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Adoção intuitu personae:

uma análise à luz do direito brasileiro

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4 O POSICIONAMENTO JURISPRUDENCIAL ACERCA DA VALIDADE DA ADOÇÃO INTUITU PERSONAE

Cada vez mais, a jurisprudência tem se posicionado favoravelmente à adoção intuitu personae, como podemos extrair da ementa do julgado abaixo transcrito, do Superior Tribunal de Justiça21:

Recurso Especial - AFERIÇÃO DA PREVALÊNCIA ENTRE O CADASTRO DE ADOTANTES E A ADOÇÃO INTUITU PERSONAE APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE DO MENOR - VEROSSÍMIL ESTABELECIMENTO DE VÍNCULO AFETIVO DA MENOR COM O CASAL DE ADOTANTES NÃO CADASTRADOS PERMANÊNCIA DA CRIANÇA DURANTE OS PRIMEIROS OITO MESES DE VIDA - TRÁFICO DE CRIANÇA - NÃO VERIFICAÇÃO FATOS QUE, POR SI, NÃO DENOTAM A PRÁTICA DE ILÍCITO - RECURSO ESPECIAL PROVIDO. I - A observância do cadastro de adotantes, vale dizer, a preferência das pessoas cronologicamente cadastradas para adotar determinada criança não é absoluta. Excepciona-se tal regramento, em observância ao princípio do melhor interesse do menor, basilar e norteador de todo o sistema protecionista do menor, na hipótese de existir vínculo afetivo entre a criança e o pretendente à adoção, ainda que este não se encontre sequer cadastrado no referido registro; II - É incontroverso nos autos, de acordo com a moldura fática delineada pelas Instâncias ordinárias, que esta criança esteve sob a guarda dos ora recorrentes, de forma ininterrupta, durante os primeiros oito meses de vida, por conta de uma decisão judicial prolatada pelo i. desembargador- relator que, como visto, conferiu efeito suspensivo ao Agravo de Instrumento n. 1.0672.08.277590-5/001. Em se tratando de ações que objetivam a adoção de menores, nas quais há a primazia do interesse destes, os efeitos de uma decisão judicial possuem o potencial de consolidar uma situação jurídica, muitas vezes, incontornável, tal como o estabelecimento de vínculo afetivo; III - Em razão do convívio diário da menor com o casal, ora recorrente, durante seus primeiros oito meses de vida, propiciado por decisão judicial, ressalte-se, verifica-se, nos termos do estudo psicossocial, o estreitamento da relação de maternidade (até mesmo com o essencial aleitamento da criança) e de paternidade e o consequente vínculo de afetividade; IV - Mostra-se insubsistente o fundamento adotado pelo Tribunal de origem no sentido de que a criança, por contar com menos de um ano de idade, e, considerando a formalidade do cadastro, poderia ser afastada deste casal adotante, pois não levou em consideração o único e imprescindível critério a ser observado, qual seja, a existência de vínculo de afetividade da infante com o casal adotante, que, como visto, insinua-se presente; V - O argumento de que a vida pregressa da mãe biológica, dependente química e com vida desregrada, tendo já concedido, anteriormente, outro filho à adoção, não pode conduzir, por si só, à conclusão de que houvera, na espécie, venda, tráfico da criança adotanda. Ademais, o verossímil estabelecimento do vínculo de afetividade da menor com os recorrentes deve sobrepor-se, no caso dos autos, aos fatos que, por si só, não consubstanciam o inaceitável tráfico de criança; VI - Recurso Especial provido. (grifo nosso)

O julgado em apreço evidencia a prevalência do melhor interesse do menor, imprescindível nos casos de adoção, asseverando a dispensabilidade da prévia habilitação do casal adotante, pois a medida pleiteada é necessária para garantir a proteção do infante, portanto, se preserva o entendimento que mais beneficia o infante, ou seja, o deferimento da adoção.

A decisão também evidencia outro importante aspecto da adoção intuitu personae, a afetividade, que vem ganhando cada vez mais notoriedade no direito de família, onde se passa a vislumbrar, além dos laços genéticos, a socioafetividade. Não parece razoável abdicar dos laços afetivos, em favor de uma lista, como ressalta Pedro Breier22:

De fato, não parece sensato respeitar a todo custo o cadastro de adotantes. Tendo em vista o princípio do superior interesse da criança e do adolescente, não há como garantir a preferência do próximo adotante cadastrado caso haja eventual prejuízo ao adotando. Esse prejuízo ocorre quando o caso é de filiação socioafetiva: o respeito ao cadastro, criado para facilitar a adoção, não pode determinar o rompimento de vínculo socioafetivo e prejudicar a criança e o adolescente.

Desse modo, o não deferimento da medida pleiteada, se apresenta totalmente incompatível com os princípios e garantias constitucionais que visam a proteção integral da criança e do adolescente: a prioridade absoluta e o atendimento ao melhor seu interesse. Dessa forma, presente o requisito da socioafetividade, a adoção intuitu personae se impõe para proteção do menor envolvido, que precisa de amparo e cuidado.

O Superior Tribunal de Justiça23 em seus julgados, também considera que é incabível a institucionalização do menor em abrigo, nos casos em que há a adoção intuitu personae, ante a falta de registro no Cadastro Nacional de Adoção, devendo o infante permanecer em seu seio familiar, preservando o melhor interesse do menor, como se observa:

Habeas Corpus Nº 517.365 - RS (2019/0181432-0) RELATOR : MINISTRO MOURA RIBEIRO IMPETRANTE : SILVANA DA SILVA IMPETRANTE : OSVALDO FRANCISCO DA SILVA ADVOGADO : ELIDIANA MAROSTICA - RS101071 IMPETRADO : TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL PACIENTE : J M A C - MENOR IMPÚBERE INTERES. : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL DECISÃO SILVANA DA SILVA e OSVALDO FRANCISCO DA SILVA (SILVANA e outro) impetraram habeas corpus, com pedido liminar, em benefício de J. M. A. C. (J), menor, nascido aos 3/9/2017, filho de Carlos Alberto Albuquerque Cardoso e Juliane Canabarro Alves, impugnando acórdão da 7ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que negou provimento ao agravo de instrumento lá interposto contra decisão do Juízo da Vara da Infância e Juventude da Comarca de São Leopoldo/RS, que indeferiu o pedido de guarda provisória dele e determinou o seu acolhimento institucional. [...] De acordo com os documentos que instruem a presente impetração, indispensável o relato histórico do que se passou no processo até a sua impetração. SILVANA e outro ajuizaram aos 23/11/2018, ação de guarda e responsabilidade (Proc. nº 033/5.18.0001565-7) em benefício de J, na qual narraram que (1) ele lhes foi entregue quando tinha 6 (seis) meses de vida por seus pais biológicos, tendo eles registrado o competente boletim do ocorrência policial aos 3/5/2018, relatando o ocorrido; (2) após o seu acolhimento no seio familiar, o menor foi levado ao Conselho Tutelar de São Leopoldo/RS, que emitiu em favor deles um "Termo de Responsabilidade" aos 8/3/2018; e (3) a criança tinha sinais de maus tratos e abusos, foi submetida a avaliação física e psicológica, e recebeu todo o cuidado, tendo recebido um lar e uma família. Pediram, em tutela provisória, a guarda provisória e a responsabilidade de J, e, no mérito, o deferimento da guarda e posterior conversão em adoção. O Juízo da Infância e Juventude da Comarca de São Leopoldo/RS aos 13/12/2018, indeferiu o pedido liminar e determinou a busca e apreensão da criança e sua entrega no juizado [...]. Diante disso, SILVANA e outro interpuseram agravo de instrumento no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul que foi improvido [...] Daí a impetração do presente writ, substitutivo de recurso ordinário cabível, visando cassar o acórdão que determinou o abrigamento institucional da criança, pelas razões declinadas no relatório. Como se vê, a controvérsia diz respeito a legalidade ou não da determinação judicial de busca e apreensão da infante J, hoje com 1 (um) ano e 10 (dez) meses de idade, que foi levado para o abrigo institucional aos 13/6/2019 (e-STJ, fl. 61), apesar de ter sido entregue pelos pais biológico para adoção intuitu personae, sem observância do procedimento legal. [...]. É verdade que os impetrantes não estão inscritos no Cadastro Nacional de Adoção. Porém, não há nenhum elemento concreto ou estudo dizendo que J, sujeito e não objeto de direito, está ou esteve em situação de risco físico ou psíquico por estar convivendo com a família que o acolheu desde terna idade, enquanto tramitava o processo de guarda. Inegável que a essa altura, já se formou inequívoca relação de afetividade entre J e a família que a acolheu praticamente desde o nascimento, e não é razoável afastá-lo, agora, de tal convivência e encaminhá-lo a um abrigo institucional, sem que se possa imaginar concreta situação de risco, tão somente porque não se observou a fila de postulantes para adoção, ou seja, a ordem do Cadastro Nacional de Adoção e não existe ainda três anos de guarda dele. E por falar no Cadastro Nacional de Adoção, a Quarta Turma, no julgamento Habeas Corpus nº 468.691/SC, da relatoria do em. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, DJe de 12/12/2019, firmou o entendimento de que a ordem cronológica de preferência das pessoas previamente cadastradas para adoção não tem um caráter absoluto, podendo ceder ao princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, razão de ser de todo o sistema de defesa erigido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, que tem na doutrina da proteção integral sua pedra basilar. A Terceira Turma também tem o mesmo entendimento sobre o assunto [...] Nesse cenário, diante da presença dos requisitos da fumaça do bom direito e do perigo na demora, DEFIRO A LIMINAR para determinar o imediato desabrigamento de J, e que ele seja devolvido ao ambiente familiar em que se encontrava, ou seja, para SILVANA e outro, ao menos até o julgamento do mérito do presente writ. Solicitem-se informações, com urgência, para o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e ao Juizado da Infância e da Juventude da Comarca de São Leopoldo - RS. [...] (grifo nosso)

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Neste cenário, aspectos formais, como a exigibilidade de prévia habilitação do casal adotante, não pode se sobrepor aos referidos princípios e garantias constitucionais, daí a necessidade de dispensa de habilitação, como acertadamente impôs o Superior Tribunal de Justiça, no caso concreto antes descrito.

Ao pleitear a adoção, o casal adotante evidencia que deseja cuidar, amar e amparar o menor, possuindo condições de prover todo o necessário para o seu pleno desenvolvimento, não se limitando a aspectos econômicos, mas também (e principalmente) no tocante ao emocional, afetivo e psicológico. Dessa forma, reiteramos a importância da realização do estudo psicossocial, desenvolvido pelo setor técnico especializado das varas da infância e juventude, para que tais circunstâncias sejam solidamente demonstradas.


5 CONCLUSÃO

Ante todo o exposto, foi possível se observar que a adoção intuitu personae, que ocorre quando a genitora ou genitores da criança escolhem entregar seu filho a determinada(s) pessoa(s) para adoção, tem suas peculiaridades, se diferenciando de outras modalidades, ante a ausência de previsão legal, o que ocasiona certo dissenso doutrinário acerca de sua validade.

A discussão da validade da adoção intuitu personae, constitui o cerne do presente trabalho, sendo esse o problema de pesquisa que nos propusemos a responder. Nesse sentido, diante da ampla jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, é possível se aferir que, apesar da ausência de previsão legal, a adoção intuitu personae é admitida pela doutrina e acolhida pela jurisprudência, amparada na observância do melhor interesse do menor, na proteção integral da criança e do adolescente e na prevalência da socioafetividade.

A ausência de prévia habilitação dos adotantes no Cadastro Nacional de Adoção é outro ponto discutido pela doutrina, contudo, o posicionamento da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça se firmou no sentido de que tal exigência não é absoluta, o que corrobora para a validade da adoção intuitu personae.

Portanto, os objetivos propostos foram devidamente alcançados, restando esclarecido no que consiste à adoção intuitu personae e quais as suas peculiaridades, bem como, analisada a relação existente entre essa e vários princípios, como o melhor interesse da criança e da proteção integral, tendo sido avaliado no campo doutrinário e jurisprudencial, a validade da adoção intuitu personae.

É imperioso destacar que a sociedade se encontra em constante mudança, surgindo novos arranjos familiares, etc., que precisam ser considerados pelo Direito, logo, a proteção da criança e do adolescente se trata de uma busca constante, que deve sempre ser observada pela família, pela sociedade e pelo Estado, como prevê o texto constitucional.

Dessa forma, o Direito não pode ser entendido como algo estático, pelo contrário, se almeja que o mesmo atenda as demandas sociais, em constantes alterações, de modo a preservar os direitos e garantias previstos no texto constitucional e no ordenamento jurídico como um todo, sendo imprescindível o papel dos tribunais superiores para interpretar e aplicar as leis, da maneira que melhor atenda a dignidade da pessoa humana, daí a necessidade de constantes estudos e pesquisas na área.

Dessa forma, é de se evidenciar que a validade da adoção intuitu personae tem sido reconhecida pela doutrina e pelos tribunais, inclusive os superiores24, mesmo ante a ausência de previsão legal, atendendo ao melhor interesse da criança e do adolescente e demais garantias constitucionais, bem como, tem se entendido pela dispensabilidade de prévia habilitação, como modo de facilitar o processo de adoção, dando maior celeridade à defesa e proteção do menor, posicionamento totalmente compatível com o espírito da Constituição Federal, de defesa da criança e do adolescente e proteção da dignidade da pessoa humana.

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Sobre a autora
Raissa Natascha Ferreira Pinto

Mestranda em Direito pela Universidade da Amazônia, possui Especialização em Direito Civil e Processual Civil pela Universidade da Amazônia, Graduada em Direito pela Universidade da Amazônia – UNAMA, advogada, OAB: 28.689, Pará.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PINTO, Raissa Natascha Ferreira. Adoção intuitu personae:: uma análise à luz do direito brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6418, 26 jan. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/88146. Acesso em: 19 nov. 2024.

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