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Colisão entre direitos fundamentais

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11/08/2006 às 00:00
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4. O Fenômeno da Colisão entre Direitos Fundamentais e suas Soluções

4.1. O Princípio da Razoabilidade

De todo princípio emana uma força vinculante que limita em maior ou em menor grau as atividades do poder público, tendo sempre incidência obrigatória na condução das diretrizes do Estado, que encontra nos princípios o reflexo de sua própria estrutura ideológica.

O princípio da razoabilidade decorre da criatividade da jurisprudência constitucional norte americana a partir da evolução do procedural due process of law para o substantive due process of law, figurando como instrumento controlador do Poder Público na medida em que impõe elementos de ordem subjetiva e objetiva, embasados na razão, bom senso, equilíbrio e justiça, para aferir legitimidade aos atos estatais, seja na esfera executiva, legislativa ou judiciária.

Leciona Alexandre Câmara (1998, p. 42), que "a garantia substancial do devido processo legal pode ser considerada como o próprio princípio da razoabilidade das leis". Isto porque, ao assegurar que o devido processo legal é princípio de incidência não apenas processual, mas igualmente importante no âmbito do direito material, foi inaugurada discussão acerca da possibilidade de exame meritório dos atos emanados pelos agentes estatais, traduzindo, neste contexto, uma idéia de razoabilidade (reasonableness) e racionalidade (rationality), uma noção de ponderação entre os meios empregados pelo poder público e os fins almejados, de forma a proporcionar solução adequada e menos onerosa à sociedade.

O princípio da razoabilidade é um parâmetro de valoração dos atos do Poder Público para aferir se eles estão informados pelo valor superior inerente a todo ordenamento jurídico: a justiça. (BARROSO, 1999, p. 215)

A razoabilidade surge, assim, no contexto do Estado Democrático de Direito como cânone do direito constitucional moderno, que irradia-se por todo o ordenamento jurídico, e funciona como a medida da legitimidade dos atos do poder público, evitando medidas arbitrárias e desarrazoadas.

Urge de plano destacar a fungibilidade dos termos razoabilidade e proporcionalidade, muitas vezes utilizados de forma indistinta pela doutrina.

De logo, existe uma diferença territorial nos dois termos: a terminologia razoabilidade, conforme dito, é oriunda dos Estados Unidos, enquanto que proporcionalidade (Verhältnismässigkeitsprinzip) é uma construção jurisprudencial do direito alemão.

A rigor, em ambos os países o conteúdo dos dois princípios é exatamente o mesmo. Contudo, a jurisprudência alemã forneceu elementos ou sub-princípios que compõe a proporcionalidade, quais sejam, o princípio da adequação (Geeignetheit), o princípio da necessidade (Enforderlichkeit) e o princípio da proporcionalidade em sentido estrito (Verhältnismässigkeit).

Desse modo, o juízo da proporcionalidade, nos moldes do direito alemão, parte da análise da adequação, ou seja, do grau de eficácia dos meios disponíveis para atingir ao fim almejado.

Após a constatação da idoneidade (princípio da adequação), é verificado se o meio escolhido é necessário ou exigível, é dizer, se revela-se indispensável para a conservação dos direitos em questão de modo que inexista solução menos gravosa (princípio da necessidade).

Obviamente o princípio da necessidade só se aplica a partir de uma situação concreta, envolvendo "o grau de afetação do destinatário, em função do meio eleito" (BARROS, 2003, p. 83) em que, uma vez encontrado o meio mais idôneo, é necessário examinar se dele resultará a menor restrição possível.

Por fim, o princípio da proporcionalidade em sentido estrito traduz a idéia de equilíbrio entre valores e bens, ou seja, entre o meio escolhido e o fim desejado, viabilizando o controle do excesso.

Os princípios da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito guardam íntima relação, mas não se confundem, operando em planos distintos: a necessidade é a constatação de que o meio idôneo é o menos gravoso e a proporcionalidade em sentido estrito analisa se esse meio menos gravoso presta-se aos fins perseguidos, sem causar desequilíbrio na relação meio-fim.

Para Alexy (1997, p. 113), a necessidade trata de uma otimização com relação a possibilidades no plano fático, e a proporcionalidade em sentido estrito engloba a otimização das possibilidades contidas no plano jurídico.

Conquanto essa decomposição tenha sido elaborada pela jurisprudência alemã, no direito norte americano, a análise da razoabilidade opera-se com critérios semelhantes, ainda que não esquematizados nessa mesma estrutura, donde conclui-se que o princípio da razoabilidade e da proporcionalidade em sentido amplo traduzem a mesma idéia.

Todavia, cabe asseverar que, pelo próprio significado dos dois termos, não se pode fazer uso dos mesmos indistintamente, como se sinônimos fossem.

A rigor, a proporcionalidade denota noção de equilíbrio ponderado, ou seja, equivale somente à proporcionalidade em sentido estrito do direito alemão. Adequação e necessidade transcendem o plano denotativo da proporcionalidade, amoldando-se no bojo da razoabilidade.

Logo, proporcionalidade e razoabilidade, a despeito de uma boa parte da doutrina pátria e do próprio STF, não são sinônimos, inobstante falar em razoabilidade pressupõe falar em proporcionalidade, haja vista constituir esta uma exigência daquela, cujo juízo só se faz perfeito após a escolha do meio mais idôneo, menos restritivo e mais equilibrado através da ponderação dos interesses em apreço que resulta em uma equânime distribuição de ônus.

A Constituição brasileira não cuida em dispositivo específico do princípio da razoabilidade. O assento constitucional da razoabilidade no ordenamento pátrio decorre da conjugação de outros princípios, mormente o princípio da igualdade e do devido processo legal, possuindo conexão estreita com a legitimidade do Poder Público.

Paulo Bonavides (2003, p. 436) leciona que a razoabilidade é axioma do direito constitucional moderno, funcionando como regra que limita a ação do poder estatal na esfera da juridicidade.

Inexoravelmente, enquanto elemento de interpretação utilizada pela nova hermenêutica constitucional, o princípio da razoabilidade adquire maior relevância na jurisdição constitucional das liberdades, sendo fundamental para a realização do método concretista.

Com efeito, a razoabilidade é condição de efetivação dos direitos fundamentais no sentido de que, conforme será visto adiante, o núcleo ou conteúdo essencial de um direito fundamental (Wesensgehalt) somente pode ser extraído a partir da análise concretista da situação de restrição ilegal do direito sub examen, principalmente nas hipóteses de colisão entre estes direitos.

Guilherme Moraes (2000, p. 70), citando Konrad Hesse, ao referir-se à aplicação da razoabilidade no âmbito dos direitos fundamentais, aduz que a limitação a um direito fundamental deve ser adequada na proteção do bem jurídico, necessária para estabelecer o meio mais ameno e proporcional no sentido de fornecer equilíbrio entre o peso e o significado do direito.

4.2. O Fenômeno da Colisão

O fenômeno da colisão entre direitos fundamentais assemelha-se ao conflito entre princípios, eis que o conteúdo de um direito fundamental é abrangente e abstrato, informativo de toda a atuação do poder público, sendo possível capturá-lo apenas diante da situação subjetiva materializada.

A par da distinção entre regras e princípios, entendendo ambos como espécies do gênero norma jurídica, é certo que a colisão entre regras é solucionada no plano de validade da norma, em conformidade com os critérios cronológico (lex posterior derogat priori), hierárquico (lex superior derogat lex inferior) e da especialidade (lex specialis derogat generali). A aplicação das regras decorre da simples subsunção.

Por outro lado, a colisão de princípios está localizada em plano axiológico, não podendo haver preponderância de um sobre o outro, mas sim a ponderação dos interesses jurídicos em conflito no intuito de harmonizá-los para então alcançar solução, sendo garantida a menor constrição possível.

Para que reste caracterizada a colisão entre direitos fundamentais, deve-se partir de duas premissas, quais seja, o entendimento de que os mesmos permitem o indivíduo a formular pretensões negativas ou positivas perante o Estado, ou seja, "fazer reivindicações, reclamar condutas estatais" (AMARAL, 2001, p. 116) e a possibilidade de limitação.

Em tese, os direitos fundamentais são ilimitados. Contudo, são duas as hipóteses em que sofrem limitação legítima: no caso de elaboração, fulcrada em exigência constitucional, de norma restritiva de direito fundamental e quando um ou mais direitos fundamentais colidem entre si (colisão stricto sensu) ou com outro princípio constitucional (colisão lato sensu).

De qualquer maneira, é necessário que seja firmado o entendimento de que não existe hierarquia entre direitos fundamentais. Em que pese uma parte da doutrina advogar a idéia de hierarquia ontológica, em que o direito à vida é o direito supremo e que todos os demais são a eles submissos, ou mesmo utilize o princípio in dubio pro libertate, o escalonamento hierárquico dos direitos fundamentais é incompatível com sua natureza e com sua função no Estado Democrático de Direito.

É claro que, no sistema brasileiro de Constituição rígida, há hierarquia entre algumas normas constitucionais, evidenciadas pela proteção de alguns dispositivos sob a forma de cláusulas pétreas, o que permite considerar a existência normas constitucionais inconstitucionais. Porém, essa verticalização das normas constitucionais não se aplica entre os direitos fundamentais, que gozam da mesma proteção no bojo da Constituição.

Na realidade, os direitos fundamentais possuem a qualidade da "supraconstitucionalidade" (SAMPAIO, 2002, p. 730), que significa a superioridade de certas normas, explícitas, como os direitos fundamentais, ou implícitas, como o princípio da razoabilidade, em relação ao conteúdo da Constituição.

Admitir a possibilidade de um ou mais direitos fundamentais serem superior aos demais é impor uma espécie de tirania de valor, esvaziando o conteúdo dos direitos fundamentais, observado diante da colisão entre os mesmos.

Por exemplo, se o direito à vida fosse sempre superior aos demais direitos, não seria admitido pela legislação pátria o aborto em caso de estupro, já que inexiste risco de vida à mulher e ao feto. Nesse caso conflitam dois direitos fundamentais: o direito à vida do feto e o direito à honra da mulher vítima da violência, tendo o legislador, ao ponderar os interesses jurídicos em questão, optado por prestigiar a honra da mulher em detrimento da vida do feto.

O STF, seguindo a orientação das cortes constitucionais italiana, alemã, portuguesa, francesa, espanhola e norte americana, posicionou-se no sentido de impossibilidade de escalonamento dos direitos fundamentais, gozando todos da mesma proteção constitucional.

A concepção de que os direitos fundamentais estão todos no mesmo patamar constitucional, conduz ao desenvolvimento de uma lógica flexível, ou seja, de balanceamento dos valores envolvidos na situação concreta, partindo de um juízo de razoabilidade no sentido extrair o conteúdo dos direitos fundamentais conflitantes para harmonizá-los, nem que dada as circunstâncias apresentadas, um prepondere sobre os demais.

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4.3. Técnicas ou Critérios de Solução: a Ponderação de Interesses

Uma vez caracterizada a colisão entre direitos fundamentais (colisão stricto sensu), cabe ao aplicador da lei fazer uso do método concretista e, através da razoabilidade, ponderar os interesses, os bens jurídicos tutelados a fim de fornecer a melhor solução.

A ponderação de interesses ou bens, enquanto técnica de decisão que, de acordo com Daniel Sarmento (IN: TORRES, 2001, p. 55), "atribui especial relevância às dimensões fáticas do problema", pressupondo uma coordenação e conjugação dos bens jurídicos conflitantes ou concorrentes de forma a harmoniza-los nas circunstâncias da situação material, e evitando o sacrifício total de uns em relação aos outros.

No que concerne à jurisdição constitucional das liberdades, a ponderação de interesses, realizada com base na razoabilidade, é a técnica mais adequada para dirimir conflitos entre direitos fundamentais. Somente a ponderação entre os valores em questão pode resultar na escolha da melhor medida.

No entanto, para que seja procedida a ponderação, impende antes extrair, a partir do caso concreto, o denominado pela doutrina alemã de núcleo essencial da norma (Wesensgehalt).

O núcleo essencial é o conteúdo mínimo e intangível do direito fundamental, que deve sempre ser protegido em quaisquer circunstâncias, sob pena de fulminar o próprio direito. Assim é que as restrições aos direitos fundamentais encontram sua constitucionalidade na preservação ao núcleo essencial do direito.

Nesse diapasão, Otto Prado (apud MORAES, 2000, p. 65) expõe que o núcleo essencial, ou conteúdo essencial, "limita a possibilidade de limitar, isto é, estabelece um limite além do qual não é possível a atividade limitadora dos direitos fundamentais".

Logo, um direito fundamental só pode ser considerado ilegitimamente restringido se seu núcleo essencial for afetado.

A busca da essencialidade do direito fundamental pode ser feita de acordo com duas teorias, ambas desenvolvidas na Alemanha: a absoluta, para a qual o núcleo essencial é extraído de forma abstrata, independente de circunstâncias fáticas norteadoras, e a relativa, na qual o núcleo essencial só pode ser obtido a partir da situação concreta, ou seja, é mensurado somente em face do conflito.

A doutrina portuguesa3 é partidária da teoria absoluta do núcleo essencial do direito fundamental. Nada obstante, mais conducente com a lógica flexível e com o método concretista é a teoria relativa do núcleo essencial, que cede espaço à aplicação da técnica da ponderação de interesses.

O ordenamento constitucional brasileiro não menciona, ao contrário das Constituições de países como a Alemanha (art. 19. 2), Portugal (art. 18.3) e Espanha (art. 53.1), o núcleo essencial dos direitos fundamentais, mas não há dificuldade de deduzir que ele é inerente à própria natureza destes direitos, inexistindo motivo para que no exercício da jurisdição constitucional das liberdades seja declinada a aplicação da técnica da ponderação de interesses efetuada a partir do núcleo essencial, extraído com base no princípio da razoabilidade.

Para que a colisão entre direitos fundamentais seja dirimida, a doutrina alemã desenvolveu uma técnica, com fulcro no método concretista, que consiste em dois momentos: o Tatbestand e a ponderação de interesses.

No primeiro momento (tatbestand), ocorre a determinação do âmbito de proteção dos direitos fundamentais envolvidos de acordo com as situações fáticas que a situação subjetiva revela, configurando a efetiva colisão, de modo a eliminar a possibilidade de uma colisão apenas aparente.

Feito isso, o segundo momento caracteriza-se pela ponderação dos interesses jurídicos em conflito, levando ao aplicador a extrair o núcleo essencial dos mesmos de modo a causar o menor sacrifício possível, devendo, para tanto, utilizar-se dos princípios da unidade da Constituição e da razoabilidade. Somente dessa forma é que ocorre a máxima proteção e concretização dos direitos fundamentais.

A técnica da ponderação de interesses na seara da jurisdição constitucional das liberdades constitui área de resistência da jurisprudência constitucional pátria.

Com efeito, ainda que as colisões entre direitos fundamentais estejam na ordem do dia, a técnica jurídica brasileira ainda não se encontra no mesmo nível em que estão os países europeus, mormente Alemanha, Portugal e Espanha.

Em assim sendo, as decisões proferidas na solução de colisão entre direitos fundamentais não aborda com clareza o tema, muito menos utiliza os métodos e técnicas específicos, o que provoca uma sub proteção aos direitos fundamentais consagrados em nossa Constituição.

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Sobre a autora
Ana Carolina Lobo Gluck Paul

mestranda em Direito Civil comparado pela PUC/SP, professora de Direito Civil na Faculdade do Pará, advogada em Belém(PA)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PAUL, Ana Carolina Lobo Gluck. Colisão entre direitos fundamentais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1136, 11 ago. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8770. Acesso em: 22 nov. 2024.

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