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O canto da sereia, a ciência e o impeachment

05/02/2021 às 14:45
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Analisa-se a eventual responsabilização de autoridades nacionais que, supostamente, teriam adotado medidas contra os preceitos científicos.

Consta em uma passagem da famosa obra “Odisseia” (de autoria atribuída a Homero), o episódio no qual Ulisses (um dos protagonistas da saga), em sua volta após a Guerra de Tróia, sabendo que precisaria navegar pelo território das “sereias”, determina que sua tripulação tape os ouvidos com cera, para não serem seduzidos pelo “Canto das Sereias”. Mas, o próprio Ulisses, pede que o amarre, permitindo assim que pudesse escutar o sedutor canto das sereias, sem que se jogasse ao mar rumo ao destino mortal que estas figuras míticas reservavam para os navegadores que se deixavam ludibriar pelo cântico sedutor.

Mas o que esta cena do repertório literário da Antiga Grécia tem em comum com os tempos atuais que estamos atravessando? Obviamente que se trata de uma analogia, ou metáfora, dependendo de como analisado.

Neste contexto, o endeusamento que alguns vem pretendendo conferir a “ciência” mais se assemelha a um fanatismo extremista. Note-se que o conceito (ou definição) de ciência é bastante controverso, e mesmo as ditas “ciências exatas” também não escapam de críticas no que se refere as suas supostas exatidões. A própria “matemática” (provavelmente a ciência mais próxima da precisão de todas as outras) é alvo de questionamentos em algumas das suas vertentes, quando se depara com os denominados “paradoxos matemáticos.” Tanto que alguns preferem a denominação de “ciências padronizadas” para este ramo do conhecimento.

Não se trata de pretender desmerecer a importância da “ciência”, mas sim de lhe conferir a sua real respeitabilidade, e consciência de que está sujeita a falhas e imprecisões.

No caso da atual pandemia de COVID-19 não é diferente. Tendo a própria Organização Mundial da Saúde (OMS / ONU), com base na “ciência”, emitido inúmeras orientações contraditórias desde o início da identificação deste novo agente do coronavírus, e que aqui não serão relembradas, por serem de conhecimento público, para não se estender demasiadamente neste texto.

E mesmo a eficácia das vacinas atualmente disponíveis são constantemente desafiadas nos seus testes de segurança e eficácia. Não se sabendo com precisão, até este momento, seus efeitos e respectivas eficácias.

Nesta sequência de acontecimentos, aqueles que pretendem desestabilizar a governabilidade (independente das diferentes motivações), agora, novamente, buscam o impedimento (IMPEACHMENT) do Presidente da República. Imputando-lhe práticas supostamente caracterizadoras de crimes de responsabilidade perante a calamidade da pandemia mundial. Posto que, nesta ótica oportunista, as deliberações presidenciais teriam sido contrárias aos parâmetros ditados pela “ciência”.

Primeiramente, é de se perguntar quais seriam estes parâmetros científicos? Porque, como dito, se a própria OMS / ONU, emitiu incontáveis orientações que depois foram tornadas sem efeito (tais quais usar ou não máscara, decretar ou não lockdowns, fechar ou não fronteiras e impedir viagens para impedir e disseminação do vírus, dentre outros), como se pretender responsabilizar o atual mandatário presidencial por eventuais demoras na tomada de decisões cruciais, ou de defender posicionamentos que, ao mesmo tempo que procurava resguardar a saúde nacional, também prestigiava OUTRAS CIÊNCIAS, como as econômicas, sociais / antropológicas e relacionadas à saúde mental.

Tudo isto, vale enfatizar, em um cenário de profundas incertezas científicas, e roubalheiras generalizadas no uso dos recursos financeiros disponibilizados para combate a esta pandemia.

Passando em revista a normatização regradora dos crimes de responsabilidade previstos na Constituição Federal (art. 85), e detalhados na Lei n° 1.079/50, e dentro desta moldura de fatos acima relacionados, chega-se a conclusão de que, somente um devaneio oportunista poderia instigar a deflagração do procedimento de impedimento do exercício da função presidencial.

O açodamento na compra de vacinas cujos efeitos e eficácias ainda estão sendo debatidos, aliado aos lucros buscados pelas vendas destes fármacos por parte dos fabricantes (é cediço que a indústria farmacêutica é uma das mais lucrativas no mundo), combinado ainda com corrupções e contratos secretos (que parece, salvo engano, inclusive isentar os fabricantes de qualquer sorte de responsabilidades por efeitos adversos) nestas negociações arcadas com dinheiro público, poderia levar ao dispêndio destes recursos financeiros sem o devido controle ou, pior, para a aquisição de vacinas que não apenas poderiam ser ineficazes, mas inclusive prejudiciais à saúde.

Mal comparando, lembre-se o triste caso da “talidomida”, medicamento que podia ser adquirido inclusive sem receita, com base nas alegações de segurança do seu uso por parte do fabricante. E que passou a ser utilizado por gestantes para tranquilizar o sono, e amenizar os enjoos matinais. E que, depois, acarretou verdadeira tragédia, em razão do nascimento de crianças com manifestações de deficiências relacionadas a este medicamento. O que motivou a edição da Lei n° 7.070/93, que passou a “conceder pensão especial, mensal, vitalícia e intransferível, aos portadores da deficiência física conhecida como "Síndrome da Talidomida" que a requererem, devida a partir da entrada do pedido de pagamento...” (art. 1°).

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Portanto, aqueles que pretendem promover o impedimento do atual Presidente com base nos posicionamentos tomados neste conturbado momento desta pandemia mundial, podem, eventualmente, estar incorrendo em crime de abuso de autoridade, ou mesmo de falsa acusação de improbidade administrativa, como abaixo indicado:

Lei 8.429/92

Art. 19. Constitui crime a representação por ato de improbidade contra agente público ou terceiro beneficiário, quando o autor da denúncia o sabe inocente.

Pena: detenção de seis a dez meses e multa.

Parágrafo único. Além da sanção penal, o denunciante está sujeito a indenizar o denunciado pelos danos materiais, morais ou à imagem que houver provocado.

Lei 13.869/2019

Art. 27.  Requisitar instauração ou instaurar procedimento investigatório de infração penal ou administrativa, em desfavor de alguém, à falta de qualquer indício da prática de crime, de ilícito funcional ou de infração administrativa: Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.

Parágrafo único.  Não há crime quando se tratar de sindicância ou investigação preliminar sumária, devidamente justificada.

...

Art. 30.  Dar início ou proceder à persecução penal, civil ou administrativa sem justa causa fundamentada ou contra quem sabe inocente:   Pena - detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa

O que se espera, neste triste momento que a humanidade atravessa, é que a ciência consiga fornecer as respostas adequadas para o combate a esta pandemia (sabendo de suas dificuldades e falibilidades, não se podendo deixar seduzir por alegadas certezas científicas inexistentes até o momento neste caso, devendo-se “tapar com cera” os ouvidos para as “sereias” anunciadoras de medidas e tratamentos infalíveis), e que as autoridades responsáveis hajam com as cautelas e agilidades necessárias, e que os mal intencionados sejam responsabilizados pelos seus atos criminosos.

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Sobre o autor
Sérgio de Oliveira Netto

Procurador Federal. Mestre em Direito Internacional (Master of Law), com concentração na área de Direitos Humanos, pela American University – Washington College of Law. Especialista em Direito Civil e Processo Civil. Professor do Curso de Direito da Universidade da Região de Joinville - UNIVILLE (SC).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA NETTO, Sérgio. O canto da sereia, a ciência e o impeachment. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6428, 5 fev. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/88345. Acesso em: 29 mar. 2024.

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