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A norma injusta no Estado Democrático de Direito

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20/08/2006 às 00:00
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8. DA IMPORTÂNCIA DOS VALORES SOCIAIS NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

No Estado Democrático de Direito temos a constituição como norma fundamental, expressão da síntese de diversos pensamentos e tendências existentes no seio da sociedade brasileira. Na Carta Política estão inseridos princípios constitucionais que cumprem importante "[...] função de ser o fio condutor dos diferentes segmentos do texto constitucional, dando unidade ao sistema normativo" [29] e expressando valores aceitos como fundamentais a nossa nação.

Nossa carta constitucional claramente acolheu o retorno à idéia de valores ao instituir um Estado Democrático de Direito

[...] destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias. [30]

A fim de espancar qualquer dúvida de seu comprometimento com os valores sociais, uma vez que muitos não reconhecem o preâmbulo constitucional como norma dotada de obrigatoriedade, iniciou seu texto com um título unicamente voltado para a fixação dos "Princípios Fundamentais".

No Artigo 1º, cujo parágrafo único declara que "[...] todo o poder emana do povo" [31], temos por fundamentos do nosso Estado: a soberania; a cidadania; a dignidade da pessoa humana; os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo democrático; no artigo 3º temos consignados os objetivos, que exprimem o compromisso de construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade quaisquer outras formas discriminação.


9. DA OBRIGATORIEDADE DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS

Mello [32] define princípio como sendo "[...] por definição, mandamento nuclear de um sistema", base e origem de todo o ordenamento constitucional, uma "[...] disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo". [33] Parte da doutrina, hoje minoritária, ainda entende que os princípios são meras declarações de intenção do Estado, normas programáticas não vinculantes que não geram qualquer direito.

Alexy [34], capitaneando o pensamento doutrinário dominante, defende a obrigatoriedade dos princípios porque "[...] tanto as regras como princípios são normas, porque ambos dizem o que deve ser [...] os princípios são normas dotadas de alto grau de generalidade, ao passo que as regras, sendo também normas, têm, contudo, grau relativamente baixo de generalidade."

Embora os princípios possuam natureza genérica sendo passíveis de processos de integração em casos de conflitos normativos [35], "[...] violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma" [36], conforme afirma Mello [37], porque

[...] a desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais.

Dentre os inúmeros princípios que regem o Estado Democrático de Direito destaca-se o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado. Os interesses privados são interesses concebidos de forma isolada com objeto e titulares identificados e estes enquanto interesses individuais devem se submeter aos "interesses públicos supremos". O Estado, no exercício de sua "função administrativa", "[...] está adstrito a satisfazer interesses públicos". [38]

Quais são esses interesses públicos? Justen Filho [39] critica o pensamento jurídico circular "[...] o interesse é público porque atribuído ao Estado e é atribuído ao Estado porque é público". O conceito de interesse público desdobra-se em interesse público primário e interesse público secundário. O primeiro consiste no bem comum enquanto o segundo é como a Administração considera este interesse. [40]

Todo interesse da administração possui o atributo da supremacia? Toda vontade da administração deve ser considerada como expressão do interesse público? Claro que não. "O interesse público não consiste no interesse do aparato estatal" [41], a atividade executiva do Estado repousa sobre dois princípios fundamentais: a supremacia do interesse público sobre o privado e a indisponibilidade, pela administração, dos interesses públicos. Bastos [42] entende que somente os interesses públicos autênticos possuem este atributo, quando o "[...] Poder Público atua em nome de interesses que tem como qualquer pessoa de direito, sem revelar propriamente interesses da coletividade, mas um interesse que possui enquanto mera pessoa jurídica", não há que se falar em supremacia do interesse público.

Bastos [43] destaca que a supremacia do interesse público somente tem cabimento quando a administração está atuando na persecução de objetivos "[...] que dizem respeito à coletividade e não especificamente a este ou àquele indivíduo". O interesse secundário, quando colidente com o interesse primário, não possui o atributo de supremacia. Mello [44] explicita que:

[...] o Estado [...] poderia, portanto, ter o interesse secundário de resistir ao pagamento de indenizações, ainda que procedentes, ou de denegar pretensões bem-fundadas que os administrados lhe fizessem, ou de cobrar tributos ou tarifas por valores exagerados.

Gasparini [45] no mesmo sentido assevera:

Não é interesse público o relativo à Administração Pública enquanto tal como ocorre no adiamento, por alguns dias, do pagamento dos vencimentos de seus servidores para, mantendo os valores correspondentes aplicados no mercado financeiro, auferir renda.


10. CONCLUSÃO

Sendo assim, a norma legal, formalmente válida, que privilegia interesse privado do Estado em detrimento dos interesses sociais, deve ser ou não admitida como válida por nossos tribunais?

Reale [46] apenas aponta a existência do problema, sem, contudo, arriscar-se a uma posição: "[...] não se sabe qual o maior dano, se das leis más, suscetíveis de revogação, ou o poder conferido ao juiz para julgar contra legem, a pretexto de não se harmonizarem com o que lhe parece ser uma exigência ética".

Muitas são as objeções à possibilidade de o juiz negar a validade de uma norma com base em um valor não-determinável de plano, seja por gerar insegurança jurídica em face à impossibilidade de previsibilidade das decisões judiciais, seja por usurpação de competência privativa do legislativo.

O julgador não pode aplicar a norma infraconstitucional de forma desconectada dos valores expressos na norma maior. O afastamento de norma infraconstitucional, em atendimento a valores éticos, que devem imantar todo o sistema jurídico nacional, longe de ser um dano, é um benefício, um benefício ao povo; um benefício à democracia, porque o Judiciário como poder, que também deve ser exercido em nome do povo, não pode estar dissociado da missão de promoção do bem comum na distribuição da justiça.

A norma que privilegia interesses privados em detrimento de interesses públicos é inconstitucional por ofensa ao princípio da supremacia do interesse público sobre o privado. Esse princípio implícito nas constituições atuais, porque decorrem da própria premissa do Estado Democrático de Direito, chegou a ser expresso na primeira constituição do nosso país. A Constituição Imperial, de 25 de março de1824, em seu artigo 179, III consignava como garantia individual que "[...] nenhuma lei será estabelecida sem utilidade pública." [47]

Mello [48] adverte que a "[...] administração não pode prevalecer com a mesma desenvoltura e liberdade com que agem os particulares, ocupados na defesa das próprias conveniências, sob pena de trair sua missão própria e sua própria razão de existir".

Os interesse secundários, privados do Estado, não prevalecem quando colidentes com o interesse público primário. Esta colidência é matéria passível de ser examinada pelo poder judiciário, "[...] pois aferir e qualificar um interesse público como determinante de uma ação administrativa representa, afinal, um juízo de legalidade". [49] Aduzimos que essas observações também se aplicam aos legisladores. "O parlamentar, como se sabe, não é obrigado por lei nenhuma a prestar contas a seu eleitorado, nem é responsabilizável por seus atos" [50], porém não devem se conduzir no exercício de função pública como se fossem titulares autônomos do poder de fazer leis editando normas contrárias ao interesse do povo.

Telles Júnior [51] defende que:

[...] ao governo legítimo, deve repugnar a promulgação do Direito artificial, isto é, a promulgação de mandamentos em conflito com a normalidade ambiente; de mandamentos que sejam a contrafação do Direito, embora levem, muitas vezes, o rótulo de Direito. Aos olhos do Governo legítimo, não pode ser tido como Direito o que não é Direito, mas o Torto.

Rousseau [52], o pai do contratualismo, já defendia que "[...] no caso de ser má a ordem estabelecida, por que se há de tomar por fundamental as leis que impedem de ser bom?"

Considerando que nosso sistema jurídico se sustenta sobre pilares éticos expressos nos valores constitucionais, há que se admitir a utilização de valores éticos na atuação dos juízes. A decisão fundada em valores, decorrentes de fundamentos ou princípios constitucionalmente assegurados, consiste em um devido controle da legalidade da norma e aplicação da devida justiça no caso concreto.

Sem qualquer sombra de dúvidas pode-se afirmar que a lei injusta causa maior dano que permitir aos magistrados decidir de conformidade com os valores éticos expressos em nossa Carta Magna.

O devido processo legal possui inúmeros recursos capazes de conferir à decisão ética o devido controle. Se o judiciário não puder se manifestar sobre a adequação das normas aos valores constitucionais, pilares de todo ordenamento, estaríamos diante de uma constituição de faz-de-conta, que existe somente para enganar o povo com a esperança vã de um Estado Democrático de Direito onde impere a justiça social.

A norma injusta, incompatível com os valores constitucionais, é, e deve ser vista, no Estado Democrático de Direito, como um câncer que corrói as consciências, as esperanças e a crença na capacidade estatal de realização do bem comum.

A sobrevivência de normas, formalmente válidas, colidentes com valores sociais expressos na Carta Magna, é um fator de neutralização, desidratação, despolitização, esvaziamento e dissolução do sentido de legalidade [53], e fere de morte a própria concepção do Estado Democrático de Direito que, embora esteja previsto na carta constitucional, depende ainda da ação consciente da sociedade civil, para ser implementado.

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Notas

01 REALE, Miguel. Lições preliminares do direito. 26. ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2002. p.16.

02 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

03 TEPEDINO, Gustavo.Contornos constitucionais da propriedade privada. Revista de Direito Comparado, Belo Horizonte, v. 2, n. 2, p. 252-253, mar. 1998.

04 SOUZA JÚNIOR, José Geraldo de et al. Ensino jurídico. OAB: diagnóstico, perspectiva e propostas. Brasília: Conselho Federal da OAB, 1992.

05 REALE, 2002, p. 67.

06 ROSS, Alf. Direito e justiça. Tradução de Edson Bini. Bauru: EDIPRO, 2000. p.166.

07 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 17. ed. rev. atual. São Paulo: Malheiros, 2000a. p. 123.

08 SILVA, 2000a, p. 123.

09 BONAVIDES, Paulo. A despolitização da legitimidade. Revista Trimestral de Direito Público, n. 3, p. 30-31, 1993.

10 BONAVIDES, 1993, p. 31.

11 SILVA, 2000a, p. 123.

12 REALE, 2002, p. 49.

13 REALE, 2002, p. 49.

14 BONAVIDES, 1993, p. 31.

15 BONAVIDES, 1993, p. 30.

16 MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo? A questão fundamental da democracia. Tradução de Peter Naumann. São Paulo: Max Limonad, 1998. 115p.

17 RODRIGUES, 2002, p. 23.

18 RODRIGUES, 2002, p. 23.

19 MAZZILLI, Hugo Nigro. O acesso à justiça e o ministério público. 3. ed. rev. ampl. atual. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 4.

20 ROUSSEAU, Jean Jacques. O contrato social e outros escritos. Introdução e Tradução de Ronando Roque da Silva. São Paulo: Cultrix, 1987. p. 23.

21 REALE, 2002, p. 112.

22 LACORDAIRE apud HERKENHOFF, João Batista. Justiça, direito do povo. 2. ed. Rio de Janeiro: Thex, 2002. p. 71.

23 Cf. RODRIGUES, Marcelo Abelha. Instituições de direito ambiental: parte geral. São Paulo: Max Limonad. 2002. v. 1, p. 26.

24 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 68.

25 BASTOS, Celso Ribeiro; MARINS, Yves Gandra. Comentários à constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva, 1988. v. 1, p. 421.

26 SILVA, 2000a, p. 125.

27 Cf. BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 24.

28 BARCELLOS, 2002, p. 24.

29 BARROSO, Luís Roberto. Princípios constitucionais brasileiros. Revista Trimestral de Direito Público, n. 1, p. 174, 1993.

30 Preâmbulo da CF de 1988 (BRASIL, 2003b).

31 Art. 1º, § 1º da CF (BRASIL, 2003b).

32 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 12. ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 747.

33 MELLO, 2000, p.747-748.

34 ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1993. p. 83 e seguintes

35 ALEXY, 1993, p. 83.

36 MELLO, 2000, p.748.

37 MELLO, 2000, p.748.

38 MELLO, 2000, p. 32.

39 JUSTEN FILHO, Marçal. O conceito de interesse público e a "personalização"do direito administrativo. Revista Trimestral de Direito Público, n. 26, p. 115-136, 1999.

40 Cf. MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo: meio ambiente, consumidor e outros interesses difusos e coletivos. 8. ed. rev. ampl. São Paulo: Saraiva. 1996. p. 4.

41 JUSTEN FILHO, 1999, p. 118.

42 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito administrativo. São Paulo: Saraiva, 1994. p.30-31.

43 BASTOS, 1994, p. 31.

44 MELLO, 2000, p. 33.

45 GASPARINI, Diogenes. Direito administrativo. 8. ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 15.

46 REALE, 2002, p. 113.

47 BRASIL. (Constituição 1824). Constituição política do Império do Brasil. Coleção de Leis do Brasil. Disponível em: . Acesso em: 27 jul. 2004a.

48 MELLO, 2000, p. 33.

49 BORGES, Alice Gonzales. Interesses públicos: um conceito a determinar. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, n. 205, p. 115, jul./set. 1996.

50 TELLES JÚNIOR, Goffedo. O povo e o poder. O conselho do planejamento nacional. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 76.

51 TELLES JÚNIOR, 2003, p.66.

52 ROUSSEAU, 1987.

53 Cf. BONAVIDES, 1993, p. 17-32.

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Sobre a autora
Patricia Marques Gazola

procuradora municipal de Vitória (ES), mestre em Direitos Constitucionais Fundamentais, especialista em Gerência de Cidades, professora da UNIVIX Faculdade Brasileira

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GAZOLA, Patricia Marques. A norma injusta no Estado Democrático de Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1145, 20 ago. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8833. Acesso em: 26 abr. 2024.

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