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Poder normativo do Poder Judiciário trabalhista

03/12/2020 às 17:15
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O poder normativo do Poder Judiciário trabalhista puntualiza a realização institucional dos aportes do poder e da norma. Poder normado e norma governada são conviventes para organização do consenso em ordenação sistêmica.

O poder normativo do Poder Judiciário Trabalhista é expressão dualógica da racionalização ordenada do Poder normado e do estabelecimento, puntualizado do Logos Institucional, em omniconvivência omniexistencial no Estado.

É no Poder Judiciário Trabalhista que se assentarão as lógicas e Espiritualidades da Política, Direito, História Universal e Staatsordnung (Ordnung concreta-histórica estatal-institucional[1]), em dinâmica institucional, convergindo para os órgãos estatais a genealogia cratonormogênica, visando serem especificados como a logística da Política e Staatsordnung.

Forma-se uma matriz intelectível apta a se permanecer como estrutura para organicidade do consenso, organizando-o funcionalmente, que, simultaneamente, formam-se os fatores matrizes e motrizes para estabilidade instituenda do Estado.

A Norma recebe aporte matriz na idealidade (Staatsgeist) e o Poder no devir (Staatsordnung histórica-concreta), em interrelacionamento convivível, convergindo ambos para o dimensionamento do consenso, para expor objetivamente a bidimensionalidade ontológica do Estado, enquanto Instituição das instituições, numa sucessividade evolutenda-agregativa de realização essente.

A matriz logística exige e projeta na funcionalidade-operativa da organização do consenso, Estabilidade Institucional (Politikprinzipien) e Bem Comum (Rechtprinzipien), tornando o consenso ético, em retidão para efetivar-se na Staatsordnung histórica-concreta e História Universal ordenada.

Sem a matricidade motriz, o consenso perde-se na aleatoriedade do mundo, sem direção de substancialização conferidora de consistência e coesão cratonormogênica, ou seja, há de existir uma matriz intelectível para que o que orgânico é, tenha diretividade: é o Naturrecht, diretividade racional do Logos no mundo, pautado pela razão-consciência do Homem, para tornar, racional e teleologicamente, determinado, ao conferir dimensão ao consenso (densidade e complexidade) e sua qualidade coesiva-orgânica, formando uma unidade analítica, vocacionada a ser um ente normado, governado e ordenado.

A convivência dos atores políticos no consenso há de receber a ordenação autoritativa do Estado, no sentido de objetivação táctil e ocular do Poder e Norma governados, normados e ordenados, sob matricidade intelectível-diretiva, refletora do estamento qualitativo institucional do Estado, em referência homométrica a-si e projetável ao consenso. É a Metaética estatal para a convivência dinâmica ordenada, normada e governada.

Liberdade, convivência e obediência estabelecem-se num estamento intelectível institucional, diversos do atomístico coletivo ou aleatório. A qualidade institucional estatal normogênica e cratológica do Estado (Poder Judiciário Trabalhista) é reflexo de suas dimensões ontológicas e ordenológicas, mas diferidas disjuncionalmente a partir da Constituição existencial (Carl Schmitt[2]) para a Lei Fundamental de 1.988 (art. 114, §2º[3]), em descensão concretizadora-ordenante.

A descensão é reflexo do vetor penetrativo da Filosofia Política, no estabelecimento do melhor Governo e Estado (Norberto Bobbio), causando e portando aquele vetor magnitude real e ideal, de conferir possibilidade de facticidade normada e governada, efetivando-se a lógica e Espiritualidade da Política imediatamente e, mediatamente, as lógicas e Espiritualidads da História Universal e Staatsordnung, em convergência substancializante essente imediata do Estado e, após, dos atores políticos.

O Estado confere ao consenso a formalização em pacto de estamento intelectível de institucionalidadde, em gradação normada e governada mais densa que a dos atores políticos, especificando-se em densidade e complexidade diversas, sendo jamais supra-partes, mas com todos em reflexão analítica crítica, na qual todos são integrantes.

O que varia é a ascensão qualitativa do gradiente de intelecção, em composição convergente, logo a relação amigo-inimigo se dilui, saindo-se da roda da Fortuna (Nicolau Maquiavel) para sua horizontalidade.

O impulso vital, a razão suficiente dinamicizadora do Estado, determina a substancialização dos aportes (real e ideal), configurando o Logos Institucional na essencialização histórica do que orgânico se transformou ao organizar o consenso.

A lógica da Política, na expressão de Democracia Institucional e Rechtsstaat [4], em alinhamento de densificação, tornam o Poder normado e Norma governada visíveis, ostensivos e objeto de coordenação estatais. A Legalidade Institucional [5] recebe da Normatividade a qualidade autoritativa e racional da Soberania Institucional para que o consenso projete-se axio-deontologicamente na temporalidade institucional estatal, refletindo as margens consignante (real – Staatsordnung) e analítica (ideal – Staatsrecht), na realização essente estatal para com todos.

Norma e Poder recebem da razão os contornos daquilo que o Estado é, proveniente da ontologia estatal, afirmando na descensão normativa a extensão essente de-si, dele como ente institucional.

O consenso e seu resultado são em-si a composição integradora-instituenda do Estado, na sua continuidade espiritual-existencial governada e normada.

O pacto resultante de decisão normativa concreta é exposição da visibilidade do gradiente qualitativo do consenso, Espiritualidade do Poder e do Direito, que se realizam na produção de efeitos ordenados.

Os pactos e decisão normativa concreta são causadores e portadores de suas próprias essências, afastando qualquer interpretação constituenda posterior, no sentido de reconstrução do que essente já é, em ordenação sistêmica.

Pacto e decisão estatal são resultados da constituição política do consenso, em sucessiva eugenia do irrealizável, logo há busca do possível, do atingimento da finitude ontológica da matéria remanescente pautada, sendo reflexo da lógica da Política para governança do aporte de sustentação da Norma, em qualidade dirigente e dirigida pela governabilidade do Poder normado (Legalidade Institucional – Rechtsstaat).

Da hibridação estrutural-anatômica da topologia da relação amigo-inimigo, atinge-se a construção integradora do organizacional do consenso, do uso estatal do Poder normado e ordenado para coordenação e coesão instituenda-sistêmica do consenso, no qual os atores políticos definem-se enquanto tais, mas se exigem ser e estar na logística institucional do Estado, em razão da qualidade do gradiente intelectível institucional de perfectibilização essente de todos, afastando a fragilidade humana, em fase específica de ruptura imediata a-si e, mediata, para com suas específicas referibilidades essentes.

Há uma co-extensão distensional-ascendente dos atores políticos de suas posições identitárias iniciais (Sociedade Civil e Mercado – unidades sociais e econômicas), para o atingimento intelectual de institucionalidade, passando todos a serem e se realizarem conforme tal condição essente, mesmo que em temporalidade institucional temporária, até ao exaurimento ontológico do consenso e pacto, tornando-se esta facticidade absorvida pela História Universal, sendo útil apenas como fragmento de possível referência.

Poder normativo é efeito da governança dinâmica daquilo do que o Estado é em-si, como ente político para ente institucional, buscando em-si a referibilidade cratonormogênica, em resultado diferidor da juridicidade e politicidade, graduada dinamicamente de seu Eu, em bidimensionalidade dualógica (real – ideal).

O consenso organizado e pacto são expressões dos gradientes intelectíveis de juridicidade e politicidade essentes do Estado, que, em descensão dimensionadora da partir do Staatsgeist, definem a normatividade e craticidade organizacional-orgânica para densificar a Legalidade e Legitimidade Institucionais.

Tem-se a descensão distensional-disjuntiva da Constituição existencial para especificação do aporte dualógico, em procedimento ordenológico de especificação Poder – Norma.

O Estado coordena a constituição de um ente dualógico (juspolítico) por uma decisão normativa concreta, em estamento institucional, puntualiznado e delimitando a dimensão do contruído pelo consenso, pela integração da liberdade, obediência e convergência normadas, ordenadas e governadas.

Poder normativo tem a extensão ordenadora para se estabelecer como afirmação instituenda do Estado, para que a lógica e Espiritualidade da Política e Staatsordnung se desenvolvam na dinâmica de institucionalidade, em universalidade para unidade de ação juspolítica (Hermann Heller [6]), portando o limite crítico do politicamente possível ser.

O pacto e o consenso são fatores de transformantes para continuidade essente do Estado, e a partir dele são confeccionados, recebendo específica dosagem e testagem da Democracia Institucional e Rechtsstaat, ao longo do desenvolvimento do processo juspolítico, em simetria para com a Legalidade Institucional e assimetria para com o impossível (qualidade eugênica das margens decisórias e equilíbrio da relação amigo-inimigo).

O poder normativo é governante, é opção possível dos atores políticos para se estabelecerem em estamento intelectível-ordenador diverso dos seus, para atingimento do institucional, que só o Estado pode propiciar, na dimensão exigida para liberdade e convivência ordenadas, sem exaurimento das essências de seus Eus.


[1] Cf.: CENZANO, José Carlos de Bartolomé. El orden público como límite al ejercicio de los derechos y libertades. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constiucionales, 2002, p. 95 e ss; DANTAS, Ivo. Teoria do Estado Contemporâneo. Rio de Janeiro: Forense, 2008, ps. 54 e ss; SALDANHA, Nelson. Ordem e Hermenêutica. 2ª Edição Revista. Rio de Janeiro: Renovar, 2003; MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo – Parte Introdutória, Parte Geral e Parte Especial. 13ª edição, totalmente revista, ampliada e atualizada. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 400.

[2Teoría de la Constitución. 5ª reimpressão. Madrid: Alianza Editorial. 2006, Apresentação e Versão espanhola: Francisco Ayala, Epílogo: Manuel García-Pelayo, Alianza Universidad – Textos, p. 46: “La Constitución no es, pues, cosa absoluta, por quanto que no surge de sí misma. Tampoco vale por virtud de su justicia normativa o por virtud de su cerrada sistemática. No se dá a sí misma, sino que es dada por uma unidad política concreta. Al hablar, es tal vez posible decir que una Constitución se establece por sí misma sin que la rareza de esta expresión choque en seguida. Pero que una Constitución se dé a sí misma es un absurdo manifiesto. La Constitución vale por virtud de la voluntad política existencial de aquel que la da. Toda especie de normación jurídica y también la normatición constitucional, presupone una tal voluntad como existente. Las leyes constitucionales valen, por el contrario, a base de la Constitución y presuponen una Constitución. Toda ley, como regulación normativa, y también la ley constitucional, necesita para su validez en último término una decisión política previa, adoptada por un poder o autoridad políticamente existente. Toda unidad política existente tiene su valor y su “razón de existencia”, no en la justicia o conveniencia de normas, sino en su existencia misma. Lo que existe como magnitud política, es, jurídicamente considerado, digno de existir. Por eso su “derecho a sostenerse y subsistir” es el supuesto de toda discusión  ulterior; busca ante todo subsistir en su existencia, in suo ese perseverare (Spinoza); defiende “su existencia, su integridad, su seguridad y su Constitución” – todo valor existencial.” (Itálicos no original e nossos).

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[3] “Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar:

§ 2º Recusando-se qualquer das partes à negociação coletiva ou à arbitragem, é facultado às mesmas, de comum acordo, ajuizar dissídio coletivo de natureza econômica, podendo a Justiça do Trabalho decidir o conflito, respeitadas as disposições mínimas legais de proteção ao trabalho, bem como as convencionadas anteriormente.

§ 3º Em caso de greve em atividade essencial, com possibilidade de lesão do interesse público, o Ministério Público do Trabalho poderá ajuizar dissídio coletivo, competindo à Justiça do Trabalho decidir o conflito.”

[4] Cf.: BÖCKENFÖRDE, Ernst Wolfgang. Estudios sobre el Estado de Derecho y Democracia. Madrid: Trotta, 1993, Prólogo e tradução: Rafael de Agapito Serrano, Colección Estructuras y Procesos, Série Derecho, p. 18 e ss; HAYEK, Friedrich A. in op. cit. ps. 36-37; Böckenförde, Ernst Wolfgang. Estudios sobre el Estado de Derecho y Democracia, p. 26 apresenta-se a posição de L. von Stein: “(...) El Estado de Derecho en su “concepto específico” comienza allí “donde [...] el Derecho constitucional del Estado permite que el ciudadano puede hacer valer todo derecho que haya adquirido y que le corresponda legalmente tembién frente al poder ejecutivo y en nombre de la ley”. El Estado de Derecho no es para él “un tipo o categoría especial del concepto de Estado”, sino um “estadio determinado en el desarrollo de la vida libre del Estado”; el estadio que sucede a la realización de la constitución libre (del Estado de Derecho).” (Itálicos nossos); STAMMLER, Rudolf in La Génesis del Derecho, p. 72 e ss; ZOLO, Danilo. Teoria e critica do Estado de Direito, In: O Estado de Direito – História, teoria, crítica (COSTA, Pietro e ZOLO, Danilo (orgs.). São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 11 e ss.

[5] A Legalidade, tal como se observa no julgamento do recurso extraordinário nº 638.115, com repercussão geral deferida, o Sr. Ministro-Relator Gilmar Mendes, expõe em seu voto de admissibilidade do recurso naquela qualidade repercussiva a acepção de Legalidade – Normatividade Institucional – Rechtsordnung (Carl Schmitt): “RECURSO EXTRAORDINÁRIO 638.115 CEARÁ VOTO: O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES (RELATOR): Em primeiro lugar, atesto a presença dos requisitos de admissibilidade do recurso extraordinário e ressalto que a questão nele discutida teve repercussão geral reconhecida por esta Corte (decisão de 27.4.2011). O parecer da Procuradoria-Geral da República sugere que o presente recurso extraordinário não seria cabível contra a decisão do Superior Tribunal de Justiça que, mantendo o entendimento fixado pelo Tribunal Regional, não debateu questão constitucional nova. Dessa forma, não havendo prequestionamento, a oportunidade para invocar matéria constitucional estaria preclusa, pois não teria sido interposto o recurso extraordinário contra a decisão da Corte regional. Para tanto, cita a consolidada jurisprudência desta Corte sobre o tema (AI-AgR 145.589, rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 24.6.1994). De fato, a jurisprudência desta Corte é no sentido de ser inadmissível o recurso extraordinário interposto contra decisão do STJ que, em recurso especial, fundamenta-se em matéria constitucional já apreciada e decidida na instância inferior e não impugnada diretamente no STF mediante recurso extraordinário. Assim, não interposto o recurso extraordinário contra a decisão de segunda instância dotada de duplo fundamento (legal e constitucional), fica preclusa a oportunidade processual de questionar a matéria constitucional. Novo recurso extraordinário somente é admissível para suscitar a questão constitucional surgida originariamente no julgamento do recurso especial pelo STJ (AI-AgR 155.502, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 27.5.1994; RE-AgR 365.989, rel. Min. Celso de Mello, DJ 10.02.2006). Ocorre, porém, que o caso apresentado nos presentes autos é deveras peculiar. O tema referente à incorporação de quintos, por suscitar a interpretação da legislação aplicável a essa matéria (leis 8.112/90, 8.911/94, 9.624/98 e MP 2.225-45/2001), costuma ser tratado como de índole estritamente infraconstitucional. Assim, ele tem sido enfrentado pelos tribunais e também pelo Superior Tribunal de Justiça. No entanto, essa forma de abordar a matéria representa apenas um dos enfoques possíveis quanto à questão da legalidade. Nada impede que a questão debatida em todas as instâncias inferiores, inclusive no âmbito do STJ, seja abordada desde outra perspectiva no Supremo Tribunal Federal, mesmo porque a causa de pedir do recurso extraordinário é aberta (RE 298.695, rel. min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 6-8-2003, Plenário, DJ de 24-10-2003). A mesma questão debatida, devidamente prequestionada, pode ser apreciada desde outro enfoque pelo Supremo Tribunal Federal, o qual poderá enfrentar o tema desde o enfoque constitucional, inegavelmente presente nesta matéria. Nessa hipótese, é cabível o recurso extraordinário, tendo em vista que, apreciada a questão novamente pelo STJ, apenas resta a via do recurso extraordinário para que o STF possa analisá-la sob outra perspectiva, a constitucional. E, no caso, a matéria, apreciada de forma adequada, é visivelmente constitucional. Destarte, não há, aqui, mera questão de ilegalidade, por ofensa ao direito ordinário, mas típica questão constitucional consistente na afronta ao postulado fundamental da legalidade. Embora a doutrina ainda não tenha contemplado a questão com a necessária atenção, é certo que, se de um lado, a transferência para o Superior Tribunal de Justiça da atribuição para conhecer das questões relativas à observância do direito federal acabou por reduzir a competência do Supremo Tribunal Federal às controvérsias de índole constitucional, não subsiste dúvida de que, por outro, essa alteração deu ensejo à Excelsa Corte de redimensionar o conceito de questão constitucional. O próprio significado do princípio da legalidade, positivado no art. 5.º, II, da Constituição, deve ser efetivamente explicitado, para que dele se extraiam relevantes consequências jurídicas já admitidas pela dogmática constitucional. O princípio da legalidade, entendido aqui tanto como princípio da supremacia ou da preeminência da lei (Vorrang des Gesetzes), quanto como princípio da reserva legal (Vorbehalt des Gesetzes), contém limites não só para o Legislativo, mas também para o Poder Executivo e para o Poder Judiciário. A ideia de supremacia da Constituição, por outro lado, impõe que os órgãos aplicadores do direito não façam tabula rasa das normas constitucionais, ainda quando estiverem ocupados com a aplicação do direito ordinário. Daí porque se cogita, muitas vezes, sobre a necessidade de utilização da interpretação sistemática sob a modalidade da interpretação conforme à Constituição. É de se perguntar se, nesses casos, tem-se simples questão legal, insuscetível de ser apreciada na via excepcional do recurso extraordinário, ou se o tema pode ter contornos constitucionais e merece, por isso, ser examinado pelo Supremo Tribunal Federal. Ainda, nessa linha de reflexão, deve-se questionar se a decisão judicial que se ressente de falta de fundamento legal poderia ser considerada contrária à Constituição, suscitando uma legítima questão constitucional. Na mesma linha de raciocínio seria, igualmente, lícito perguntar se a aplicação errônea ou equivocada do direito ordinário poderia dar ensejo a uma questão constitucional. Tal como outras ordens constitucionais, a Constituição brasileira consagra como princípio básico o postulado da legalidade segundo o qual “ninguém está obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (CF, art. 5.º, II). O princípio da legalidade contempla, entre nós, tanto a ideia de supremacia da lei (Vorrang des Gesetzes), quanto a de reserva legal (Vorbehalt des Gesetzes). O princípio da reserva legal explicita as matérias que devem ser disciplinadas diretamente pela lei. Este princípio, em sua dimensão negativa, afirma a inadmissibilidade de utilização de qualquer outra fonte de direito diferente da lei. Na dimensão positiva, admite que apenas a lei pode estabelecer eventuais limitações ou restrições (CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional. 5. ed., Coimbra, 1992, p. 799). Por seu turno, o princípio da supremacia ou da preeminência da lei submete a Administração e os tribunais ao regime da lei, impondo tanto a exigência de aplicação da lei (dimensão positiva) quanto a proibição de desrespeito ou de violação da lei (dimensão negativa) (CANOTILHO. Direito Constitucional, op. cit., p. 796-795). A propósito, são elucidativas as lições de Canotilho: “Em termos práticos, a articulação de suas dimensões aponta: (I) para a exigência da aplicação da lei pela administração e pelos tribunais (cf. CRP arts. 206, 266/2), pois o cumprimento concretizador das normas legais não fica à disposição do juiz (a não ser que as ‘julgue’ inconstitucionais) ou dos órgãos e agentes da administração (mesmo na hipótese de serem inconstitucionais); (II) a proibição de a administração e os tribunais actuarem ou decidirem contra lei, dado que esta constitui um limite (‘função limite’, ‘princípio da legalidade negativa’) que impede não só as violações ostensivas das normas legais, mas também os ‘desvios’ ou ‘fraudes’ à lei através da via interpretativa; (III) nulidade ou anulabilidade dos actos da administração e das medidas judiciais ilegais; (VI) inadmissibilidade da ‘rejeição’ por parte dos órgãos e agentes da administração (mas já não por parte dos juízes), de leis por motivo de inconstitucionalidade. Neste sentido pôde um autor afirmar recentemente que o princípio da legalidade era um ‘verdadeiro polícia na ordem jurídica’ (J. Chevallier).” Problema igualmente relevante coloca-se em relação às decisões de única ou de última instância que, por falta de fundamento legal, acabam por lesar relevantes princípios da ordem constitucional. Uma decisão judicial que, sem fundamento legal, afete situação individual revela-se igualmente contrária à ordem constitucional, pelo menos ao direito subsidiário da liberdade de ação (Auffanggrundrecht) (SCHLAICH, Klaus. Das Bundesverfassungsgericht, Munique, 1985, p. 108). Se se admite, como expressamente estabelecido na Constituição, que os direitos fundamentais vinculam todos os poderes e que a decisão judicial deve observar a Constituição e a lei, não é difícil compreender que a decisão judicial que se revele desprovida de base legal afronta algum direito individual específico, pelo menos o princípio da legalidade. A propósito, assinalou a Corte Constitucional alemã: “Na interpretação do direito ordinário, especialmente dos conceitos gerais indeterminados (Generalklausel) devem os tribunais levar em conta os parâmetros fixados na Lei Fundamental. Se o tribunal não observa esses parâmetros, então ele acaba por ferir a norma fundamental que deixou de observar; nesse caso, o julgado deve ser cassado no processo de recurso constitucional” (Verfassungsbeschwerde) (BverfGE 7, 198 (207); 12, 113 (124); 13, 318 (325) ( BverfGE 18, 85 (92 s.); cf., também, ZUCK, Rüdiger. Das Recht der Verfassungsbeschwerde. 2ª ed., Munique, 1988, p. 220). Não há dúvida de que essa orientação prepara algumas dificuldades, podendo converter a Corte Constitucional em autêntico Tribunal de revisão. É que, se a lei deve ser aferida em face de toda a Constituição, as decisões hão de ter sua legitimidade verificada em face da Constituição e de toda a ordem jurídica. Se se admitisse que toda decisão contrária ao direito ordinário é uma decisão inconstitucional, ter-se-ia de acolher, igualmente, todo e qualquer recurso constitucional interposto contra decisão judicial ilegal (SCHLAICH. Das Bundesverfassungsgericht, op. cit., p. 109). Enquanto essa orientação prevalece em relação a leis inconstitucionais, não se adota o mesmo entendimento no que concerne às decisões judiciais. Por essas razões, procura o Tribunal formular um critério que limita a impugnação das decisões judiciais mediante recurso constitucional. Sua admissibilidade dependeria, fundamentalmente, da demonstração de que, na interpretação e aplicação do direito, o juiz desconsiderou por completo ou essencialmente a influência dos direitos fundamentais, que a decisão se revela grosseira e manifestamente arbitrária na interpretação e aplicação do direito ordinário ou, ainda, que se ultrapassaram os limites da construção jurisprudencial (Cf., sobre o assunto, SCHLAICH. Das Bundesverfassungsgericht, op. cit., p. 109). Não raras vezes, observa a Corte Constitucional que determinada decisão judicial afigura-se insustentável, porque assente numa interpretação objetivamente arbitrária da norma legal (Sie beruth vielmehr auf schlechthin unhaltbarer und damit objektivwillkürlicher Auslegung der angewenderen Norm) [BverfGE 64, 389 (394)]. Assim, uma decisão que, v.g., amplia o sentido de um texto normativo penal para abranger uma dada  conduta é considerada inconstitucional, por afronta ao princípio do nullum crimen nulla poena sine lege (LF, art. 103, II). Essa concepção da Corte Constitucional levou à formulação de uma teoria sobre os graus ou sobre a intensidade da restrição imposta aos direitos fundamentais (Stufentheorie), que admite uma aferição de constitucionalidade tanto mais intensa quanto maior for o grau de intervenção no âmbito de proteção dos direitos fundamentais (ZUCK, Rüdiger. Das Recht der Verfassungsbeschwerd. 2.ª ed., Munique, 1968, p. 221). Embora o modelo de controle de constitucionalidade exercido pelo Bundesverfassungsgericht revele especificidades decorrentes sobretudo do sistema concentrado, é certo que a ideia de que a não observância do direito ordinário pode configurar uma afronta ao próprio direito constitucional tem aplicação também entre nós. Essa conclusão revela-se tanto mais plausível se se considera que, tal como a Administração, o Poder Judiciário está vinculado à Constituição e às leis (CF, art. 5.º, § 1.º). Enfim, é possível aferir uma questão constitucional na violação da lei pela decisão ou ato dos poderes Executivo, Legislativo ou Judiciário. A decisão ou ato sem fundamento legal ou contrário ao direito ordinário viola, dessa forma, o princípio da legalidade. No caso, a decisão judicial que determina a incorporação dos quintos carece de fundamento legal e, portanto, viola o princípio da legalidade. (...)” (negritos e itálicos no original e nossos); Böckenförde, Ernst Wolfgang. Estudios sobre el Estado de Derecho y democracia. Madrid: Trotta, 2000, Tradução: Rafael de Agapito Serrano, Colección: Estructuras y Procesos, Serie: Derecho, p. 23: “El concepto de ley tiene un significado central para la conformación y concreción ulterior de este concepto de Estado de Derecho. Es el eje de la constitución del Estado de Derecho. Y el concepto de ley próprio del Estado de Derecho tampoco permite diferenciar entre un concepto material o formal de ley, sino que es una categoria unitária. En ella se vincula un aspecto material o de contenido con um aspecto formal o procedimental en uma unidad inseparable: la ley es una regla general (norma general) que surge con el asentimiento de la representación del pueblo en um procedimiento caracterizado por la discusión y la publicidad. Todos los principios esenciales para el Estado de Derecho están incluidos institucionalmente en este concepto de ley, y en él reciben su forma. El asentimiento de la representación del pueblo garantiza el principio de la liberdad y la posición de sujeto del ciudadano; la generalidad de la ley impide ingerencias en el ámbito de la liberdad civil y de la sociedad más allá de sus limitaciones o delimitaciones de caráter general, esto es, válidas para todos por igual; el procedimiento determinado por la discusión y la publicidad garantiza la medida de racionalidade que el contenido de la ley puede humanamente alcanzar.”

[6] Teoría del Estado. 2ª edição. México: Fondo de Cultura Económico, 1998, Tradução: Luis Tobio, Edição e Prólogo: Gerhardt Niemeyer.

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Sobre o autor
Marcelo Elias Sanches

Especialista em Direito Tributário, Direito Processual Civil e Direito Público; Mestre em Direito Político e Econômico.Advogado da União Federal

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANCHES, Marcelo Elias. Poder normativo do Poder Judiciário trabalhista. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6364, 3 dez. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/87135. Acesso em: 26 abr. 2024.

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