4.1 A loucura na visão dos autores trágicos da Grécia Antiga
Os autores trágicos, notadamente Ésquilo e Eurípedes, apresentam traços da credulidade na intervenção cósmica sobre o comportamento humano. Embora quisessem retratar em sua obra a vida humana, com suas aberrações, e não visassem à psicopatologia, aos olhos atuais pode-se sustentar que traçaram complexos quadros clínicos de insanidade.
Um dos personagens de Ésquilo, denominado Orestes, vive em conflito por ter de obedecer às imposições divinas, que coincidem com a norma social. Deve matar a mãe adúltera, para vingar o próprio pai. Sente-se dominado por forças sobrenaturais, contra as quais não pode se insurgir. Já a personagem Cassandra apresenta loucura profética. Seu castigo é o descrédito em suas previsões e a desmoralização no meio social.
Eurípedes, de formação filosófica mais racionalista, dado o convívio com os sofistas e com Sócrates, começa por afastar a compreensão mitológica da loucura. Para o trágico grego, a loucura é fruto de contingências naturais humanas, como paixão, ódio, vergonha, instinto, em conflito com a norma. Quando alude a algum deus, fá-lo por mera referência, ante a falta de um sistema de conceitos psicológicos sobre a loucura, sem que aquele fosse responsável pelo comportamento humano desequilibrado.
O autor reflete a natureza do homem como sendo contraditória, conflitiva, por vezes patológica. Através de seus personagens, apresenta quadros de melancolia, mania, paranóia e esquizofrenia. Destacam-se Freda e Medéia como sujeitas a conflitos causados pela paixão. A primeira é melancólica; vive em conflito entre a norma social ou ética e seu desejo, mais tarde chamado de forças da libido, na expressão de Freud.
Já Medéia apresenta um quadro de manie raisonannte, para usar a terminologia do século XIX. Reflete perda de afetividade e do controle ético sobre a vontade, ao desejar matar seus filhos. No entanto, não sofre a perda da racionalidade e da consciência nem abalo na imaginação.
Eurípedes também cria um personagem denominado Orestes. Exemplifica um caso crônico de paranóia. O quadro clínico faz-se sempre presente, mesmo nos momentos em que a personagem não está em crise. Orestes sente-se perseguido por mulheres. Quer matá-las, temendo ser emasculado por elas. O autor grego aborda, em síntese, um conflito de definição sexual.
Na obra derradeira, intitulada As Bacantes, Eurípedes traça um quadro de esquizofrenia. Suas personagens buscam a loucura extática, como forma de sair de si e de desrecalque de necessidades sexuais reprimidas. Há perda da própria personalidade e do contato com a realidade.
Desse modo, Penteu, criado para o poder, sente-se em conflito por desejar cultuar um deus bissexual como Dioniso. Já Agave e as bacantes vivem rituais de orgia. Representam a libertação feminina em face da prepotência masculina. Entretanto, tal situação de desrecalque é paradoxal: cultuam um deus, ao invés de uma deusa, e vivem seus rituais de prazer coletivo por concessão de uma figura masculina.
O modelo psicológico de compreensão da loucura, que é refletido na tragédia grega, indica a soberania da natureza animal ou do instinto sobre o comportamento e a vontade do homem. Ainda que os autores anunciem, em breves referências, a permissão ou imposição dos deuses, detêm-se mais na explicação de conflitos passionais dos homens, provocados por suas próprias contingências naturais. Este modelo é superado ou substituído por outros, até sua retomada parcial por Pinel, no final do século XVIII.
4.2 A doutrina de Pinel e seu enfoque psicológico ou moral
A Psiquiatria, como especialidade médica, pode dizer-se iniciada a partir da publicação da obra de Philippe Pinel, intitulada Tratado Médico-filosófico sobre a Alienação Mental. Antes dele, não pode ser entendida como existente, pois limitada a capítulos dentro do estudo da medicina. Atribui-se a Pinel a autonomia da medicina do espírito e o mérito de aplicação de técnicas revolucionárias para a época, como soltar os grilhões e liberar os loucos das correntes. A liberdade a eles concedida, no entanto, dá-se dentro dos muros dos hospícios. A esse "gigantesco aprisionamento moral é que se está acostumado a chamar de a libertação dos alienados por Pinel e Tuke". [73] (FOUCAULT, 1995: 503)
Em vinte e oito de agosto de 1793, Pinel assume a direção do Bicêtre, transformado no principal centro de hospitalização de insensatos, a par da previsão legislativa de 1790, determinando a construção de casas para os insensatos. O Bicêtre, construído inicialmente para abrigar a pobreza, recepciona, além dos loucos, velhos, indigentes e condenados, aos quais se somam os presos políticos da Revolução Francesa. "Pinel recebe o mérito de ter protegido, sob os andrajos dos pobres, a aristocratas e sacerdotes". [74] (FOUCAULT, 1995:463)
Para Pinel, lesões no intelecto e na vontade podem provocar a loucura. Deve-se observar os comportamentos, os gestos, o modo de falar dos pacientes. Isto porque as aberrações comportamentais refletem a ocorrência de lesão ou comprometimento das faculdades mentais. Observando-se os traços comuns, pode-se evoluir para a especificação da doença, constatando-lhe a natureza e elaborando sua classificação, passos fundamentais para o diagnóstico. Para Isaias Pessoti [75] (1995:146), o apego de Pinel à instituição hospitalar pode ter origem nessa exigência metodológica.
A observação clínica, para ter os efeitos pretendidos por seu idealista, não pode se processar nas condições que vinham sendo praticadas dentro dos asilos e hospícios. Torna-se necessária a libertação dos loucos das correntes, para que alcance seus objetivos. A observação deve dar-se sobre o comportamento em seu estado natural e, não, distorcido pelo desconforto e pela violência das antigas práticas asilares. Quando a contenção à força for necessária, deve utilizar a camisa-de força ( gilet de force).
Dá-se, pois, a introdução da função médica no Bicêtre. Para Michel Foucault [76] (1995:464), a própria nomeação de Pinel para a direção desse hospital prova que a presença de loucos no Bicêtre já é um problema médico. Isto porque Pinel é conhecido por seus artigos, publicados na Gazzete de Santé, sobre as doenças do espírito. Passando o internamento a ser considerado por seu valor terapêutico e a loucura a ser vista como doença, estabelece-se uma relação necessária entre asilo e doença. [77](FRAYZE-PEREIRA, 1993:83)
O Traité inova na classificação nosográfica. O termo "alienação mental" passa a englobar as formas clássicas de loucura: mania e melancolia. A primeira, chamada de "delírio total", caracteriza-se por desordens da atividade ideativa, reveladas pela agitação ou furor do paciente, as quais não implicam, necessariamente, uma lesão no cérebro ou perda total da racionalidade. Pode-se aqui recordar a personagem Medéia, de Eurípedes. [78] Já a melancolia apresenta o "delírio exclusivo", tristonho, absorto em um só pensamento. A atenção do melancólico permanece fixa em um dado objeto. O critério básico de diferenciação entre uma forma e outra é, pois, a extensão do delírio, generalizado na mania e limitado a uma idéia fixa na melancolia. [79](PESSOTI,1995:169)
O tom moralista no tratamento prescrito por Pinel pode ser percebido na citação das causas morais do desarranjo mental. Destacam-se o tipo de educação, o modo de vida e a excessiva religiosidade, além da revalorização das paixões, já presente ao tempo de Eurípedes, como cólera, terror, dor, ódio, amor, ciúme, inveja, etc., como fontes da loucura. A inconstância dos hábitos funcionaria como "prelúdio de uma alienação patente". [80] (PINEL Apud PESSOTI, 1995:158) Sob esta ótica, a loucura pode ser vista como "produto da imoralidade ou dos hábitos inadequados" [81](PESSOTI, 1996:106), sobretudo das classes sociais inferiores.
Diante dessas causas "morais" da loucura, Pinel acredita ser possível revertê-la através da educação. Por isto, emprega processos disciplinares em seus pacientes. O tratamento, enquanto reeducativo, operando ao nível de convencimento do paciente, é dotado de conteúdo moralizante, pois busca a modificação de comportamentos, tidos como inadequados. Outro toque de moralidade dá-se pela reprovação a certos comportamentos sexuais, denominados vícios. "É assim que o médico se torna ordenador não só da vida (psíquica)do paciente mas também o agente da ordem social, da moral dominante". [82] (PESSOTI, 1996:128)
O trabalho terapêutico de Pinel é dirigido ao tratamento das paixões excessivas ou desviantes dos pacientes. Para curar os excessos e eliminar os delírios, passam a ser utilizadas experiências emotivas igualmente fortes. O confronto entre a emoção que provoca o delírio e a empregada para suplantá-la deve estimular uma elaboração racional do paciente, causando a superação do pensamento delirante. Para que isto ocorra, o paciente deve ter um resíduo de racionalidade. Caso contrário, o tratamento moral apresenta-se ineficaz.
A loucura, vista como um desequilíbrio na natureza do homem, no que se refere à sua razão ou a seus afetos, mostra-se passível de correção. No entanto, o tratamento moral exige um resíduo de racionalidade do paciente para ter eficácia. Quando o tratamento não obtém a reforma dos costumes, deve cessar a competência clínica e dar-se início aos "processos repressivos adequados" [83] (PESSOTI, 1995:150) ou mesmo prescrever o confinamento definitivo.
O confinamento puro e simples aplica-se aos fanáticos religiosos que venham a desobedecer as ordens, justificando seu dever de só obedecer a Deus. Aplica-se, igualmente, aos que resistem ao trabalho ou se dedicam ao roubo. Percebe-se aqui, novamente, o tom moralista da obra de Pinel, ao conferir conseqüências mais graves a faltas contra a sociedade burguesa, às quais nem a loucura serve como desculpa ou causa de perdão.
Com estas inovações, não há adequação exata do tratado de Pinel aos modelos de explicação da loucura anteriormente analisados. Não apresenta conceitos exclusivamente organicistas, nem faz uso de explicações mitológicas. Pinel vislumbra a loucura sempre como lesão da mente, ainda quando causada por excesso de alguma paixão. Rejeita, igualmente, a apresentação dada por Eurípedes à loucura, como descontrole passional. Nesse desarranjo intelectual ou afetivo não há, necessariamente, uma lesão anatômica do cérebro, daí indicar a medicina moral para seu tratamento.
4.2.1 O tratamento moral e suas conseqüências
O tratamento "moral" inspirado em Pinel não é isento de críticas. Como visto, centra-se no poder do médico, como defensor da razão e depositário da norma social. Para Isaias Pessoti, este é o ponto inquietante da práxis psiquiátrica, pois o médico passa a ter um compromisso "com alguma forma de ordem pública, alguma forma de conduta socialmente aprovada e na qual o comportamento aberrante deve ser enquadrado". [84](1996:129)
Mesmo sendo extremamente valorizada, é bom ressaltar que a intervenção médica não se dá por seus conhecimentos científicos. São escolhidos para trabalharem com os insanos aqueles têm grandes conhecimentos. Estes podem provir da experiência asilar, não sendo necessário sejam conhecimentos objetivos da medicina ou que seu aplicador seja um médico, bastando fosse um sábio. Kant, a respeito, prefere que o contato com os insanos seja realizado por filósofos. [85] (KANT Apud FOUCAULT, 1995:497) Daí ser possível afirmar que o médico, nessa época, domina a loucura não por a conhecer, mas por circunscrevê-la e discipliná-la dentro do asilo.
Com a libertação dos loucos das correntes, deixando-os relativamente livres dentro dos muros, surgem sintomas e aspectos da loucura que antes não eram percebidos. Os loucos passam a ser agrupados em pavilhões segundo os sintomas comuns que apresentam. Pinel introduz alguma racionalidade na acomodação dos loucos, segundo as peculiaridades de sua patologia. [86] (PESSOTI, 1996:165). O manicômio passa a servir como espaço privilegiado para a observação sistemática dos comportamentos e seu diagnóstico.
Abandonada a finalidade de pura exclusão e custódia, modifica-se o papel da medicina. A equipe médica passa a ter finalidades de cura e terapia. Assume grande importância, pois deve permanecer o maior tempo possível com o paciente, interagindo com o mesmo, para buscar resgatar sua racionalidade. Institui-se, pois, a relação terapêutica médico-paciente, vista como fundamental para alcançar as alterações comportamentais pretendidas. Os diversos papéis que o médico desempenha são explorados, a final, por Freud. [87](FOUCAULT, 1995:503)
Dá-se, ainda, a modificação arquitetônica dos manicômios. O trabalho de controle e vigilância fica facilitado em prédios térreos. Devem ser eliminadas as escadas e os andares, para que os enfermeiros sempre vejam os pacientes e com eles mantenham contatos. A visita médica aos pacientes passa a ser mais cômoda. Em caso de problemas, não é necessário arrastar o paciente escadas acima, quando atravessa, por exemplo, uma crise de fúria. Ou, nessa mesma oportunidade, um enfermeiro pode fugir e evitar entrar em confronto físico direto com o paciente, cuja agressão teria efeitos na evolução clínica do paciente.
Tais modificações só são possíveis pela mudança de enfoque sobre a loucura. Enquanto adotado o modelo organicista, tais providências não se fazem recomendadas. O sucesso do tratamento depende das práticas farmacológicas, para as quais pouco importa a relação afetiva estabelecida entre médico e enfermeiros para com o paciente. O efeito do medicamento, ainda, opera-se independentemente das condições físicas das instalações manicomiais.
Os organicistas aplicam tratamentos físicos violentos, além de numerosos psicofármacos ou psicotrópicos, buscando atingir o sistema nervoso. Pretendem alterar o estado do cérebro, atuando diretamente sobre ele, para modificar as idéias delirantes e o comportamento desviante. [88](PESSOTI, 1996: 293) As emoções e percepções do paciente não são consideradas, apenas a lesão no encéfalo.
Ao lado das práticas inovadoras, Pinel e seus seguidores, com destaque para Esquirol, fazem uso de tratamentos físicos. Tal qual os organicistas, empregam sangrias, vomitórios, duchas frias, entre outros métodos. Fazem-no, porém, por acreditarem em experiências sensoriais e cognitivas novas, contrárias às que o comportamento ou a fala delirante do alienado evidencia, como forma de corrigir os distúrbios mentais.
Os métodos terapêuticos dos organicistas do século XVIII passam a ser utilizados como castigos. Se anteriormente a ducha era utilizada para atuar sobre o sistema nervoso, passa a servir como punição. Durante sua aplicação, reforça-se a idéia de que aquela medida é para o benefício do próprio paciente e que sua aplicação é feita com pesar.
Repete-se o método tantas vezes quantas forem necessárias para o paciente reconhecer sua falta, até que ocorra a interiorização da "instância judiciária" e o nascimento do remorso. [89](FOUCAULT, 1995:494-495) O louco passa a se sentir como doente e acreditar no poder de cura do médico; introspecta a etiqueta de doente e modifica sua vida em função dela. Passa a ser apenas o papel que representa, perdendo a identidade pessoal.
Pinel inaugura, pois, uma nova visão da psicopatologia [90] (PESSOTI,1996:66), inovando no método de diagnóstico, ao pregar a observação metodológica. Afasta não só as idéias dominantes como também os padrões de cientificidade vigentes no final do século XVIII. Influencia uma nova atitude científica, baseada na "visão clínica da loucura" ou "na clínica psiquiátrica", que implica a convivência e a interação com o paciente, conhecendo-lhe a "vida biológica, as atividades mentais e o comportamento social". [91](PESSOTI, 1995:170)
Com a difusão dos manicômios, o tratamento moral passa a ser utilizado somente com o sentido disciplinar. Utilizam-se os métodos repressivos com desvirtuamento e de forma excessiva, buscando-se mais o controle da instituição manicomial do que o bem do paciente alienado.
Na metade do século XIX, o método de Pinel e Esquirol está deteriorado. O manicômio retorna à sua finalidade primordial de instrumento de segregação. A custódia dos loucos deve dar tranqüilidade à família e a sociedade. A sua cura, para ser científica, deve ter bases orgânicas, encontrando fortes aliadas nas drogas ou psicofármacos. O conhecimento psicopatológico volta a ser abandonado, repetindo-se a tendência histórica de retorno a outro modelo de compreensão da loucura, desta feita, ao modelo organicista.
4.2.2 Reflexos do modelo psicológico pineliano sobre o Direito Penal
Importa referir que o louco adentra o século XIX como coisa médica. A sua falha moral transforma-se em fenômeno físico observável. Surge como objeto de conhecimento de um não-louco, dotado de saber científico. Separam-se tanto loucos e não-loucos como especialistas e não especialistas. O especialista é aquele autorizado a proferir determinado discurso impessoal, neutro e competente, assim entendido o discurso instituído, socialmente permitido e autorizado. A crença na competência científica alimenta o prestígio desse discurso.
A racionalização do mundo afasta a crença nos mágicos, nos deuses e demônios. Abandona-se o modelo mítico-religioso. O modelo psicológico sustenta-se sobre um fundo organicista. Não é um modelo puro. A Psiquiatria vem atender aos anseios de uma justificativa científica para o tratamento dado aos loucos. Destina-lhes os hospícios, "por razões científicas", como espaço de exclusão, discriminação e local de disciplina. No fundo, "o hospício é um lugar para se isolar os doentes (exclusão), incapacitá-los de conviver com os normais (reclusão) e vigiar suas atitudes, a fim de não oferecerem perigo a si e aos outros (custódia)". [92] (SERRANO, 1992:32)
O poder disciplinar é aplicado não só nos asilos psiquiátricos, como na penitenciária, casa de correção, estabelecimentos de educação e hospitais. Há uma divisão constante entre normal e anormal, bem como "um conjunto de técnicas e de instituições que assumem como tarefa medir, controlar e corrigir os anormais". [93] (FOUCAULT, 1996:176) Dentre as técnicas, destaca-se o emprego de psicotrópicos, sob a influência, na atualidade, de multinacionais farmacêuticas, que os vêem como uma das mais seguras rendas industriais.
Em matéria de loucura, o homem contemporâneo passa a ser aquilo que o discurso competente ou fala autorizada diz que ele é, enquadrado em espécies patológicas e tratado de acordo com determinada teoria. Dependendo do conceito teórico de loucura, os loucos podem ser recuperados ou não, variando também os procedimentos terapêuticos a que são submetidos. [94] (FRAYZE-PEREIRA: 1993:97) Urge salientar que a Psiquiatria não é uma ciência pura ou neutra. Reflete a visão do mundo, a mentalidade e ideologia da sociedade que a pratica e patrocina. [95] (SERRANO: 1992:9)
Quando há prática de crimes por loucos, mesmo sendo absolvidos, devem ser segregados, diante de sua periculosidade. Aplicam-se-lhes as medidas de segurança. A conseqüência da absolvição é a constrição da liberdade, o mesmo efeito de uma condenação. Justifica-se com a necessidade de tratamento.
No entanto, historicamente tem se recomendado o tratamento no meio dos familiares. A finalidade da medida de segurança é, então, de marcar com a exclusão aquele que se desvia da norma. Esconde-se esta violência social sob o rótulo de tratamento. Julga-se não o crime e seu elemento culpabilidade. Julga-se a pessoa que o pratica e sua (a)normalidade, prescrevendo-se técnicas para uma normalização possível. [96](FOUCAULT, 1996:24) Em relação aos loucos, aplica-se o Direito Penal do Autor.
Para Michel Foucault, as conseqüências do modelo pinelista são três: a) permite-se que a liberdade do louco atue, mas num espaço fechado e rígido; b)se há liberação das conseqüências da prática de um crime, por outro lado o louco é visto como aprisionado por um determinismo dos mecanismos que atuam sobre ele, tornando-o irresponsável. Sua irresponsabilidade é assunto de apreciação médica. O louco vive a inocência do crime, em situação de não-liberdade. c) as correntes que impedem o exercício da livre vontade do louco são abertas. Contudo, o querer daquele é substituído pelo do médico. [97] (1995:507)
Não é demais recordar que o conceito de loucura varia de sociedade para sociedade, é um conceito construído. [98] (ARANHA, MARTINS, 1993:39) O mesmo acontece com a enquadramento de determinada conduta como infração penal. Nesse sentido, diz Michel Foucault que " a sociedade define, em função de seus próprios interesses, o que deve ser considerado crime. [99](1996:94) Na esteira desse entendimento Jostein Gaarder, na obra sobre Filosofia que ocupa os primeiros lugares de vendas desde seu lançamento, ao sustentar que a sociedade determina o que é permitido ou não. [100(GAARDER, 1996:74)
A conduta humana, normal ou patológica, individual e grupal, só é inteligível quando analisada dentro do contexto sócio-cultural em que se verifica. Torna-se culpável ou não, a depender do grupo social e do modelo social onde se realiza.
Todas as entidades nosológicas clínicas podem ser incluídas no conceito genérico de loucura ou alienação. Têm recepção pelo Direito Penal quando atingem a inteligência e a vontade, requisitos formadores da imputabilidade. Outros setores do psiquismo que sofram alterações, como as alterações psicopatológicas da percepção e os transtornos de afetividade, lembrados por Francisco Muñoz Conde [101](1988:143), não são considerados como fatores de inimputabilidade. A respeito, o Código Penal Brasileiro é expresso, ao ditar que a paixão não exclui a imputabilidade.
A internação do louco por cometimento de crime, contra sua vontade, é vista como crime contra a humanidade, similar à escravidão. Em face disto, as correntes psiquiátricas atuais, sobretudo, a Antipsiquiatria, combatem esse internamento. Francisco Muñoz Conde [102] (1988:150) sustenta que se a finalidade da medida é a cura do doente mental, a sua imposição, quando não seja necessária para a cura ou seja, inclusive, inútil, significa pura e simplesmente repressão. Nesse caso, o internamento converte-se em prisão por tempo indeterminado, até perpétuo. O internamento obrigatório do doente mental se converte em um substitutivo de pena, com a mesma finalidade aflitiva e defensiva.
A psiquiatria moderna demonstra que a periculosidade permanente de alguns doentes é muito reduzida. O percentual de doentes mentais que comete crimes também é pequeno. [103](ROCHA Apud MATOS:1997) No entanto, suas recomendações não vêm sendo consideradas pelo Direito Penal. Mitifica-se sua periculosidade, exagerando-lhe a quantidade e qualidade. Alcança-se um pretexto para imposição de medida essencialmente repressiva. [104](KARAM, 1993:158)