Na última semana, me deparei com a seguinte notícia: “Técnica de enfermagem finge ter vacinado idosa contra Covid e é afastada”. Como se não bastassem todas as atrocidades que temos visto todos os dias, as pessoas insistem em - para além da demonstração de falta de humanidade, caráter e outras coisas mais - praticar crimes.
A intenção desse artigo é fazermos, juntos, uma análise e estudo jurídico-penal do caso.
O artigo 3º, inciso I, da Constituição Federal prevê, como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Não é o que temos visto por aqui.
Ao arrepio da Constituição, da ética, da moral e do Direito, o povo segue inovando na prática delitiva, à custa da pandemia. Realizam licitações fraudulentas/ superfaturadas, sob o manto da contratação emergencial, prevista na Lei 8.666/93; tem gente furando a fila de prioridade de vacinas e agora a enfermeira que simulou ter vacinado mulher idosa.
O Direito Penal é a ultima ratio, o que significa que devemos dele nos socorrer após considerarmos as demais esferas jurídicas, sem que dessas possamos extrair a solução para o caso concreto.
Primeiramente, pensemos no crime de lesão corporal, previsto no artigo 129 do Código Penal[1]. A conduta consiste na ação ou omissão de ofender, direta ou indiretamente, a integridade corporal ou saúde de outrem, quer causando uma enfermidade quer agravando a que já existe[2].
A enfermeira, por não ter aplicado a vacina (substância líquida) na paciente, não desempenhou intervenção em prol de sua saúde com o seu ato, mas tão somente a perfuração no braço da idosa. Nesse sentido, se considerássemos apenas o ato de perfurar o braço da vítima, poderíamos eleger o crime de lesão corporal como sendo a figura típica praticada pela enfermeira. Ocorre que o enquadramento legal deve ser o mais preciso possível, razão pela qual devemos considerar todos os elementos da conduta.
Prosseguindo a análise, perceberemos que objetivo principal da enfermeira com sua conduta não foi lesionar a vítima, mas sim enganá-la, ludibriá-la com o fim de obter vantagem ilícita. A vantagem almejada pode, por exemplo, ter sido guardar a vacina (preparação biológica) consigo para posteriormente aplicar em si mesma ou em outra pessoa ou ainda vendê-la, com o fim de obter vantagem econômica. Sendo assim, o crime que melhor se enquadraria à conduta seria o estelionato, previsto no artigo 171 do Código Penal, com causa de aumento por ter sido praticado contra pessoa idosa, abaixo transcrito:
Estelionato
Art. 171 - Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento:
Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa, de quinhentos mil réis a dez contos de réis.
(...)
Estelionato contra idoso
§ 4o Aplica-se a pena em dobro se o crime for cometido contra idoso.
Doutrina de peso entende que a natureza da vantagem para a configuração do delito de estelionato é indiferente – podendo ser vantagem econômica ou não econômica – e basta que ela seja ilícita[3].
Acerca da conduta do crime de estelionato, o agente emprega fraude para induzir a vítima em erro, de forma que ela tenha falsa percepção da realidade e o fraudador, aproveitando-se dessa situação, obtenha vantagem ilícita[4].
Ressalte-se, aqui, que o crime de estelionato se consuma com a efetiva obtenção da vantagem ilícita[5], sendo assim, caso não reste comprovada a obtenção da vantagem pela enfermeira, restará ao órgão acusatório denunciá-la pela modalidade tentada do delito, na forma do artigo 14, inciso II, do Código Penal.
Poderíamos, ainda, aventar a possibilidade de que, com sua conduta, a enfermeira teria praticado o crime de perigo para a vida ou saúde de outrem, previsto no artigo 132 do Código Penal (segundo o dispositivo, é crime a conduta de expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente – prestes a ocorrer).
Este último delito é considerado, pela doutrina, como crime de ação livre, ou seja, pune-se aquele que DE QUALQUER FORMA coloca determinada pessoa em perigo de dano direto, efetivo e iminente (seria o caso, já que a vítima estaria exposta à COVID-19). Contudo, trata-se de crime subsidiário, que não admite concurso de crimes com a norma principal (estelionato, conforme análise), sendo assim, não poderia a enfermeira ser denunciada pelo delito de estelionato em concurso formal (Código Penal, artigo 70) com o crime de perigo para a vida ou saúde de outrem, porque o parágrafo único deste último prevê que a pena somente será aplicada se o fato não constituir crime mais grave.
Descartada a hipótese de configuração do crime de perigo para a vida ou saúde de outrem, pelos motivos acima expostos, não nos esqueçamos de que, caso a enfermeira seja funcionária pública, ela poderá responder por tentativa de estelionato, em concurso formal com o crime de prevaricação, disposto no artigo 319 do Código Penal.
Vimos que a ação da enfermeira poderia, hipoteticamente, se enquadrar a tipos penais já existentes e que, apesar de parecer inovadora, foi pensada pelo Legislador Penal muito antes de ser empregada (digo 1940, com alteração em 1984), por essa razão, penso que a legislação que temos é suficiente para enquadrarmos as “novas condutas criminosas” e que prescindimos da atuação legislativa desenfreada que anseia criminalizar toda e qualquer ação delitiva que, à primeira vista, pareça inédita.
[1] Lesão corporal
Art. 129. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem:
Pena - detenção, de três meses a um ano.
[2] CUNHA, Rogério Sanches. MANUAL DE DIREITO PENAL: parte especial (arts. 131 ao 361). 10ª edição, Ed. JusPodivm. Salvador-BA, 2018. pág 119.
[3] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte especial. Saraiva. São Paulo. 2011.
[4] CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal: parte especial (arts. 131 ao 361). 10ª edição, Ed. JusPodivm. Salvador-BA, 2018. pág 337.
[5] RT 536/326.