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A mercancia de pequena quantidade de substância entorpecente em face da objetividade jurídica da Lei nº 6.368/76.

Crime de bagatela ou estado de necessidade exculpante?

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04/08/2006 às 00:00
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6.PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO MÍNIMA

            O Princípio da Intervenção Mínima traz o direito penal como última ratio, devendo proteger os bens jurídicos de importância vital de ataques insuportáveis quando os mecanismos de controle social forem ineficazes.

            Utilizada nos fatos que demonstram a necessidade material de uma repressão penal, devem receber a incidência da lei criminal. Isto posto, vê-se que nem toda a ofensa ao bem jurídico penal é merecedora de uma sanção penal.

            Baseado neste princípio, temos que o direito penal só deverá intervir na proteção de bens relevantes para o indivíduo e para a sociedade.

            Assim, o Estado só deve intervir quando houver uma violação intolerável ao bem jurídico considerado valioso pela sociedade.

            Desta forma, ao pôr em perigo um direito que interesse à sociedade, deverá o Estado instituir sanções penais contra o infrator.

            A norma penal, ao declarar que determinada ação deverá ser punida demonstra sua pretensão de que os cidadãos deixem de praticá-la. Assim, deve essa ação ser dotada de potencial perigosidade, a fim de tornar sua proibição legítima.

            Assim sendo, por considerar determinada conduta imoral, o legislador não poderá condená-la, apenas se esta foi lesiva ao bem jurídico tutelado.


7.PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

            Por estar previsto na Constituição Federal, caracteriza-se como um valor-guia, sendo, assim, indispensável para a ordem social, pressupondo a autonomia vital da pessoa.

            A consagração deste princípio constitucional é resultante da obrigação estatal na garantia à pessoa humana de um patamar mínimo de recursos, capaz de prover-lhe a subsistência. Serve como ponto referencial, visando o respeito aos direitos fundamentais do ser humano.

            Conforme preleciona o jurista Ingo Wolfgang,

            A dignidade é um atributo intrínseco da pessoa humana, expressando seu valor absoluto, sua dignidade não pode ser desconsiderada, mesmo contendo as ações mais indignas e infames.

[13]

            Deste modo, a pessoa não deverá ser objeto de ofensas ou humilhações, devendo haver condições mínimas para uma vida digna.

            É um princípio absoluto, devendo prevalecer sobre qualquer outro valor ou princípio, assim, ainda que se opte, em determinada situação, por um valor coletivo, esta opção não pode nunca sacrificar ou ferir o valor da pessoa.

            Celso Antônio Fiorillo [14] afirma que, para que haja dignidade para a pessoa humana, é necessário que lhe sejam assegurados os direitos sociais previstos no artigo 6º da Constituição Federal, aí sim poderemos falar em dignidade da pessoa humana.

            Representa um valor absoluto de cada ser humano sendo assim, insubstituível.

            Ainda de acordo com o supramencionado jurista Ingo Sarlet, a respeito do referido princípio, e de plena concordância com seu ensinamento, passo a transcrever:

            ... onde as condições mínimas para uma existência digna não forem asseguradas, onde não houver a limitação do poder, enfim, onde a liberdade e a autonomia, a igualdade (em direitos e dignidade) e os direitos fundamentais não forem reconhecidos e minimamente assegurados, não haverá espaço para a dignidade da pessoa humana e esta (a pessoa), por sua vez, poderá não passar de mero objeto de arbítrio e injustiças... [15]

            Assim sendo, temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos. [16]

            Finalizando, conclui-se que a dignidade da pessoa humana é, antes de ser considerada um princípio jurídico, qualidade do ser humano tornando-o titular de respeito e proteção, de modo que o poder de punir do Estado não poderá, de maneira alguma, e, em nenhuma hipótese, impor sanções que atinjam a dignidade da pessoa ou que venham a lesionar a constituição física e/ou psíquica do condenado, uma vez que a pessoa humana é o sujeito do processo e não o seu objeto.


8.CRIMES DE PERIGO

            Também conhecidos como crimes de perigo comum ou coletivo, têm como característica a exposição ao risco de interesses de um número indeterminado de pessoas. Como exemplo, podemos citar que o dano gerado à saúde pública é potencial ou iminente.

            São aqueles em que o legislador não espera a ocorrência efetiva da lesão, incriminando, assim, os comportamentos que coloquem em risco o bem jurídico tutelado.

            Ao se presumir o perigo, há uma agressão aos direitos e garantias fundamentais do agente, principalmente, ao princípio da presunção de inocência. Serão, assim, crimes onde há a probabilidade de dano, representado por um perigo social.

            Desta maneira, nos crimes de perigo, há uma certa presunção de culpabilidade, o que pode ser visto como inconstitucional uma vez que nossa Carta Magna, em seu artigo 5º, inciso LVII, em que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, onde nos traz o Princípio da Presunção de Inocência.

            Dentro dos crimes de perigo, no que concerne ao delito de tráfico, temos também o perigo abstrato, ou seja, basta que esteja presente o princípio ativo da substância proibida para que o crime se configure. Há uma presunção juris et de jure; não precisa ser provado. A lei contenta-se com a prática da ação pressuposta perigosa. Assim, o poder de punir do Estado não pode proibir condutas, senão quando impliquem em lesão ou perigo de lesão aos bens jurídicos. Serve para prevenir comportamentos perigosos ou potencialmente lesivos.

            Para a existência do perigo, basta a demonstração da realização do comportamento típico, sem necessidade de prova de que o risco atingiu determinada pessoa.

            A consumação do crime de perigo acarreta a possibilidade potencial e real de dano ao bem jurídico.

            Conseqüentemente, nos delitos de tóxico, onde a quantidade da substância apreendida for ínfima, não devem ser considerados crimes de perigo, uma vez que a pequena quantidade não oferece perigo real e/ou concreto à saúde pública.


9.CRIME FORMAL, DE MERA CONDUTA OU DE SIMPLES ATIVIDADE

            O crime é uma mera atividade comportamental, não possuindo resultado material, havendo somente um desrespeito ao bem jurídico tutelado.

            O comportamento é suficiente para a configuração do delito.

            A descrição legal se refere ao resultado, não exigindo sua realização para efetiva consumação.


10.CRIME DE BAGATELA

            Infração que produz lesão ou perigo de lesão de escassa repercussão social, não se justificando, no caso, uma reação jurídica grave. O resultado é tão irrisório que o tipo penal sequer se completa.

            Para considerarmos um crime como bagatelar, deverá ser observado o desvalor do resultado, a conduta do agente, bem como sua atitude.

            Tem como características principais a escassa reprovabilidade; a ofensa a bens de menor relevância; geralmente são delitos habituais; há dispensa de aplicação de uma pena visando prevenção; ocasionando lesões mínimas.

            O que vem a ser bagatela?

            Segundo o dicionário Aurélio, [17] bagatela significa,

            ninharia, do espanhol niñeria, ação própria de criança; coisa sem préstimo ou valor, insignificância.

            Ainda, Diomar Ackel Filho [18] leciona que os delitos bagatelares são aqueles em que as ações típicas são dotadas de inexpressividade e insignificância, não merecendo reprovação penal.


11.INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA

            É uma causa supralegal de exclusão da culpabilidade, deste modo, não prevista na lei penal. Contudo sua admissibilidade no Direito Brasileiro não deve ser negada.

            Mesmo tendo cometido um fato típico e ilícito, se inexistia a exigibilidade da prática de uma conduta diversa pelo agente, não haverá culpabilidade. Assim, o agente não sofrerá a responsabilidade penal (nulla poena sine culpa).

            Para reconhecermos se o agente estava sob o manto da inexigibilidade de conduta diversa, é necessário sabermos se ele podia ou não agir de modo diverso, se tinha liberdade de escolha.

            Vejamos o que nos traz a jurisprudência de nosso Tribunal sobre sua aplicação:

            (...)

            Aliás, mais do que uma exculpante, mas denominador comum de todas as excludentes da culpabilidade (Está presente nas raízes das exculpantes da coação moral irresistível e da obediência hierárquica), pois os elementos essenciais ao juízo de censura penal decorrem da premissa fundamental de que a ordem jurídica pode exigir do agente comportamento diverso, sendo que a exculpação sempre evidencia a inexigibilidade da prática de outro comportamento e decorre do fato de que o direito penal somente pode exigir do indivíduo o que lhe seja faticamente possível (nesse sentido: Fernando Galvão, Estrutura Jurídica do Crime, pág. 425).

            "Dotado das capacidades de entender e querer, abstendo ou podendo alcançar o conhecimento da ilicitude do fato, o homem detém o ‘poder-agir-de-acordo com o Direito, pois livre na elaboração e atuação da vontade, e deve, como conseqüência jurídica, motivar a conduta em conformidade com o sentido protetivo da norma. É o que a ordem jurídica lhe exige. Porém, se apesar de possuir saúde mental que o capacite de entender e querer, e embora consciente de que faça algo juridicamente proibido, mesmo assim realize o fato típico e antijurídico, mas unicamente por causa de fatores externos, tais de anormalidade, que lhe retiram a liberdade para ‘poder-agir-de-acordo com a norma, ‘a culpabilidade’, terceiro elemento, atributo ou predicado da infração penal (há discussão meramente ‘acadêmica’ a respeito: se é elemento ou predicado; se é parte ou dimensão do crime), é excluída.

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            (...) [19]


12.ESTADO DE NECESSIDADE

            O estado de necessidade é uma causa excludente de antijuridicidade, preceituada no art. 23, I, do Código Penal Pátrio, que nos traz: "não há crime quando o agente pratica o fato em estado de necessidade".

            Baseia-se num estado de perigo onde o interesse jurídico somente poderá ser protegido por meio de lesão a outro bem juridicamente tutelado, havendo, assim, uma colisão de bens juridicamente tutelados. É necessário que inexista qualquer possibilidade de evitação do perigo por outro modo.

            É praticamente a previsão legal de uma situação de inexigibilidade de conduta diversa, uma norma permissiva que exclui a antijuridicidade do fato típico, onde o bem jurídico encontra-se exposto ao perigo.

            Não há uma agressão a um direito, mas um choque entre eles.

            O direito próprio ou alheio deve ser visto como qualquer bem jurídico tutelado (patrimônio, integridade física, vida...).

            Segundo Luiz Alberto Machado, Berner considerou,

            que o estado de necessidade se fundamenta sobre um direito de necessidade ou constitui na simples causa de inculpabilidade, isto é, excluindo, ‘ultima ratio’, a censurabilidade pessoal do agente. [20]

            É causa de exclusão da culpabilidade, uma vez que ao ser humano não se pode compelir a humilhação para a satisfação de suas necessidades básicas como a alimentação.

            Como fica um pai ao ver seu filho à beira da morte devido à falta de um prato de comida?

            Não é razoável que um indivíduo sucumba à fome para não infringir a lei sacrificando em nome do ordenamento jurídico seu direito mais essencial que é o direito à vida.

            Mas para que o sujeito ativo do delito se encontre em estado de necessidade, são necessários alguns requisitos, os quais passamos a elencar:

            - situação de perigo (ou necessidade);

            - conduta lesiva.

            Quanto à situação de perigo:

            - o perigo deve ser atual;

            - deverá haver ameaça a direito próprio ou alheio;

            - a situação de risco não deverá ter sido resultante da conduta voluntária do sujeito;

            Para haver a prática da conduta lesiva, é necessário ainda:

            - o comportamento lesivo deverá ser inevitável;

            ´- inexigibilidade de sacrifício do bem ameaçado;

            - conhecimento da situação de fato justificante.

            Quanto à situação de perigo acima descrita, a mesma deverá ser atual (que ocorre naquele momento) ou iminente (que ameaça suceder de um momento para o outro), não tendo o agente outro meio de evitar a lesão ao interesse jurídico próprio ou alheio que não o de praticar o fato necessitado, ofendendo outro bem. Não lhe resta alternativa senão a de lesar bens ou interesses de outrem, nos limites de sua necessidade vital.

            O estado de necessidade, conforme o Direito Penal Pátrio, pode ser exculpante ou justificante.

            Exculpante: naquelas condições não era razoável exigir-se do agente outro comportamento. Visa afastar perigo não evitável por outro modo. É uma ação típica e antijurídica. O bem jurídico sacrificado é de igual ou maior hierarquia. Pressupõe uma situação de perigo. Há um conflito de bens jurídicos. Cláusula de garantia social e individual. Serve como excludente da culpabilidade.

            Ainda sobre o estado de necessidade exculpante, Souza Neto nos ensina que:

            O homem (...) que é o que engendra a sua vontade, como se formam os seus afetos, porque é que ama e odeia tanto, por que é que resiste à mais negra miséria e não suporta a mais tênue ofensa moral, por que obedece à voz do sangue em vez de ouvir a voz da razão, por que é que o pedaço da terra onde nasceu vale mais do que o lugar sagrado em que surgiu o seu Deus? [21]

            ... as ações humanas valem pelos motivos que as inspiram, assim, na esfera moral como na criminal. O direito criminal, aliás, não visa senão à defesa dos sentimentos e idéias que se apóiam as sociedades. A ação é boa, ou social, quando o motivo que a informa, é bom, isto é, não atenta contra aqueles sentimentos e aquelas idéias. A sociedade só se interessa em reprimir os comportamentos contrários às normas que regulam a sua conservação e o seu desenvolvimento. Esses comportamentos são qualificados de antisociais. [22]

            Justificante: o que for reputado de menor valor pode ser licitamente sacrificado para proteção do bem de maior valor. O mal causado é inferior ao mal evitado. É o conflito entre dois bens jurídicos igualmente legítimos. Justifica-se por corresponder ao instinto de conservação inerente ao homem. É causa excludente da ilicitude.

            Não resta alternativa ao sujeito a não ser lesar os bens e interesses de seu semelhante nos limites de suas necessidades vitais.

            Não age contra a ordem jurídica quem lesa direito de outrem para salvar o seu.

            Para uma conduta ser considerada culpável, deve-se exigir do sujeito ativo, naquele momento, uma conduta diversa. Deve-se avaliar a situação em que se encontra o autor.

            A conduta diversa é a expectativa social de um comportamento diferente daquele que foi adotado pelo agente. Somente haverá exigibilidade de conduta diversa quando a coletividade podia esperar do sujeito que tivesse atuado de outra forma.

            Isto posto, sacrificar o semelhante, se necessário, sem qualquer provocação, para salvar-se, pode não ser moral, mas é certamente jurídico.

            "Necessitas dat legem, non ipsa accipti"

            Publíbio Siro.

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Sobre a autora
Aline Sinhorelli Müller

bacharelanda em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Luterana do Brasil (ULBRA), campus Gravataí (RS)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MÜLLER, Aline Sinhorelli. A mercancia de pequena quantidade de substância entorpecente em face da objetividade jurídica da Lei nº 6.368/76.: Crime de bagatela ou estado de necessidade exculpante?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1129, 4 ago. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8716. Acesso em: 26 abr. 2024.

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