indubitável concluir que a decisão do STF com fixação de tese acerca do tema vai de encontro ao princípio constitucional da estrita legalidade tributária e traz grande insegurança jurídica às relações jurídico-tributárias e principalmente ao contribuinte.
A aplicação de interpretação extensiva à lista de serviços que previamente deve ser taxativa, conforme estabelecido na segunda parte do inciso, I do Art. 156 da Constituição Federal de 1988, permite ao ente público municipal abrir um leque de possibilidades para tributar o contribuinte sobre os serviços prestados e não previstos em lei, sob a alcunha de serem “inerentes aos serviços”, “acessórios” ou “congêneres”.
Em outra hipótese que não a taxatividade constitucional da lista de serviços objeto do ISS, poderia até se discutir a possibilidade de estabelecer parâmetros para aplicação de uma interpretação extensiva, todavia de forma a jamais majorar tributo ou muito menos legitimar uma nova obrigação tributária, em atenção aos princípios constitucionais da legalidade e anterioridade. Caso contrário, em tempos de pandemia, com a provável queda na arrecadação dos entes públicos, representaria uma verdadeira carta branca aos municípios em relação aos contribuintes.
[1] AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. Editora Saraiva. 15ª ed., 2009. p. 99.
[2] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm
[3] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5172.htm
[4] AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. Editora Saraiva. 15ª ed., 2009. p. 100.
[5] CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. Editora Saraiva. 30ª ed., 2019. p. 286.
[6] MARINONI, Luiz Guilherme; et. al.. Novo código de processo civil comentado. 1.ed. São Paulo: RT, 2015.
[7] DIDIER JUNIOR, Fredie. Curso de Direito Processual. 11. ed. Salvador: Juspodivm, 2016. v.2. P.468.