A perda de mandato parlamentar por condenação criminal transitada em julgado e a insegurança jurídica causada pela imprevisibilidade das decisões: Uma visão segundo a análise do discurso

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O presente trabalho tem como fito explanar as diversas teorias que explicam o modo como o STF usou as técnicas de interpretação chegando a resultados diferentes ao julgar casos análogos.

RESUMO: O presente trabalho tem como fito explanar as diversas teorias que explicam o modo como o STF usou as técnicas de interpretação chegando a resultados diferentes ao julgar casos análogos (ambos se enquadram no art. 92 do Código Penal), como a AP nº 470 (“Mensalão”) e AP nº 565 (caso senador Ivo Cassol). Através das técnicas da Análise do Discurso, busca-se perquirir o que os Ministros queriam dizer, mas na verdade não disseram. Assim, partindo do olhar para além da frase, o que se quer identificar é o discurso e como essa imprevisibilidade das decisões resulta numa insegurança jurídica.


 

PALAVRAS-CHAVE: STF; análise de discurso; perda de mandato; parlamentares; contradição.


 

INTRODUÇÃO

Vive-se na Era da Informação, disso todos sabem. Nunca se teve tanto acesso a tantas informações em tão pouco espaço de tempo e numa velocidade tão rápida, e isso cresce de forma exponencial. Da mesma forma, é do conhecimento de um sem número de pessoas que um dos principais Princípios que baliza o Direito é o tão conhecido Princípio da Publicidade. E, talvez, em decorrência deste, e também de tantos outros fatores, nunca se questionou tanto os poderes atuantes do País, e dentre eles, evidentemente, o tão aclamado Poder Judiciário, no qual, por vezes, parece estar depositada a maior parcela de confiança do povo brasileiro. No entanto, se tem questionado deveras, nos últimos tempos, sua atuação. E aí se inclui o tão poderoso Supremo Tribunal Federal, que sempre pareceu ter a melhor resposta, a decisão mais justa, e, portanto, digno da última palavra. Mas o que se pode perceber é um crescente questionamento a respeito da justiça e coerência dessas decisões. 

Uma discussão que causou (e ainda tem causado) grande polêmica foi sobre a perda de mandato parlamentar por condenação criminal transitada em julgado, em se saber se essa perda deveria ser automática ou não. Tal discussão tomou força a partir do julgamento da Ação Penal de número 470, referente ao caso que foi tão aclamado, denominado mais comumente como “Mensalão”. 

Pois bem, diante de tal exposição dos principais fatos, deve-se adentrar agora em exemplos palpáveis de decisões do Supremo a respeito da perda de mandado parlamentar por condenação criminal transitada em julgado, onde se poderá perceber que ele nem sempre decide da mesma forma. Mas por quê? O que pode haver por trás de decisões tão dessincronizadas?  

Para se conseguir repostas, deve-se passar primeiro à análise de dois casos (dentre inúmeros outros), em que as respostas do STF, a respeito dessa perda de mandato supracitada, são escancaradamente opostas. Trata-se da AP nº 470 (“Mensalão”) e da AP nº 565 (referente ao caso do Senador Ivo Cassol). 

Em tempo, é preciso entender, mesmo que brevemente, os fundamentos (ou pelos menos alguns deles) das duas correntes opostas, uma que defende a perda automática do mandato e a outra, que defende que a decisão sobre essa perda precisa ser da respectiva Casa Legislativa do parlamentar, ou seja, Câmara dos Deputados ou Senado Federal. 

A Teoria da Análise do Discurso e seus métodos tem um papel fundamental nesta pesquisa. No instante em que tais decisões díspares se colocam diante de todos, é imprescindível a utilização de técnicas capazes de identificar o que de fato ocorre com o Judiciário, interpretando sua linguagem através de suas decisões. O intuito é trabalhar, lançando mão da metodologia e dos conceitos desenvolvidos por Norman Flaircough ao analisar o discurso, a linguagem. A tríade linguagem-ideologia-discurso compõe um todo exemplificativo daquilo que se quer perquirir em sede doutrinária, fundamentação e realização dos preceitos jurídicos pelo Supremo Tribunal Federal. A celeuma não se encerra numa aparente antinomia dos dispositivos jurídicos. Vai além. A forma como o STF vem fundamentando suas decisões, reflete o seu percurso tortuoso na seara jurídica. Noutro giro, a segurança jurídica coloca-se em cheque xeque diante desta imprevisibilidade das decisões judiciais.

PRIMEIRA CORRENTE: perda não automática (decisão política)

Antes, deve-se atentar aos artigos da Constituição Federal que ensejaram tal polêmica, quais sejam: 

Art. 15. É vedada a cassação de direitos políticos, cuja perda ou suspensão só se dará nos casos de: 

III – condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos; 

Art. 55. Perderá o mandato o Deputado ou Senador: 

IV – que perder ou tiver suspensos os direitos políticos; 

VI – que sofrer condenação criminal em sentença transitada em julgado. 

§ 2º Nos casos dos incisos I, II e VI, a perda do mandato será decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal, por maioria absoluta, mediante provocação da respectiva Mesa ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa.

§ 3º Nos casos previstos nos incisos III a V, a perda será declarada pela Mesa da Casa respectiva, de ofício ou mediante provocação de qualquer de seus membros, ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa. 


 

Esta primeira corrente tem seus argumentos estruturados no sentido de que a perda do mandato não deverá ser automática. Tal corrente afirma que a regra do parágrafo 2º é muito clara em determinar que, no caso de condenação criminal transitada em julgado (inciso IV), a perda do mandato somente se dará se a Casa Legislativa decidir nesse sentido. E essa decisão é de natureza política, não ensejando, portanto, a possibilidade de o Poder Judiciário adentrar o mérito da questão. Por isso, diante da aparente antinomia entre a regra do parágrafo 2º do art. 55 (mais específica) e o inciso III do art. 15 c/c a regra do parágrafo 3º do art. 55, a regra a ser aplicada é aquela, visto não deva ser esquecido o Princípio da Especialidade, o qual afirma que a norma especial afasta a incidência da norma geral.

Antes de concluir a exposição de alguns dos argumentos utilizados por essa corrente, é necessário também demonstrar um dos argumentos utilizados por quem defende a perda automática, seguido pela refutação do mesmo. Trata-se do art. 92 de nosso Código Penal:

Art. 92 - São também efeitos da condenação:

I - a perda de cargo, função pública ou mandato eletivo.

a) quando aplicada pena privativa de liberdade por tempo igual ou superior a um ano, nos crimes praticados com abuso de poder ou violação de dever para com a Administração Pública;

b) quando for aplicada pena privativa de liberdade por tempo superior a 4 (quatro) anos nos demais casos. 

Parágrafo único - Os efeitos de que trata este artigo não são automáticos, devendo ser motivadamente declarados na sentença. 

De acordo com o art. 92 do CP, como se pode perceber, a perda do mandato eletivo é efeito de condenação criminal transitada em julgado (desde que se enquadre nos requisitos das alíneas a e b). Sendo necessário esclarecer que o parágrafo único, quando diz que os efeitos de que trata o artigo não serão automáticos, está se referindo ao fato de que o juiz, caso os declare na sentença, deva o fazer motivadamente, trazendo a necessária fundamentação (ao contrário dos casos do art. 91, que tratam dos efeitos automáticos). Mas isso quer dizer que os efeitos não serão automáticos no que se refere a não necessidade de serem declarados motivadamente pelo juiz, ou seja, caso sejam declarados, essa decisão coube ao Poder Judiciário (quando da prolação da sentença). E a partir daí não há o que se falar em um novo julgamento pelo Legislativo, pois a possibilidade de o Congresso decidir sobre os efeitos da condenação criminal no que se refere a perda do mandato parlamentar, implicaria novo julgamento, pelo Legislativo, sobre fato já decidido pelo Judiciário, afrontando o Princípio da Separação dos Poderes. As decisões de mérito transitadas em julgado revestem-se da autoridade da coisa julgada. Daí a perda ser automática nesse sentido.

No entanto, a corrente que defende que a decisão sobre essa perda deva passar pelo Poder Legislativo, alega que é contrário à boa técnica hermenêutica interpretar os incisos IV e VI do art. 55 da Constituição à luz do que prescreve o art. 92 do Código Penal, visto se tratar de norma infraconstitucional, o que significaria uma inversão da hierarquia das fontes.

Outro argumento, também, é o de que a decisão não cabe ao STF, pois imaginar o Poder Judiciário como um tutor geral da República, além de comprometer a legitimidade democrática do poder político, significaria decretar a menoridade das demais instituições.

Nesse sentido, o julgamento da AP nº 565 (caso do Senador Ivo Cassol, condenado por fraude à licitação, com uma pena de 4 anos, 8 meses e 26 dias, em regime inicial semiaberto), onde a decisão do Supremo, com 6 votos a 4, foi o da aplicação do parágrafo 2º do art. 55 da CF, ou seja, que a decisão quanto à perda do mandato deveria ser tomada pela Casa Legislativa respectiva, qual seja, nesse caso, Senado Federal. 

SEGUNDA CORRENTE: perda automática (a decisão não é política)

A corrente que defende a perda automática se utiliza, dentre tantos outros, do argumento de que a Emenda Constitucional 35/2001, que alterou o art. 53 da CF (que trata da proteção de deputados e senadores no que se referem às suas opiniões, palavras e votos) acabou com a exigência de autorização da Câmara ou do Senado para a abertura de ação penal contra parlamentares, então assim como não há mais necessidade de autorização da Casa para que um de seus membros seja processado criminalmente, também não há necessidade de que os efeitos da condenação sejam autorizados pelo Plenário. 

Quando confrontado com o art. 92, a resposta que esta corrente dá à contra-argumentação da primeira corrente (inversão da hierarquia das fontes) é a de que, a despeito de se tratar de norma infraconstitucional, o ordenamento jurídico deve ser visto como um todo, devendo ser interpretado, portanto, conjuntamente, ou seja, de forma harmônica.

O parágrafo 3º do art. 14 da Constituição Federal dá base a outro argumento defendido nesta corrente. 

§ 3º São condições de elegibilidade, na forma da lei:

II - o pleno exercício dos direitos políticos;


 

Então, logicamente, se o pleno exercício dos direitos políticos é condição de elegibilidade, a sua suspensão implicaria a perda do mandato. Ou seja, ela seria automática. 

Nesse sentido, a já citada decisão do julgamento da AP nº 470 (caso “Mensalão”), no dia 17 de dezembro de 2012, por 5 votos a 4, no qual restaram vencidos os votos dos Ministros Ricardo Lewandowski (revisor), Rosa Weber, Dias Toffoli e Cármem Lúcia, que defendiam a perda não automática do mandato parlamentar. O voto de minerva foi proferido pelo Ministro Celso de Mello, que acompanhou o entendimento do relator, Joaquim Barbosa, que já tinha sido seguido pelos ministros Luiz Fux, Gilmar Mendes e Marco Aurélio. Em tal decisão, foram condenados, dentre outras pessoas, três Deputados Federais (João Paulo Cunha, Valdemar Costa Neto e Pedro Henry), por crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Ou seja, a decisão foi de perda automática de seus respectivos mandatos, não cabendo, portanto, manifestação do Legislativo. 

UTILIZAÇÃO DO PARÁGRAFO 2º DO ART. 55

Ainda assim, se poderia questionar: então se deve simplesmente fechar os olhos à regra do parágrafo 2º do art. 55? A resposta é negativa. E a explicação está na tese defendida pelos próprios Ministros Joaquim Barbosa, Luiz Fux, Gilmar Mendes, Marco Aurélio e Celso de Mello, justamente na Ação Penal supracitada (AP nº 470): o art. 55, parágrafo 2º deve ser aplicado, mas não em todos os casos, e sim somente nas hipóteses em que a decisão condenatória não tenha decretado a perda do mandato parlamentar por não estarem presentes os requisitos legais do art. 92, I, do CP (pena privativa de liberdade por tempo igual ou superior a 1 ano nos crimes praticados com abuso de poder ou violação de dever para com a Administração Pública, e quando for aplicada pena privativa de liberdade por tempo superior a 4 anos nos demais casos), ou quando foi proferida anteriormente à expedição do diploma, com trânsito em julgado em momento posterior.

Então, se a decisão condenatória não determinou a perda do mandato eletivo, nos termos do art. 92, I, CP, a perda do mandato somente poderá ocorrer se a maioria absoluta da Câmara ou do Senado assim votar; caso a decisão tenha determinado a perda do mandato eletivo, tal perda ocorrerá sem a necessidade de votação pela Câmara ou Senado.

Portanto, segundo aduziu o ministro Celso de Mello, não há esvaziamento da norma do art. 55, parágrafo 2º, no sentido de que remanescem na esfera das Casas Legislativas os casos de condenação criminal transitada em julgado decorrente de crimes outros que não aqueles de maior potencial ofensivo ou que contenha em seus respectivos tipos a improbidade administrativa da conduta.

O RISCO DA INSEGURANÇA JURÍDICA AO INTERPRETAR AS NORMAS JURÍDICAS

É sabido que a Segurança Jurídica é princípio garantidor dos propósitos almejados pelo Estado Democrático de Direito. Nasce da necessidade de se cristalizar uma previsibilidade do Sistema do Direito aos cidadãos, a fim de que se promova indistintamente a Justiça Social. Nesse contexto, a Segurança Jurídica consiste, segundo Vanossi (1982, p. 33 apud SILVA, 2005, p. 433) “no conjunto de condições que tornam possível às pessoas o conhecimento antecipado e reflexivo das consequências diretas de seus atos e de seus fatos à luz da liberdade reconhecida”. Uma maneira de se estabilizar os direitos subjetivos, na certeza de que os indivíduos têm de que as relações realizadas sob a égide de uma norma devem perdurar ainda que tal norma seja substituída. José Afonso da Silva (2005), por fim, resume a segurança jurídica como a garantia de estabilidade e de certeza dos negócios jurídicos, de sorte que as pessoas saibam de antemão que, uma vez envolvidas em determinada relação jurídica, esta mantém-se estável, mesmo se modificar a base legal sobre a qual se estabeleceu.

Noutro giro, relaciona-se com a forma de agir do Estado, estando o seu poder dosado por tal princípio. Assim, a despeito de o Estado gozar de Soberania diante dos seus jurisdicionados, não se pode perder de vista a reponsabilidade institucional no que tange a aplicação e efetividade do Direito. Portanto, o seu direito de agir está contrabalanceado com a forma que isto se propaga na sociedade, pois há muito não se vislumbra uma discricionariedade desmedida do ente Estatal. Esta noção coaduna-se com a ideia trazida por Canotilho (1993) ao afirmar que o Princípio da Segurança Jurídica traz em seu bojo uma necessidade de conformação formal e material dos atos legislativos, postulando uma teoria da legislação, preocupada em racionalizar e aperfeiçoar os princípios jurídicos de legislação inerentes ao Estado de Direito.

Assim, imperioso que tal princípio esteja demarcado pelo que o eminente autor chamou de “princípio da determinabilidade de leis”. Este princípio está expresso na exigência de leis claras e densas e na exigência de leis tendencialmente estáveis, ou, pelo menos, não lesivas da previsibilidade dos cidadãos relativamente aos seus efeitos jurídicos.

Assim, assevera Canotilho:

o princípio da determinabilidade das leis reconduz-se, sob o ponto de vista intrínseco, a duas ideias fundamentais. A primeira é a da exigência de clareza das normas legais, pois de uma lei obscura ou contraditória pode não ser possível, através da interpretação, obter um sentido inequívoco, capaz de alicerçar uma solução jurídica para o problema concreto. A segunda aponta para a exigência de densidade suficiente na regulamentação legal, pois um ato legislativo que não contém uma disciplina suficientemente concreta (densa, determinada) não oferece uma medida jurídica capaz de alicerçar posições juridicamente protegidas dos cidadãos; constituir uma norma de atuação para a administração; possibilitar, como norma de controle, a fiscalização da legalidade e a defesa dos direitos e interesses dos cidadãos (CANOTILHO, 1993, p. 372).

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Faz-se necessário, portanto, analisar o Direito e, por conseguinte, o conjunto de leis que regem o Estado Democrático, não como um emaranhado de comandos normativos esvaziado de sentido, mas sim como um todo guiado por uma lógica estruturada e organizada com o fito de estabelecer dentro da moldura democrática um sistema coeso capaz de por fim os conflitos existentes.

A possibilidade de se conhecer o Direito vigente e, além disso, ter acesso ao conteúdo desse Direito, a possibilidade de conhecer, de antemão, as consequências pelas atividades e pelos atos adotados e a estabilidade da ordem jurídica são elementos intrínsecos ao conceito de Segurança Jurídica. Esta estabilidade aludida consiste, assim, na manutenção das cláusulas pétreas, calcada na dificuldade de alteração das normas constitucionais e em limitações materiais impostas ao legislador e às demais fontes do Direito. Entretanto, essa condução de preceitos estagnados não transparece um engessamento da ordem jurídica de modo a prejudicar as novas relações nos novos tempos. Mas sim, demonstra uma capacidade satisfatória de preencher as diversas demandas sociais num grau de previsibilidade de tal monta que fundamenta não só o próprio Estado Democrático de Direito, mas também a justiça justa.

Numa breve leitura da Carta Magna, encontra-se em seus dispositivos o Princípio da Segurança Jurídica. Isso pode ser evidenciado tanto pelo caput do artigo 5º da Constituição Federal, como pelo inciso XXXVI do mesmo artigo, assegurando que "a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada". Insta acrescentar também que de acordo com o inciso XXXIX – “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. Trata-se de importante exemplo sobre como a segurança jurídica é tratada em âmbito constitucional.

De mais a mais, em resumo, a segurança jurídica está intimamente relacionada ao princípio da legalidade. O Estado tem suas ações limitadas pelo que é garantido aos cidadãos pelo Direito, considerada a expectativa gerada nos indivíduos dependentes desse mesmo Estado. A segurança, assim, não consiste apenas em garantir um ambiente sólido para a realização de negócios jurídicos ou, de maneira mais abrangente, para as relações sociais, mas também envolve a participação estatal na manutenção e renovação dessa segurança.

IMPREVISIBILIDADE DAS DECISÕES JUDICIAIS E A INSEGURANÇA JURÍDICA

É importante sublinhar o quão as decisões judiciais são importantes neste espectro democrático.

J.J. Canotilho ensina que

o cidadão deve poder confiar em que aos seus actos ou às decisões públicas incidentes sobre os seus direitos, posições jurídicas e relações, praticados ou tomadas de acordo com as normas jurídicas vigentes, se ligam os efeitos jurídicos duradouros, previstos ou calculados com base nessas mesmas normas (CANOTILHO, 1993, p. 373)2.

Entretanto, os tempos são obscuros. É crescente o temor provocado pelo aumento da imprevisibilidade das decisões judiciais. As consequências não são vistas com bons olhos. O risco, para alguns, é iminente. O fato é que o grau de imprevisibilidade das decisões judiciais tem aumentado e, com isso, um véu de incerteza se instala entre os profissionais do direito, pois se surpreendem com o resultado das demandas. Não é raro encontrar, em situações idênticas, decisões ou interpretações opostas. Os precedentes jurisprudenciais assumem um papel de coadjuvantes, pois não mais possuem a certeza da aplicabilidade.

A imprevisibilidade das decisões judiciais consubstanciada com a falta de critérios razoáveis faz com que as decisões tomadas pelos magistrados gerem uma insegurança jurídica na administração da própria Justiça e impossibilita conhecer as “regras do jogo”. A imprevisibilidade das decisões judiciais fortalece os defeitos provocados pela insegurança jurídica, resultando no enfraquecimento do próprio regime democrático. O desalinhamento das decisões jurídicas, principalmente aquelas oriundas do Supremo Tribunal Federal, gera intranquilidade, fazendo com que os conflitos aumentem substancialmente. Ofende, de modo substancial, aos princípios do regime democrático, do respeito à dignidade humana, da valorização da cidadania e da estabilidade das instituições. Dito de outro modo enfraquece a democracia.

ANÁLISE DO DISCURSO

Ao se debruçar sobre a celeuma em tela, é notória, conforme já demonstrado, a disparidade dos julgados do Supremo, mesmo sendo os casos semelhantes. Não é algo natural, dada as características intrínsecas do Direito. As questões solucionadas pelo “Tribunal Maior” possuem repercussão em toda seara jurídica, traduzida pelas súmulas e jurisprudências. O modo como o STF exterioriza suas decisões há de ter alguma responsabilidade e sentido.

Na tentativa de equacionar tudo isso, o presente estudo se envereda pela Análise do Discurso. Esta, para Orlandi (2001), não trata da língua, não trata da gramatica, embora todas essas coisas lhe interessem. A perspectiva é analisada através do discurso que traz ideia de movimento, percurso, para que faça sentido enquanto trabalho simbólico constitutivo do homem e de sua história.

Em princípio, a Análise do Discurso pode ser usada para qualquer tipo de assunto, em qualquer tipo de discurso e em qualquer tipo de meio (modalidade de discurso), utilizando-se uma variedade metodológica na abordagem, embora um determinado analista ou grupo de analistas prefiram concentrar em uma ou outra categoria, de acordo com as suas próprias predileções. O estudo vai além do sentido da frase, da palavra fechada em si mesma, desaguando no contexto social onde o texto foi desenvolvido. A Análise do Discurso enfatiza a maneira pela qual a linguagem está implicada em questões como o poder e ideologia. Esses dois pilares determinam como a linguagem é usada, o efeito que tem e como isso reflete e serve aos interesses, posições, perspectivas e valores daqueles que a usam.

Existe uma confluência, no próprio discurso, entre a língua e a ideologia. “A linguagem está materializada na ideologia como a ideologia se manifesta na língua” (ORLANDI, 2001, p. 16). A autora trabalha, então, a tríade linguagem-discurso-ideologia. Isso fica bem claro, pois é possível reconhecer a ideologia através da linguagem. Estão interligadas e refletidas através do discurso posto. “Consequentemente, o discurso é o lugar em que se pode observar essa relação entre língua e ideologia compreendendo-se como a língua produz sentidos por/para sujeitos” (ORLANDI, 2001, p.17).

A Análise do Discurso procura extrair do texto o seu verdadeiro sentido ou aquilo que não foi dito.

A análise do discurso visa fazer compreender como os objetivos produzem sentidos, analisando assim os próprios gestos de interpretação que ela considera como atos no domínio simbólico, pois eles intervém no real do sentido. A Análise do discurso não estaciona na interpretação, trabalha seus limites, seus mecanismos, como parte dos processos de significação. (ORLANDI, 2001, p 26).


 

Através desta construção dialética e através de questionamentos propostos pelo próprio analista que a compreensão vai se tornando efetiva num desencadeamento lógico pragmático.

Norman Fairclough (2004) acredita que o discurso é pautado tanto pela linguística, e isso significa um debruçar sobre o texto, quanto pelos aspectos da vida social. Para esse último, é importante que se tenha conhecimento das teorias sociais para dar embasamento a uma análise contundente. Assim, a abordagem para a análise linguística dos textos está sempre orientada para o caráter social. Ora,

o sentido não existe em si, mas é determinado pelas posições ideológicas colocadas em jogo no processo sócio-histórico em que as palavras são produzidas. As palavras mudam de sentido segundo as posições daqueles que a empregam” (ORLANDI, 2001, p. 42).

E, de fato, as questões sociais, políticas, ideológicas, bem como as relações de poder, são construídas e refletidas no discurso. Ou seja, as ideologias presentes em um discurso são diretamente construídas e influenciadas pelo contexto político-social em que o autor está inserido. Para Norman (2004), há uma necessidade de desenvolver abordagens para análise de texto através de um diálogo transdisciplinar com perspectivas sobre a linguagem e do discurso dentro da teoria social e de investigação, a fim de desenvolver uma capacidade para analisar textos como elementos em processos sociais. São esses elementos que permitem a análise do discurso.

APLICAÇÃO DA METODOLIGA DE ANÁLISE DO DISCURSO NOS VOTOS DOS MINISTROS DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Não há um procedimento fixo para se aplicara a técnica da análise do discurso. “As pessoas abordam-na de diferentes maneiras, de acordo com a natureza específica do projeto e conforme suas respectivas visões de discurso” (FAIRCLOUGH, 2004, p. 275). Norman propõe uma técnica de análise do discurso voltada para as questões da vida social. As diversas facetas são definidas pelas formas particulares de prática social e suas relações com a estrutura social.

Num primeiro momento, Norman aponta para a importância de se estabelecer um projeto. Ele chama de empreendimento interdisciplinar. Aquilo que se quer pesquisar. Mais precisamente, seria o objeto da pesquisa. Neste artigo, o projeto interdisciplinar a ser objeto de pesquisa é a incongruência nos entendimentos dos Ministros da Suprema Corte em casos análogos. A repercussão que tais julgados geram e o risco da insegurança jurídica refletida na imprevisibilidade das decisões jurídicas.

Logo após, importante estabelecer um corpus para a pesquisa do discurso. Refere-se na seleção de dados a serem coletados e utilizados. “A natureza dos dados requeridos variarão de acordo com o projeto e as questões de pesquisa” (FAIRCLOUGH, 2004, p. 277). Um corpus pode ser ampliado por dados complementares que permitirá uma certeza mais ampla daquilo que se está investigando. O corpus, neste momento, são as decisões prolatadas pelos Ministros do Supremo, quais sejam Ação Penal 470, Ação Penal 565 e RE 179502 (esta apenas subsidiariamente, como se verá mais adiante). Através da leitura dos votos e da percepção de todos os aspectos que circundam a situação de fato, será possível extrair o verdadeiro sentido do texto.

A partir daí, a pesquisa se aprofunda tendo como guia três dimensões: a) a análise de práticas discursivas; b) análise dos textos; c) análise da prática social. Estas dimensões podem se apresentar de variadas formas a depender do analista. Dentre estes aspectos, a intertextualidade se concentra no sentido de que o texto não está só. Ele esta inserido na constituição de sujeitos no texto. É como se dentro de um texto estivesse outras histórias a serem contadas. Histórias do passado, do presente, mas nunca só.

Para que os textos façam sentido, o intérprete tem de achar modos de combinar os diversos elementos do texto em um todo coerente. Para Norman (2004), o conceito de coerência é o centro de muitas explicações sobre interpretação. Por isso, mostra-se uma lente imprescindível para a análise destes julgados. A coerência leva em consideração, também, fatores como a ideologia e a construção do autor dentro do próprio texto.

Um texto coerente, de acordo com Norman (2004) é um texto cujas partes que o constitui (episódios, frases) são relacionadas com um sentido de modo que o texto como um todo 'faça sentido'. Importante demonstrar que a coerência resulta da soma daquilo que se lê - o que está no texto - dos fatores sociais existentes que envelopam a situação e da própria ideologia do analista e do escritor.

Cumpre direcionar-se ao corpus em questão. Na Ação Penal 565, no caso Ivo Cassol, a então Ministra Relatora profere o seu voto. No corpo do texto, ao tocar na celeuma sobre a perda automática do cargo parlamentar, relembra o seu entendimento do caso anterior, que foi a Ação Penal 470, caso Mensalão. Carmén Lúcia, ao fazer alusão ao julgado de outrora, diz: “E que, a meu ver, estamos todos de acordo de que uma condenação dessa gravidade e dessa natureza torna, sim, incongruente o exercício do mandato” (Ação Penal Nº 565 – RO - RELATORA: MINISTRA CARMEN LÚCIA). A Ministra assume em seu próprio texto que, assim como os outros Ministros, acredita que a condenação é incompatível com o exercício do mandato. Todavia, ao concluir com o seu voto, declara que a perda do mandato parlamentar não pode ter como palavra final a do Plenário. Assim, fica demonstrada certa ambivalência no texto. Pelo seu voto, a decisão do Excelso Pretório serviria somente como uma contestação da ilicitude, ou seja, a decisão seria meramente declarativa. A Ministra sacrifica sua real concepção e direciona sua teoria de modo a interpretar os artigos conforme quer exteriorizar no texto.

Mais adiante, ela conclui que “mas é como interpretar a Constituição para dotá-la de eficácia a tal ponto que o princípio da Separação de Poderes prevaleça, que a condenação prevaleça com todos os seus efeitos, incluindo aí o da prisão” (Ação Penal Nº 565 – RO - RELATORA: MINISTRA CARMEN LÚCIA). É possível, mais uma vez, perceber a confusão que a eminente Ministra faz ao difundir suas ideias. Para que se prevaleça os efeitos da condenação, conforme assevera, é necessária que a aplicação do dispositivo utilizado pela segunda corrente seja concretizada resultando, assim, na perda automática do mandato parlamentar.

Ao partir para outro fator de Análise do Discurso depara-se na intertextualidade manifesta que “levanta questões sobre o que vai na produção de um texto, mas diz respeito às características que estão manifestas na superfície do texto” (FAIRCLOUGH, 2004, p. 285). O que o texto está representando sobre os aspectos contextuais ou se o discurso está claramente demarcado. Nesse recorte, importante salientar, não uma divergência num texto só, de um ministro só, mas uma incongruência do próprio Plenário ao analisar o assunto. Para alguns Ministros não existe antinomia entre os artigos, somente uma aparente antinomia. Entretanto, ao votar a Ação Penal 470, o Ministro Gilmar Mendes afirma:

ao transpor o inciso VI (perda de mandato por condenação criminal) do § 3º (declaração da Mesa da Casa Legislativa) para o § 2º (decisão deliberativa da Casa Legislativa), o legislador constituinte acabou produzindo (ao que tudo indica de forma irrefletida e não intencional) uma real antinomia (em relação ao art. 15, III) e uma clara incongruência na sistemática de perda de mandato (ante as hipóteses de perda de mandato por improbidade administrativa e por suspensão dos direitos políticos) (Ação Penal Nº 470 – MG - MINISTRO GILMAR MENDES).


 

Como se percebe, o discurso não está claramente demarcado. A resposta da Suprema Corte não uníssona em relação aos Princípios Constitucionais e nem a aplicação deste e nem na interpretação, pois a Ministra Carmen Lúcia afirma em seu voto, também na Ação Penal 470, que, o que existe, é uma aparente antinomia, pois o ordenamento deve ser interpretado como um sistema coeso.

Outra ferramenta utilizada na análise do discurso é o ethos. Norman aponta:

O conceito de ethos constitui um ponto no qual podemos unir as diversas características, não apenas do discurso, mas também do comportamento em geral, que levam a construir uma versão particular do “eu”. Dentro dessa configuração, os aspectos da análise textual nos quais me concentrei neste capítulo — controle interacional modalidade e polidez - todos tem um papel. Com efeito, a maior parte, se não a totalidade das dimensões analiticamente separáveis do discurso e do texto, tem algumas implicações, diretas ou indiretas, para a construção do “eu" (FAIRCLOUGH, 2004, p. 209).


 

Todas estas proposições contribuem para a construção do ethos e possibilitam reconhecer identidades sociais na amostra. O discurso dos Ministros demonstram muito mais do que dizem, isso é fato. Esse “não-dizer” incorpora, segundo Orlandi (2001), a noção do interdiscurso, a de ideologia, a de formação discursiva. Há sempre algo ali no que foi dito. “O posto (o dito) traz consigo necessariamente esse pressuposto (não dito, mas presente)” (ORLANDI, 2001, p 82).

Pois bem, quando se folheia os votos dos ministros, é perceptível a presença de aspectos intrigantes no texto muito mais do que realmente foi dito. Essa característica é acentuada pela discrepância e o uso das técnicas interpretativas das leis. Obviamente que cada Ministro traz consigo uma gama ideológica própria que rege suas relações, que comanda o seu modo de ver o mundo e reflete em suas decisões. Não se quer demonstrar aqui que as ideologias devam ser as mesmas. Mas as consequências que isso traz devem ser observadas com sensatez. Nessa formulação do ethos, aplicado a este modelo, visa-se entender quais fatores contribuem para o entendimento do Supremo em se tratando de algumas questões, principalmente no uso dos princípios informadores do sistema Constitucional. Noutro giro, somam-se a isso os efeitos ideológicos e políticos do discurso. Inclui-se, portanto, os sistemas de conhecimento e regras, as relações sociais e as identidades sociais.

Em questões controversas como estas, diz-se que, nesta aparente antinomia de normas ou princípios constitucionais, deve-se encontrar o substrato axiológico que informa todo o sistema normativo em questão, a fim de se encontrar a melhor solução. Gilmar Mendes, em seu voto na Ação Penal 470, diz que o Princípio informador desta lide seria o da ética e o da moralidade política. Assim, a perda do mandato parlamentar seria automática.

O fundamento dessas normas constitucionais é o de que os cidadãos que venham a ser condenados (definitivamente, com decisões transitadas em julgado) criminalmente ou por atos de improbidade administrativa não devem participar da gestão da coisa pública – por isso é também um fundamento republicano – e, dessa forma, não podem ocupar cargos públicos, especialmente os de caráter político (Ação Penal Nº 470 – MG - MINISTRO GILMAR MENDES).


 

Entretanto, a Ministra Carmen Lúcia, na Ação Penal 565, invocou o Princípio da Separação dos Poderes como informador axiológico para a resolução do caso.

É possível focalizar todos os efeitos práticos do discurso dos Ministros do Supremo Tribunal Federal. Estas questões controversas e o modo como são solucionadas demonstram um desacordo lógico. Outra técnica utilizada pela análise do discurso permite, também, esclarecer o que está por trás do texto. O contexto social, no momento do discurso, influencia deveras. E se se voltar os olhos aos momentos específicos de cada caso, é fácil reconhecer a diferença. Num primeiro momento (Ação Penal 470), existia uma publicidade muito mais intensa em cima do Tribunal. A sociedade estava a todo instante acompanhando o andamento do processo. Portanto, era uma ocasião incomum no processo democrático brasileiro. A publicidade potencializa o discurso hegemônico.

A Análise do Discurso se justifica pela intenção de se entender os aspectos inerentes contidos na linguagem, no texto. Vai além. Muitas vezes é preciso ir além para entender o que o Supremo Tribunal Federal, a instância maior que tem a ultima palavra quis dizer verdadeiramente. Não é matéria fácil.

COMPARAÇÃO DOS VOTOS DO MINISTRO CELSO DE MELLO NOS JULGAMENTOS DA AP Nº 470 E DO RE 179502

Como já explanado acima, o chamado voto de minerva, na Ação Penal 470, coube ao Ministro Celso de Mello, que acompanhou a corrente do relator, Ministro Joaquim Barbosa, decidindo, como já se sabe, pela condenação dos três Deputados Federais pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro.

Mas o interessante é que o próprio Ministro Celso de Mello, no RE 179502 (referente a registro de candidatura), em 1995, votou em sentido totalmente oposto ao seu voto na referida AP nº 470. Naquela época, veio à tona o mesmo debate sobre perda de mandato parlamentar em decorrência de condenação criminal transitada em julgado, e o ministro foi enfático quando votou pela perda do mandato somente mediante decisão da Casa Legislativa. Pode-se observar isso a partir da análise de um trecho de seu voto:


 

O vínculo de incongruência normativa entre o art. 15, III, e o art. 55, §2°, ambos da Constituição, ressaltado no debate desta causa, subsume-se, no caso, ao conceito teórico das antinomias solúveis ou aparentes, na medida em que a alegada situação de antagonismo é facilmente dirimível pela aplicação do critério da especialidade, resolvendo-se o aparente conflito, desse modo – e tal como acentuado pelo Relator – em favor da própria independência do exercício, pelo parlamentar federal, de seu ofício legislativo. É que o congressista, enquanto perdurar o seu mandato, só poderá ser deste excepcionalmente privado, em ocorrendo condenação penal transitada em julgado, por efeito exclusivo de deliberação tomada pelo voto secreto e pela maioria absoluta dos membros de sua própria Casa Legislativa.


 

Nesse trecho é possível identificar que o Ministro lança mão de dois princípios que balizam a corrente defensora da perda do mandato parlamentar pela Casa de origem. São eles o Princípio da Especialidade e o da Separação dos Poderes. No entanto, ao proferir voto sobre a Ação Penal 470, alude para as questões de moralidade, respeito ao cargo público que exerce bem como a inafastabilidade sumária da probidade para a condução da vida pública dos Parlamentares. O mesmo Ministro decidindo de forma diferente em matérias iguais faz um malabarismo das técnicas hermenêuticas. Se se quer decidir de uma forma, aplicam-se tais Princípios. Mas, se entender a lide de maneira diferente, muda-se a interpretação.

Ele retoma:

a norma inscrita no art. 55, §2°, da Carta Federal, enquanto preceito de direito singular, encerra uma importante garantia constitucional destinada a preservar, salvo deliberação em contrário da própria instituição parlamentar, a intangibilidade do mandato titularizado pelo membro do Congresso Nacional, impedindo, desse modo, que uma decisão emanada de outro Poder (o Poder Judiciário) implique, como consequência virtual dela emergente, a suspensão dos direitos políticos e a própria perda do mandato parlamentar.

Não se pode perder de perspectiva, na análise da norma inscrita no art. 55, §2°, da Constituição Federal, que esse preceito acha-se vocacionado a dispensar efetiva tutela ao exercício do mandato parlamentar, inviabilizando qualquer ensaio de ingerência de outro Poder na esfera de atuação institucional do Legislativo. (Trecho do voto do Min. Celso de Mello - STF - Pleno - Rextr. n° 179.502-6/SP -Ementário n° 1.799-09)


 

Como se observa, o ministro Celso de Mello foi enfático no precedente acima citado. A perda dos mandatos dos congressistas condenados criminalmente só ocorrerá mediante decisão da maioria absoluta do Plenário da Câmara dos Deputados, e por votação secreta. Decisão totalmente contrária à do mesmo Ministro no julgamento da AP nº 470. E então fica a dúvida, diante de tantas decisões contraditórias a respeito de fatos de mesma natureza, dúvida essa que é a se podemos mesmo confiar em nosso Supremo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em conclusão, o que se percebe é a manifesta contradição apresentada pelo STF em suas decisões aqui apresentadas (e que, como bem se pode perceber, não se resumem a elas). De um lado, alguns discordam de a decisão da perda automática caber ao Poder Judiciário, pois ele não pode ser imaginado como um tutor geral da República, porque, além de comprometer a legitimidade democrática do poder político, significaria decretar a menoridade das demais instituições, e aí viriam as questões do ativismo judicial. De outro lado, no entanto, se poderia perguntar se os parlamentares ficariam impunes se o Poder Legislativo decidisse pela manutenção do mandato. E resposta muitas vezes é sim, já que a decisão dos parlamentares é motivada por motivos outros. E então é gerada a incerteza quanto às prerrogativas desses parlamentares, chegando-se à conclusão de que, a despeito de serem fundamentais, não podem ser infinitas, chegando ao ponto de se tornarem injustas.

Diante das inquietações dos dois lados, o STF decidiu tanto no sentido de uma quanto de outra. E a grande questão é sobre entender o que o levou a decidir de formas tão opostas. É evidente que existe um algo a mais por trás de tais decisões. Com certeza pode-se inferir algo através do “não-dito”. A ausência de linearidade e coerência lógica levam os Ministros a usarem a técnica interpretativa de modo a encaixar, de acordo com a concepção pessoal e o momento específico, Princípios e a hermenêutica em seus textos, e decidir de uma forma ou outra.

A ideologia mascarada, as incoerências, a ausência de um discurso claro e demarcado, o malabarismo hermenêutico, revelam, através da Análise do Discurso, o desalinhamento jurídico do Supremo, portanto, caro à própria Democracia e ao Estado de Direito. A partir da análise para além do que está escrito, é possível identificar a verdadeira intenção do Supremo diante destes casos emblemáticos. Tudo isso resulta na instalação de um desequilíbrio das relações jurídicas. Isso influencia a vida cotidiana dos cidadãos. As incertezas geram instabilidade, afetando a Segurança Jurídica, princípio corolário do Estado Democrático. A imprevisibilidade não alimenta o pluralismo, ela abastece o sentimento de esvaziamento de representatividade e ilegitimidade. A fé na democracia se esvai devido aos maus arranjos dos Poderes.

Em tempos em que o Supremo Tribunal Federal se julga infalível, aceitando que, mesmo errando, deve ser o último a errar, é mister que o espirito crítico evolua e se intensifique na certeza de uma real mudança.


 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS:


 

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VANOSSI, Jorge Reinaldo A. El Estado de derecho em el constitucionalismo social, 1982. In: SILVA, Jose Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 25 ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2005.

1 Trabalho apresentado no III Seminário de Teoria Geral do Direito e II Encontro Interdisciplinar Direitos Humanos da Universidade Federal do Piauí, como requisito para conclusão da disciplina Direito Constitucional II, ministrada pelo Professor Fernando Santos no curso de Bacharelado em Direito da Universidade Federal do Piauí.

2 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional. 6. Ed. Coimbra: Almedina, 1993.

Sobre os autores
Francílio Rodrigues Soares

Graduando em Direito pela Universidade Federal do Piauí (UFPI).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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