Dentre tantas polêmicas que os operadores do direito enfrentam diariamente quando se deparam com leis contraditórias, redações confusas e incoerentes, uma delas foi sanada em definitivo recentemente. Referimo-nos ao advento da lei 11.313/06 que promoveu alterações na redação de duas outras: a famigerada 9099/95 e a 10.259/01, ambas leis dos Juizados Especiais, respectivamente nos âmbitos estadual e federal.
A problemática girava em torno da desigualdade apresentada pelo art. 2º da Lei 10.259/01, que definia os crimes de menor potencial ofensivo para a Justiça Federal de forma mais ampla daquela dos Juizados Estaduais. Dessa forma, a aplicação literal destes dispositivos levava a verdadeiras aberrações jurídicas. Por isso, muitos tentaram contornar a situação aplicando o conceito da lei federal (10.259/01) aos casos da Justiça Estadual, o que, apesar de muitos entendimentos nesse sentido – incluindo-se do STJ e STF –, não era pacífico na doutrina nem na jurisprudência.
O art. 61 da lei dos Juizados Estaduais determinava que crime de menor potencial ofensivo era aquele cuja pena cominada em abstrato não fosse superior a um ano. Em contrapartida, o art. 2º da Lei 10.259/01 o definia como sendo aquele no qual a pena máxima abstrata cominada não excedesse a dois anos. Como dito acima, o conceito dos Juizados Federais era mais amplo. Vale dizer, ainda, que a lei 10.259/01 trazia em seu bojo a proibição da aplicação de regras no âmbito da lei 9099/95. Isso promoveu, até pouco tempo atrás, certa celeuma. Vejamos o porquê.
Note-se que, ao defender a tese da não aplicação do conceito federal ao âmbito estadual (isto é, a não ampliação do conceito de menor potencial ofensivo) haveria, nos casos concretos, situações de notória injustiça. Um exemplo para ilustrar melhor o disparate: o desacato a um delegado federal seria considerado delito de menor potencial ofensivo, possibilitando, então, a transação penal e pena alternativa. Mas, se o desacato fosse contra delegado estadual, o crime não seria considerado de menor potencial ofensivo, não cabendo, portanto, transação penal nem prestação alternativa.
Difícil imaginar o que justificaria tratamento tão desigual. E os princípios da isonomia e da proporcionalidade? Por esta razão o conceito de crime de menor potencial ofensivo deveria ser único, evitando esse tipo de injustiça. Afinal – já dizia Aristóteles, depois lembrado por Rui – "devemos tratar os iguais igualmente e os desiguais desigualmente, na medida da sua desigualdade".
Apenas a título de ilustração, no ano de 2002 foi publicado o primeiro acórdão do extinto TACRIM-SP que dizia não se aplicar o conceito federal ao âmbito estadual (HC n. 398.760-7, 11ª Câmara, relator Juiz Ricardo Dip, j. 25.02.02). Ainda naquele ano o Procurador-Geral de Justiça de São Paulo publicou aviso onde a 2ª Procuradoria de Justiça, firmava, por unanimidade, o Entendimento Uniforme relativo à lei 10.259/01, também no sentido de que fora editada especialmente para regulamentar o Juizado Especial na esfera da Justiça Federal, não se aplicando o conceito à lei 9099/95. Em suma, entendia-se que não havia sido derrogado o art. 61, da Lei 9.099/95.
Os argumentos para a não ampliação do conceito eram baseados na vedação contida no art. 20 da lei 10.259/01 (dizia-se que conquanto se refira ao Juizado Cível, denota a intenção do legislador de não sujeitar o Juizado Estadual às normas estabelecidas em seu bojo). Por outro lado, alegava-se a inconstitucionalidade da lei federal porque extrapolaria a permissão contida no parágrafo único do art. 98 da Constituição Federal, e feriria normas da Lei Complementar n.º 95/98, alterada pela Lei Complementar n.º 107/01.
Vale dizer que havia membros do Ministério Público paulista que defendiam a não ampliação do conceito de crime de menor potencial ofensivo para que o delito de porte de arma não pudesse ser beneficiado pelo abrandamento dado pela lei. Argumentavam que o porte de arma é mais grave do que se costuma imaginar, vez que grande parte daqueles cometem aludido delito não têm em mente "apenas se defender" ou "apenas ter consigo uma arma", mas, no mais das vezes, são indivíduos que estão na iminência da prática de algum crime mais grave, como roubo, seqüestro etc. Data venia, apesar da intenção de resguardar a tranqüilidade pública, não se pode admitir tal argumentação, ainda mais porque, como dito, defender tal posicionamento massacraria a isonomia, pilar do nosso Estado de Direito.
Ainda na problemática que havia, outra questão era sobre a ampliação da competência dos juizados inclusive para delitos que comportassem rito especial. Diferentemente da lei 9.099/95 (o art. 61 da Lei 9.099/95 dizia que eram infrações de menor potencial ofensivo as contravenções assim como os delitos punidos até um ano, ressalvados os casos de procedimentos especiais), a lei dos Juizados Especiais Federais não excluiu de sua competência os crimes que tinham rito especial. O art. 2º, parágrafo único, da Lei 10.259/01 não fazia qualquer ressalva a esse respeito.
O que se extraia disso é que, ampliando-se o conceito de crime de menor potencial ofensivo, também dever-se-ia aplicar a lei a crimes que tivessem rito especial. Logo, também os casos de procedimentos especiais (como, por exemplo, crimes contra a honra) incluir-se-iam no âmbito dos Juizados criminais Estaduais e Federais.
A esse respeito, a 5ª Câmara do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul já havia entendido que o novo conceito de infração de menor potencial ofensivo dado pela Lei 10.259/01 valia também para o âmbito dos juizados estaduais. É o que se decidiu em um Recurso em Sentido Estrito (70003736428, rel. Amilton Bueno de Carvalho), que explanou que o advento da nova lei ampliou o conceito de infração de menor potencial ofensivo por exigência da isonomia constitucional.
Mais tarde, em novo julgado, o mesmo Tribunal não só ratificou seu entendimento anterior a respeito da ampliação da competência dos juizados especiais (para dois anos), bem como firmou posição no sentido de que alcança também os procedimentos especiais.
A nosso ver, deveras acertado o entendimento daquele Tribunal, já que não existia argumento razoável para que fossem excluídos os crimes com procedimento especial do âmbito dos juizados. O procedimento, de per si, não poderia ser considerado obstáculo para que um crime fosse ou não da competência dos juizados.
Assim, apesar de algumas fervorosas opiniões no sentido de negar a aplicação do art. 2º da lei dos Juizados Especiais Federais aos delitos de competência da Justiça Estadual, sempre pareceu mais harmoniosa a corrente que pleiteava sua aplicação, ficando assim, derrogado o art. 61 da Lei 9.099/95.
Com o advento da lei 11.313/06, ainda que o entendimento de ampliação do conceito estivesse caminhando para se consolidar como a interpretação mais correta, pôs-se fim a tais questões. O art. 61 da Lei nº 9.099/95 agora tem a seguinte redação: "Consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa." Ao mesmo tempo em que a lei 11.313/06 alterou o conceito da lei 9099/95, suprimiu aquele que constava da lei 10.259/01. Destarte, o conceito é único para ambas as leis, constando apenas da lei de 1995.
A nova redação põe fim às duas discussões já relatadas, isto é, o conceito de crime de menor potencial ofensivo e a sua aplicação a crimes com ritos especiais – quanto a este último aspecto, porque suprimiu a locução "excetuados os casos em que a lei preveja procedimento especial".
As alterações promovidas pela lei 11.313/06 tardaram, mas, a nosso ver, foi feito o que há muito se esperava: unificou-se de vez o conceito de crime de menor potencial ofensivo e fora deixada de lado a diferenciação em razão do rito. Corretas as alterações desta vez pelo legislador.