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Algumas linhas sobre o crime de associação para o tráfico de entorpecentes

05/02/2021 às 13:10
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Para a caracterização do crime de associação para o tráfico, é necessário o dolo de se associar com estabilidade e permanência?

A associação para o tráfico de drogas é uma associação para a prática das condutas tipificadas no artigo 33 (tanto no caput quanto no § 1º), bem como no artigo 34 da Lei de Drogas, que fala sobre maquinários, aparelhos, instrumentos e demais objetos destinados à fabricação de drogas, por exemplo.

Tem-se o texto legal:

Art. 35. Associarem-se duas ou mais pessoas para o fim de praticar, reiteradamente ou não, qualquer dos crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1o, e 34 desta Lei:

Pena – reclusão, de 3 (três) a 10 (dez) anos, e pagamento de 700 (setecentos) a 1.200 (mil e duzentos) dias-multa.

Parágrafo único. Nas mesmas penas do caput deste artigo incorre quem se associa para a prática reiterada do crime definido no art. 36 desta Lei.

Sobre o crime do art. 35 da Lei de Drogas, destaca-se trecho do voto do ministro Teori Zavascki, nos autos do HC 124.164:

‘O crime previsto no art. 35 da Lei 11.343/2006 está assim descrito: ‘associarem-se duas ou mais pessoas para o fim de praticar, reiteradamente ou não, qualquer dos crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1º, e 34 desta Lei’. O verbo núcleo do tipo aqui é associar-se. Portanto, a caracterização da associação para o tráfico de drogas depende da demonstração do vínculo de estabilidade entre duas ou mais pessoas, não sendo suficiente a união ocasional e episódica. Não se pode transformar o crime de associação, que é um delito contra a paz pública –capaz de expor a risco o bem jurídico tutelado –, em um concurso de agentes. É com propriedade que afirma Vicente Greco Filho: Para incidência do caput do delito agora comentado, em virtude da cláusula ‘reiteradamente ou não, poder-se-ia entender que também configuraria o crime o simples concursos de agentes, porque bastaria o entendimento de duas pessoas para a prática de uma conduta punível. Parece-nos, todavia, que não será toda vez que ocorrer concurso que ficará caracterizado o crime em tela. Haverá necessidade de um animus associativo, isto é, um ajuste prévio no sentido da formação de um vínculo associativo de fato, uma verdadeira societas sceleris, em que a vontade de associar seja separada da vontade necessária à prática do crime visado. Excluído, pois, está o crime, no caso de convergência ocasional de vontades para a prática de determinado delito, que estabeleceria a coautoria. O tipo é especial em relação ao art. 288 do Código Penal (...). O conteúdo do crime, porém, é igual ao do seu similar (Tóxicos: prevenção-repressão. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, página 209).

Assim, estabeleceu-se, na jurisprudência, o entendimento de que a diferença entre o crime em questão e o concurso eventual de agentes está na estabilidade do vínculo. Nessa linha de compreensão: ‘Habeas corpus. Processual Penal. Crime de associação para o tráfico (Lei nº 11.343/06, art. 35, caput). Trancamento da ação penal. Inépcia da denúncia e ausência de justa causa. Não ocorrência. Ausência de constrangimento ilegal. Ordem denegada. (...) 3. Verifica-se, pela simples leitura da exordial acusatória, que não há ilegalidade a merecer reparo pela via eleita, uma vez que a denúncia contém descrição mínima dos fatos imputados à ora paciente, principalmente considerando tratar-se de crime de associação para o tráfico, relativamente ao qual a existência do liame subjetivo e da estabilidade associativa deve ser apurada no curso da instrução criminal. 4. Ordem denegada’. (HC 121188, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Primeira Turma, DJe de 03-04-2014).

Trata-se de crime doloso, com especial fim de agir, qual seja, o de traficar drogas ou maquinários. Requer o agrupamento de pelo menos duas pessoas, com ajuste prévio e certa estabilidade de propósito. É um crime autônomo, pois, para que esteja caracterizada a associação para o tráfico, é dispensável o êxito nas práticas dos crimes dos artigos 33 e 34 da Lei de Drogas.

A Convenção de Palermo (2000) arrola 4 (quatro) características das redes criminosas, a saber: “a) grupo estruturado, com atuação de três pessoas no mínimo; b) ação criminosa contra uma ordem legal; c) lavagem de dinheiro; d) corrupção de agentes estatais” (Oliveira, Adriano. Tráfico de drogas e crime organizado: peças e mecanismos).

No desenvolvimento de seu pensamento, no julgamento do HC 101265, o Ministro Ayres Britto disse que as organizações criminosas voltadas para o tráfico de drogas se aproveitam de pessoas socialmente vulneráveis para a arriscada tarefa de transportar entorpecentes dentro do próprio corpo ou de bagagens forjadas. Trabalho que não gera, sequer, reconhecimento dentro do “mundo do tráfico”. Tanto que tais agentes são chamados de “mulas” ou “aviões”. Nomes esses que já denotam o caráter descartável de tais pessoas para o grupo criminoso. Equivale a dizer: nem mesmo a rede criminosa considera tais agentes como “membros” de sua organização.

Ademais, entenda-se que o verbo integrar significa “incorporar-se a um conjunto” ou “fazer sentir-se como membro antigo ou natural de uma coletividade” (Dicionário Eletrônico Houaiss, 2009). O mais comum é que o agente transportador nem conheça os responsáveis pela fabricação, refino e comercialização da droga. Donde o acerto do magistério de João José Leal, in verbis:

“Além de ser primário e de bons antecedentes, o condenado deve demonstrar que, descontando sua atuação no tráfico, não se dedica às atividades criminosas e nem pertence a uma organização criminosa. Neste último caso, organização criminosa somente pode ser aquela a que se refere – embora sem defini-la - a Lei nº 9.034/1995. Cremos que a minorante foi criada para beneficiar o traficante primário e de bons antecedentes que, isoladamente, na ponta da cadeia criminosa, faz seu trabalho à margem (ou, ao menos, sem contato direto) dos principais integrantes da quadrilha ou organização e que são os verdadeiros responsáveis pelo sinistro negócio do tráfico de drogas.”(Tráfico de drogas e controle penal: Nova política criminal e aumento da pena mínima para o crime de tráfico ilícito de drogas).

Disse, ainda, o Ministro Ayres Britto que o tráfico de drogas, mesmo em sua dimensão interna ou nacional, estrutura-se na divisão de tarefas entre pessoas “escalonadas” em “postos” (“bucha”, “avião”, “vendedor”, “vapor”, “fogueteiro”, “distribuidor”, “gerente”, “dono da boca” etc.). Pelo que a encampação da tese de que a indispensabilidade do trabalho do transportador da droga (“avião”, “mula”) impede a redução da pena importa, a bem da verdade, a nulificação do objetivo da norma penal mais benéfica. Objetivo, esse, aparelhado com a garantia da individualização da pena (inciso XLVI do art. 5º da CF). Concluiu o Ministro Ayres Britto: entre duas possibilidades hermenêuticas, tenho como decisiva aquela que maior eficácia confere à personalização da sanção, garantia resguardada no tópico dos direitos e garantias individuais da Constituição brasileira.

Essa a linha que foi adotada no voto em discussão.

Mas a matéria é polêmica.

Veja-se outro posicionamento da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal:

Em conclusão, a 1ª Turma, por maioria, negou provimento a recurso ordinário em habeas corpus para assentar a inviabilidade da aplicação da atenuante da confissão espontânea, bem como da causa de diminuição prevista no art. 33, § 4º, da Lei 11.343/2006, por não se verificar, de forma cabal, a ausência de envolvimento do réu com atividades criminosas. Na espécie, o recorrente fora condenado pela prática do crime de tráfico por haver transportado 1,5 Kg de cocaína * v. Informativo 618. Prevaleceu o voto do Min. Ricardo Lewandowski, que destacou o fato de ter o recorrente se deslocado de São Paulo para Alagoas com grande quantidade de entorpecente. Entendeu que o fato seria expressivo a demonstrar seu envolvimento com a delinquência. Ademais, reputou que, para se chegar à orientação diversa da adotada pelas instâncias antecedentes, no sentido da inexistência de vínculo do ora recorrente com atividades criminosas, seria necessário adentrar o conjunto fático-probatório, inviável em sede de habeas corpus. Vencidos os Ministros Dias Toffoli, relator, e Luiz Fux, que proviam, em parte, o recurso, de modo a afastar somente a confissão espontânea, por reputarem que a quantidade de droga transportada não implicaria, por si só, participação em organização criminosa. Consideravam que o paciente, semregistro de nenhuma outra ocorrência com o tráfico, seria uma simples “mula”, cuja conduta poderia ser enquadrada como traficância menor ou eventual. RHC 103556/SP, rel. orig. Min. Dias Toffoli, red. p/ o acórdão Min. Ricardo Lewandowski, 5.4.2011. (RHC-103556).

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O Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, entendeu que para a caracterização o crime de associação para o tráfico é imprescindível o dolo de se associar com estabilidade e permanência, sendo que a reunião ocasional de duas ou mais pessoas não se enquadra ao tipo do artigo 35 da Lei 11.343/2006.

Esse foi o entendimento da ministra do Superior Tribunal de Justiça Laurita Vaz ao conceder parcialmente Habeas Corpus, no  HC 476.215, para absolver dois homens condenados por associação para o tráfico, com cumprimento da pena em regime fechado. Para a ministra, as instâncias inferiores não comprovaram a estabilidade ou permanência da associação.

Para a caracterização do crime de associação criminosa, é imprescindível a demonstração concreta do vínculo permanente e estável entre duas ou mais pessoas, com a finalidade de praticarem os delitos do art. 33, caput e § 1º e/ou do art. 34, da Lei de Drogas (HC 354.109/MG, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 15/9/2016, DJe 22/9/2016; HC 391.325/SP, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 18/5/2017, DJe 25/5/2017)

A Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) estabeleceu requisitos para condenação por associação ao tráfico de drogas, como confissão extrajudicial, local da apreensão, conhecido como ponto de venda, posse de rádio transmissor, dentre outras circunstâncias.

A decisão liminar (HC 620.206/RJ) teve como relator o ministro Nefi Cordeiro. Observo a sua ementa:

HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS E ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO. ESTABILIDADE E PERMANÊNCIA. CONFIGURAÇÃO. MINORANTE. NÃO INCIDÊNCIA. ORDEM DENEGADA.

1. Firmou-se neste Superior Tribunal de Justiça entendimento no sentido de que indispensável para a configuração do crime de associação para o tráfico a evidência do vínculo estável e permanente do acusado com outros indivíduos.

2. A dinâmica dos fatos descrita pelos policiais, confirmadas em Juízo, denota que o acusado, preso em flagrante, exerceria a função de vapor.

3. A confissão extrajudicial, aliada ao local da apreensão, conhecido como ponto de venda, à posse de rádio transmissor, às inscrições referentes à facção Comando Vermelho nas embalagens das drogas apreendidas, além do depoimento de policiais, confirmados em juízo, podem respaldar a condenação pelo delito de associação para o tráfico.

4. Ausente violação ao princípio da correlação quando a denúncia descreve a associação do agente, de forma livre e consciente, a indivíduos não identificados, pertencentes à facção criminosa Comando Vermelho, que domina a localidade, unindo recursos e esforços para a prática do tráfico de drogas, ainda que a peça inaugural não mencione expressamente o rádio transmissor apreendido.

5. Mantida a condenação por associação para o tráfico, fica afastada a minorante do § 4º do art. 33 da Lei 11.343/06.

6. Habeas corpus denegado.

(HC 620.206/RJ, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 07/12/2020, DJe 11/12/2020)

Vale destacar que o STJ já possui tese firmada nesse sentido, ou seja, de que “Para a caracterização do crime de associação para o tráfico é imprescindível o dolo de se associar com estabilidade e permanência”, conforme se vê dos Acórdãos proferidos no HC 235247/SP; no HC 270837/SP; no HC 286219/PE; no HC 271723/MG; no HC 260330/SP; no HC 137535/RJ; no HC 248844/GO; e no HC 239965/RJ.

 Trata de crime formal, que, consequentemente, se consuma com a mera união dos envolvidos, ou seja, no momento em que se associam (de forma estável e duradoura para a prática do tráfico de drogas).

“Para a configuração do crime de associação para o tráfico de drogas, previsto no art. 35 da Lei n. 11.343/2006, é irrelevante a apreensão de drogas na posse direta do agente”, conforme os Acórdãos proferidos no HC 441712/SP; no RHC 93498/SC; no HC 432738/PR; no HC 137535/RJ; e no HC 148480/BA.

Por sua vez, haverá concurso material com o crime de tráfico quando, após a associação, vierem efetivamente a cometer qualquer dos crimes dos arts. 33, § 1º, e 34 da Lei.

Tanto o Superior Tribunal de Justiça quanto o Supremo Tribunal Federal entenderam que o crime de associação para o tráfico não é equiparado a hediondo por não ter sido mencionado no art. 1º, parágrafo único, da Lei n. 8.072/90.

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Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. Algumas linhas sobre o crime de associação para o tráfico de entorpecentes. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6428, 5 fev. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/88283. Acesso em: 26 abr. 2024.

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