Antes de tudo, é preciso que o ser humano se conscientize que do ponto de vista planetário, não existe jogar lixo fora, porque simplesmente não existe “fora” (autor desconhecido). A Terra é o lar de todos, e como tal merece ser tratada.
O conceito de cadeia produtiva, definido como um conjunto de atividades que contemplam, desde a produção até o consumo final de um produto, retrata, em parte, o atual modelo linear de produção, caracterizado por um sistema de produzir, utilizar e descartar, onde todos os produtos atingem eventualmente um estatuto de “fim de vida útil”.
Analisando as recentes preocupações em produzir de forma sustentável, evidencia-se que o modelo de economia linear se mostra deveras ultrapassado, podendo ser apontado como a causa imediata de impactos ambientais, muitas vezes irreversíveis aos ecossistemas. Nesse contexto, sobremodo a partir da aprovação do Objetivo 12 da Agenda 2030 (ODS 12), surge como proposta o modelo de economia circular, que, priorizando os objetivos “3R”: reduzir, reutilizar e reciclar, visando reincorporar os resíduos ao sistema de produção, acarretando alterações positivas nos índices de desenvolvimento social, econômico e ambiental.
Tradicionalmente, o sistema econômico era visto como um sistema aberto, no qual se afigurava irrelevante a identificação da origem e destino dos materiais e energia nele utilizados e dele extraídos. Partia-se da equivocada premissa de que os recursos retirados do meio ambiente eram infinitos, e os rejeitos produzidos, seriam facilmente absorvidos ou reciclados, de modo a ser possível a transformação em novos fatores de produção.[1]
Esse modelo de produção é reconhecidamente prejudicial para a sustentabilidade das sociedades modernas, dado que o consumo de recursos é significativamente alto em relação à capacidade de o meio ambiente suprir essa demanda. Assim, o tradicional modelo linear de economia enfrenta desafios cada vez maiores, provenientes do próprio contexto que opera, dentre os quais podem ser apontadas as perdas econômicas, sobremodo ligadas ao desperdício, riscos de preços e escassez da oferta.
Felizmente, essa concepção de sistema completamente aberto aos poucos vai sendo superada. Pensar num sistema puramente linear é ter uma visão superficial e restrita à primeira função econômica do meio ambiente natural - figurar como fornecedor de recursos naturais ao processo produtivo. Ademais, não se pode desconsiderar que os rejeitos serão lançados no ambiente, tais como o dióxido de carbono e demais gases poluentes que são eliminados na atmosfera, contribuindo para as mudanças climáticas, além do esgoto produzido pelas cidades e indústrias que segue para os rios e oceanos, bem como os resíduos sólidos que são acumulados nos aterros sanitários. [2]
No pós-guerra, e com o crescente incremento das indústrias, tais situações foram se acirrando, vindo à tona, de forma irreversível, o debate acerca da questão da finitude dos bens ambientais e da necessidade de haver o seu reaproveitamento.
Sob tal perspectiva, defende o professor Fábio Nusdeo:[3]
"[...] não é mais possível ignorar a origem, as transformações e o destino dos materiais e da energia utilizados pelo homem em sua atividade econômica, seja de produção, seja de consumo. Isso porque tanto a origem quanto o destino estão profundamente imbricados nesse conjunto de atividades e nas transformações por ele impostas, passando a condicionar o sistema como um todo".
E arremata o aludido jurista:
"A passagem de um sistema aberto para um sistema fechado implica, é claro, uma mudança drástica de perspectiva pela qual o homem vê a si próprio e ao universo ao seu redor. A mentalidade e a linha condutora de suas ações têm necessariamente de passar por funda revisão, porque essas ações passam a ter influência no conjunto de elementos nos quais ele se insere."
O afastamento da ideia que os sistemas econômico e ambiental seriam abertos e lineares, e o reconhecimento de que tais sistemas são fechados, afigurando-se íntima a relação entre a extração dos recursos naturais e o descarte de resíduos, remete ao questionamento acerca de até que ponto o meio ambiente natural será capaz de suportar as demandas do sistema econômico.
Ao tratar da incessante evolução da sociedade à custa dos recursos naturais, o filósofo alemão Hans Jonas[4] dispõe que: “em última instância, não se trata de saber precisamente o que o homem ainda é capaz de fazer – nesse aspecto se pode ser prometéico e sangüíneo– mas o quanto a natureza é capaz de suportar. Ninguém duvida que haja tais limites”. (sic)
Muito embora, nessa temática, ainda não se tenha logrado firmar indicadores absolutos, muito menos soluções definitivas, o fato é que já se chegou a um consenso mundial no sentido de que a relação entre a economia e o meio ambiente deve adquirir foros de centralidade, sendo improrrogável que se repense a forma de produção e de consumo que vem sendo praticada desde a Revolução Industrial.
Com efeito, em pouco mais de duzentos anos, o império do baixo custo, alto consumo e produção em escala fez com que o planeta tivesse seus recursos naturais avidamente consumidos e fosse alvo de desenfreada poluição e transformações irreversíveis.
O aquecimento global, a chuva ácida, a destruição da camada de ozônio, o desmatamento de florestas, a extinção de espécies, as inundações, as estiagens e a elevação do nível dos oceanos, dentre outros resultados nefastos que foram produzidos a partir das ações antrópicas, já afetam diretamente a vida no planeta.
À vista disso, há uma crescente pressão da sociedade por uma gestão ambiental mais sustentável e responsável e, como corolário, a criação de novos contornos para a produção, circulação e consumo de bens tornou-se uma imposição do próprio cenário atual, cujas tragédias vivenciadas são prenúncios de um iminente colapso.
Com essa mudança de paradigmas de um sistema futuro, a noção de economia circular vem atraindo cada vez mais atenção nos últimos anos e propõe um novo modelo de sociedade que priorize a otimização dos materiais, energias e resíduos buscando a eficiência do uso destes recursos, possibilitando a conversão dos resíduos cada vez mais em matérias-primas.
Olhar a economia como um processo circular significa a possibilidade de se "apresentar todo o sistema das relações econômicas como uma longa estrada que faz um grande círculo e volta ao ponto de partida"[5]. De maneira concreta, "a transição para uma economia circular redireciona o foco para a reutilização, reparação, renovação e reciclagem dos materiais e produtos existentes, ou seja, o que era visto como um “resíduo” pode ser transformado em um recurso".[6]
Portanto, a economia circular reúne ações para alongar a vida útil de produtos e materiais, fazendo um uso mais eficiente de recursos naturais. A ideia é que os produtos podem ser recuperados depois de passar por um ciclo de restauração.
Conforme ensina a professora Susana Borràs[7], a economia circular é um conceito econômico que se inter-relaciona com a sustentabilidade. Para tanto, há necessidade de desvincular o crescimento econômico do uso de recursos naturais para o desenvolvimento sustentável. Para a autora os “modelos de negocio de la economía circular se basa en crear servicios donde antes había unicamente productos: el producto deja de ser el centro de la economía y es el servicio quien lo releva”.
A ideia de uma economia circular teve início ainda na década de 90, como um tópico de Economia Ambiental[8]. No entanto, somente em 2013, com a primeira publicação da Fundação Ellen MacArthur, o conceito foi divulgado de forma mais ampla[9]. Ela se caracteriza pela mudança, notoriamente pelo paradigma "reduzir, reutilizar e reciclar", a partir de uma transformação mais radical baseada na reutilização inteligente dos resíduos.[10]
A economia circular é um conceito baseado na inteligência da natureza e, diferentemente do processo produtivo linear, preconiza que os resíduos são insumos para a produção de novos produtos, reintroduzindo o desperdício na cadeia produtiva. No meio ambiente, restos de frutas consumidas por animais se decompõem e viram adubo para plantas. Esse conceito também é chamado de “cradle to cradle” (do berço ao berço), em que não existe a ideia de resíduo e tudo é continuamente utilizado como nutriente para um novo ciclo. Seus propósitos podem ser alcançados por meio de design duradouro de produtos, manutenção e reparo, reutilização, remanufatura, reforma e reciclagem. [11]
Nessas tintas, depreende-se que a implantação da economia circular exige muitas mudanças de paradigmas, seja na sociedade ou nas empresas, por conta de redesenho das cadeias produtivas e dos modelos de negócio, ou, principalmente, por parte dos governos, para viabilizar a operacionalização desse modelo em longo prazo. Para tanto, fundamental que todos os atores participem desse círculo, cada um desenvolvendo o seu papel.
O relatório "Rumo à Economia Circular", publicado em 2013 pela Ellen MacArthur Foundation, buscou realizar uma análise de oportunidades e impactos da economia circular baseada em números, diante do contexto europeu. Este aponta que grande parte do setor de fabricação da Europa, acaso redesenhasse seus sistemas de produção, de acordo com a economia circular, poderia economizar cerca de 650.000 milhões de euros até 2025.
Não bastasse isso, o produto interno bruto (PIB) europeu poderia crescer 11% até 2030 e 27% até 2050, em contrapartida com os 4% e 15% do atual cenário. Portanto, o crescimento econômico se daria por meio da combinação do aumento da receita das novas atividades da economia circular e redução dos custos de produção, acarretado pela utilização maior dos insumos. Embora os números retratem a realidade europeia, vale ressaltar que os desafios são universais e as conclusões também são aplicáveis a outras regiões, inclusive para países em desenvolvimento como o Brasil.
Por conseguinte, irrefutável que a transição da economia linear para a economia circular implicaria impactos positivos em toda a sociedade, uma vez que os benefícios incluem altos índices de desenvolvimento tecnológico, melhores materiais, uso eficiente de mão de obra e energia, além de maiores oportunidades de lucro para as empresas. Importante destacar, também, os benefícios ambientais, dentre os quais estão a redução das emissões de dióxido de carbono, diminuição do consumo de matérias primas, aumento da produtividade da terra e redução de externalidades negativas, como a consequente poluição dos ecossistemas.[12]
No Brasil, como política pública, ainda não foi adotada nenhuma estratégia mais efetiva visando concretizar a economia circular. Na prática, esse tema começa a dar seus primeiros passos no país meio que “ao sabor da onda”, como um “modismo”, baseado em novas abordagens à gestão de resíduos, mas ainda necessita avançar muito mais.
Muitas são as dificuldades que limitam a efetivação da economia circular no país. Esse movimento ainda é pouco representativo nos segmentos que poderiam promover sua incorporação nas melhores práticas empresariais e políticas vigentes atualmente. Os desafios geralmente estão ligados à necessidade de profundas mudanças culturais, tanto nas empresas quanto nos governos e nos cidadãos.
Nada obstante, algumas empresas no Brasil, demonstrando seu protagonismo, tomaram a dianteira e já estão implementando com sucesso esse novo modelo de economia, como é o caso do “Projeto Cana Verde”, apresentado recentemente pelo relatório “Uma Economia Circular no Brasil”, de autoria da Ellen MacArthur Foundation.[13]
O Projeto Cana Verde, desenvolvido pelo Grupo Balbo, foi pioneiro na produção regenerativa em larga escala de cana-de-açúcar no Brasil. O grupo criou a Native, hoje a maior produtora e varejista de açúcar orgânico do mundo. Seus canaviais passaram de um modelo tradicional e linear para um modelo orgânico e regenerativo, altamente produtivo e lucrativo. Entre os resultados obtidos, destaca-se o aumento da fertilidade do solo, maior rendimento agrícola, redução dos custos de produção e a regeneração da biodiversidade local, com mais de 340 espécies de animais diferentes. A empresa pretende, ainda, disseminar essa técnica regenerativa a outras culturas de seus sistemas produtivos. [14]
Outro exemplo de sucesso trazido pelo relatório é a empresa brasileira de cosméticos, Natura, através do “Programa Amazônia”, que teve por finalidade implantar um modelo de negócio inclusivo e regenerativo na região da Amazônia, através da incorporação de ativos da biodiversidade em seus produtos. Todo o álcool utilizado nos seus perfumes tem origem em sistemas de agricultura regenerativa. Além disso, a Natura une pesquisas científicas ao conhecimento das comunidades tradicionais locais gerando emprego na região.[15]
Afora os exemplos de sucesso que estão já sendo executados no Brasil, o país dispõe de uma lei bastante atual e que prevê importantes instrumentos para permitir o avanço necessário do enfrentamento dos principais problemas ambientais, sociais e econômicos decorrentes do manejo inadequado dos resíduos sólidos, Lei nº 12.305/10, que instituiu a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS).
A apontada lei estabelece princípios, objetivos, instrumentos e diretrizes para a gestão e gerenciamento dos resíduos sólidos, as responsabilidades dos geradores, do Poder Público e dos consumidores, bem como os instrumentos econômicos aplicáveis. Ela consagra um longo processo de amadurecimento de conceitos, tais como: princípios da prevenção e precaução, poluidor-pagador, ecoeficiência, responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida do produto, reconhecimento do resíduo como bem econômico e de valor social, direito à informação e ao controle social.
Em que pese os inúmeros benefícios ligados à transição da economia linear para a economia circular, existem limites e desafios que precisam ser solucionados para que esse novo modelo possa verdadeiramente se estabelecer e contribuir de forma significativa para a sustentabilidade global. O conceito de economia circular ainda permanece superficial, faltando análise crítica e científica.[16]
Fundamental ressaltar, todavia, que mesmo com limites, dificuldades e ausência de estudos científicos mais aprofundados sobre o tema, o modelo de economia circular já deu mostras de sua eficiência ambiental e econômica, quando comparado com o atual modelo de economia linear, considerado pela análise de cadeias produtivas. De igual modo, a geração de energia, a partir de fontes renováveis, em vez de combustíveis fósseis poluentes, é altamente bem-vinda no âmbito da economia circular.
Destarte, a economia circular, como um sistema industrial regenerativo e restaurador por princípio, cujo propósito é substituir o conceito de “fim de vida” por um uso renovável, mantendo os produtos, componentes e materiais no seu mais alto nível de utilidade e valor ao longo do tempo, vem como uma "resposta ao desejo de um crescimento sustentável no contexto da pressão crescente que a produção e o consumo exercem sobre o ambiente e os recursos mundiais".[17]
Importante não descurar que é objetivo constitucional a efetivação, na maior medida possível, do desenvolvimento sustentável, que harmonize a redução das desigualdades sociais e a degradação do meio ambiente, a um consistente desenvolvimento econômico. Não há que se olvidar que a adoção do sistema circular pode contribuir de forma efetiva para o cumprimento desse desígnio.
Nesse contexto, a Carta Magna atribuiu responsabilidade ao Poder Público para estimular a redução do impacto ambiental, pelo que poderá valer-se de diversos instrumentos, dentre eles a tributação ecologicamente dirigida. Por conseguinte, intentando fomentar um modelo industrial não destrutivo e predatório de recursos naturais, incentivos fiscais podem ser concedidos às empresas visando fomentar modelos de negócio sustentáveis, tendentes a enfrentar com sucesso um mercado cada vez mais competitivo e com maiores demandas ecológicas e sociais.
Notas
[1] NUSDEO, Fábio. Curso de economia: introdução ao direito econômico. 6. ed. rev. e atual. São Paulo: RT, 2010.
[2] PEARCE, D. W.; TURNER, R.K. Economics of natural resources and environment. Londres: Harvester Wheashealf, 1990.
[3] NUSDEO, Fábio. 2010.
[4] JONAS, Hans. O princípio da responsabilidade: Ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006.
[5] LEONTIEF, W. A economia como processo circular [tradução José Antonio Ortega & Antonio Cláudio Sochaczewski]. 2007. Revista Economia Contemporânea, 11(1), jan./abr. 119-176.
[6] SIMÕES, Ana Filipa Batista Seabra (2017). Economia Circular na Indústria Cerâmica: Proposta de classificação do resíduo “caco cozido como subproduto”. [Relatório Mestrado em Gestão Ambiental] Coimbra: Instituto Politécnico de Coimbra / Escola Superior Agrária de Coimbra.
[7]BORRÀS, Susana. La economía circular: Hacia una revolución global? In: Seminário Empreendimentos Econômicos, Desenvolvimento e Sociedade “Desafios da Sustentabilidade”, dias 08 e 09 de junho de 2018, UNIMAR – Marilia, SP.
[8] PEARCE, D. W.; TURNER, R.K. 1990.
[9] EMF - ELLEN MACARTHUR FOUNDATION. Towards the Circular Economy: opportunities for the consumer goods sector. 2013. – Vol. 2.
[10] LETT, Lina A. Las amenazas globales, el reciclaje de residuos y el concepto de economía circular. Revista argentina de microbiología, v. 46, n. 1, p. 1-2, 2014.
[11] GEISSDOERFER, Martin; SAVAGET, Paulo; BOCKEN, Nanci M. P.; HULTINK, Erik Jan. The Circular Economy – A new sustainability paradigm? Journal of Cleaner Production. V. 143, p. 757-768, 2017.
[12] EMF - ELLEN MACARTHUR FOUNDATION. Towards the Circular Economy: opportunities for the consumer goods sector. 2013. – Vol. 2.
[13] EMF - ELLEN MACARTHUR FOUNDATION. Uma Economia Circular no Brasil: Uma Abordagem Exploratória Inicial. 2017.
[14] Idem.
[15] Idem.
[16] KORHONEN, Jouni; HONKASALO, Antero; SEPPÄLÄ, Jyri. Circular economy: the concept and its limitations. Ecological economics, v. 143, p. 37-46, 2018.
[17] EUROPEAN COMMISSION – EC (2014). Towards a Circular Economy: a Zero Waste Programme for Europe. Communication from the Commission to the European Parliament COM(2014) 398, July 2.