Artigo Destaque dos editores

A conformação do processo e o controle jurisdicional a partir do dever estatal de proteção do consumidor

Exibindo página 2 de 3
22/08/2006 às 00:00
Leia nesta página:

7. A efetividade da tutela (ou da proteção) jurisdicional: a interpretação do processo à luz das necessidades do direito material que protege o consumidor

7.1. Sobre proteção e tutela

Não há diferença entre dar proteção e dar tutela aos direitos. Os direitos podem ser protegidos, ou tutelados, pelo legislador, pelo administrador e pelo juiz. Nesse sentido há um gênero, a tutela dos direitos, do qual a tutela jurisdicional é apenas espécie.

No item anterior foi estudada a projeção do direito que protege o consumidor sobre a jurisdição. Tentou-se demonstrar o "modo" como o processo civil deve atuar para efetivamente tutelar o consumidor. Isso porque a jurisdição, como é óbvio, deve conferir ao consumidor a proteção – ou a tutela – que lhe é conferida pelo direito material.

É por essa razão que se torna imprescindível a distinção entre as formas de tutela - ou de proteção – jurisdicional e as técnicas processuais capazes de lhes dar efetiva atuação. A tutela jurisdicional nada mais é do que uma proteção ao direito por parte do juiz, embora prometida pelo direito material. As técnicas processuais são os instrumentos colocados à disposição das partes e do juiz para a concreta prestação da tutela jurisdicional.

De modo que é impossível pretender dar tutela jurisdicional efetiva ao direito do consumidor sem se considerar a proteção - ou a tutela - que lhe é outorgada pelo direito material. Mas, como a técnica processual é neutra em relação à proteção prometida pelo direito material – pois é concebida para atender as várias situações de direito substancial -, ela necessariamente deve ser compreendida e interpretada de forma crítica pelo juiz, a partir do direito fundamental à tutela jurisdicional e das tutelas prometidas pelo direito material.

Ou seja, para a correta interpretação da regra que institui as técnicas processuais, é preciso que o juiz tenha plena consciência do que o direito material espera da sua atuação. Nesse sentido, a interpretação da regra processual deve construir os modelos processuais adequados à prestação das tutelas prometida pelo direito material.

7.2. A participação do processualista

A construção de modelos processuais capazes de corresponder às necessidades do direito material logicamente também é tarefa do processualista. Assim como a função da jurisdição, no Estado constitucional, não é mais aquela que um dia foi vislumbrada por Chiovenda, é claro que o processualista, nos dias de hoje, tem uma missão bem mais importante a cumprir, não estando limitado a dizer o que está escrito nas normas processuais.

Cabe agora ao processualista, em primeiro lugar, compreender a lei à luz dos princípios e dos direitos fundamentais postos na Constituição. Essa compreensão já é uma tarefa crítica e de concretização, no sentido de que a lei não é mais objeto, mas apenas um componente que vai levar à sua construção (de um objeto).18

Mas o pós-positivismo, próprio dos Estados constitucionais, exige não só a compreensão, mas também a crítica da lei em face da Constituição, para que após o jurista possa projetar ou cristalizar a norma adequada. Essa transformação da ciência jurídica confere maior dignidade e responsabilidade à doutrina, já que dela se espera uma atividade essencial para dar efetividade aos planos da Constituição, ou seja, aos projetos do Estado e às justas aspirações da sociedade.

De modo que o processualista deve conformar a lei, dando-lhe os contornos exigidos pelas normas constitucionais. No presente caso deve interpretar as regras processuais sempre lembrando do dever do Estado proteger os direitos do consumidor e da proteção conferida ao consumidor pelo direito material.

Aliás, a própria abertura das regras processuais de proteção do consumidor - como as dos arts. 83. e 84, §5º do CDC - constitui um vivo sinal de que a estruturação do procedimento foi deixada a cargo do processualista e do juiz no caso concreto.

Nesse sentido, basta recordar que o art. 83. afirma que "para a defesa dos direitos e interesses protegidos por este Código (pelo CDC) são admissíveis todas as espécies de ações capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela", e que o §5º do art. 84. dá ao juiz o poder de determinar a "medida necessária" para a "tutela específica ou para a obtenção do resultado prático equivalente".

Isso significa que não basta ao processua lista falar sobre os instrumentos processuais – classificando, por exemplo, as sentenças em condenatória etc – sem considerar o que está ao seu redor, ou seja, a própria razão da sua existência, que são exatamente as tutelas prometidas pelo direito material.

Essa perspectiva é que animará a construção que vem a seguir, quando serão desenhados os modelos processuais adequados à efetiva obtenção da proteção outorgada pelo direito material ao consumidor.

7.3. Os modelos – ou as ações – processuais adequados à proteção do consumidor

7.3.1. A ação inibitória

A tutela inibitória é prestada por meio de ação de conhecimento, e assim não se liga instrumentalmente a nenhuma ação que possa ser dita "principal". Trata-se de "ação de conhecimento" de natureza preventiva, destinada a impedir a prática, a repetição ou a continuação do ilícito.19

A sua importância deriva do fato de que constitui ação de conhecimento que efetivamente pode inibir o ilícito. Dessa forma, distancia-se, em primeiro lugar, da ação cautelar, a qual é caracterizada por sua ligação com uma ação principal, e, depois, da ação declaratória, a qual já foi pensada como "preventiva", ainda que destituída de mecanismos de execução realmente capazes de impedir o ilícito.

A inexistência de uma ação de conhecimento dotada de meios executivos idôneos à prevenção, além de relacionada à idéia de que os direitos não necessitariam desse tipo de tutela, encontrava apoio no temor de se dar poder ao juiz, especialmente "poderes executivos" para atuar antes da violação do direito. Supunha-se que a atuação do juiz, antes da violação da norma, poderia comprimir os direitos de liberdade.

Porém, a ação inibitória é conseqüência necessária do novo perfil do Estado e das novas situações de direito substancial. Ou seja, a sua estruturação, ainda que dependente de teorização adequada, tem relação com as novas regras jurídicas, de conteúdo preventivo, bem como com a necessidade de se conferir verdadeira tutela preventiva aos direitos, especialmente aos de conteúdo não-patrimonial.

A ação inibitória é imprescindível à efetiva proteção do consumidor. Basta lembrar que se pode concretamente temer que o fornecedor industrialize, fabrique, importe ou exponha à venda produto ou serviço de alto grau de nocividade ou periculosidade, ou dotado de defeito de concepção ou de fabricação.

A norma do art. 84. do CDC institui uma série de técnicas processuais que, quando conjugadas, permitem a concepção de uma ação inibitória idônea para dar proteção ao consumidor. Basta reunir a técnica antecipatória (art. 84, §3o) e as sentenças mandamental (ordem sob pena de multa; art. 84, §4o) e executiva (determinação das medidas executivas necessárias; art. 84, §5o) para preparar o desenho de uma ação de conhecimento capaz de inibir atos de agressão aos direitos individuais e coletivos dos consumidores.

7.3.2. A ação de remoção do ilícito

Se a ação inibitória se destina a impedir a prática, a repetição ou a continuação do ilícito, a ação de remoção do ilícito, como o próprio nome indica, dirige-se a remover os efeitos de uma ação ilícita que já ocorreu.[20]

Esclareça-se que a ação inibitória, quando voltada a impedir a repetição do ilícito, tem por fim evitar a ocorrência de outro ilícito, e, quando objetiva inibir a continuação do ilícito, tem por escopo evitar o prosseguimento de um agir ou de uma atividade ilícita. Perceba-se que a ação inibitória somente cabe, nesse último caso, quando se teme um agir ou uma atividade. Ou melhor, a ação inibitória somente pode ser utilizada quando a providência jurisdicional for capaz de inibir o agir ou o seu prosseguimento, e não quando esse já houver sido praticado, estando presentes apenas os seus efeitos.

Há diferença entre temer o prosseguimento de uma atividade ilícita e temer que os efeitos ilícitos de uma ação já praticada continuem a se propagar. Se o infrator já cometeu a ação cujos efeitos ilícitos permanecem, basta a remoção da situação de ilicitude. Nesse caso, ao contrário do que ocorre com a ação inibitória, o ilícito que se deseja atingir está no passado, e não no futuro.

A dificuldade de se compreender a ação de remoção do ilícito advém da falta de distinção entre ato ilícito e dano. Quando se associa ilícito e dano, conclui- se que toda ação processual voltada contra o ilícito é ação ressarcitória ou de reparação do dano.

Acontece que há ilícitos cujos efeitos se propagam no tempo, abrindo as portas para a produção de danos, o que demonstra que o dano é apenas uma conseqüência eventual do ilícito.

Porém, não há cabimento em ter que esperar o dano para poder invocar a tutela jurisdicional. A prática de ato contrário ao direito, como é óbvio, já é suficiente para colocar o processo civil em funcionamento, dando-lhe a possibilidade de remover o ilícito e, assim, de tutelar adequadamente os direitos e de realizar o desejo preventivo do direito material.

Lembre-se das hipóteses em que já foi industrializado, fabricado, importado ou exposto à venda produto de alto grau de nocividade ou periculosidade, ou dotado de defeito de concepção ou de fabricação. Nesses casos, a ação de remoção do ilícito é o único modelo adequado para permitir à jurisdição remover os efeitos concretos do ilícito, evitando-se danos ao público consumidor.

Em relação aos direitos do consumidor, a ação de remoção de ilícito encontra técnicas adequadas no art. 84. do CDC. Esse artigo permite a elaboração de uma ação de conhecimento, dotada de tutela antecipatória (art. 84, §3o) e sentenças mandamental (art. 84, §3o; ordem sob pena de multa) e executiva (art. 84, §5o; por exemplo, busca e apreensão de produtos nocivos).

7.3.3. As ações inibitória e de remoção do ilícito não permitem a discussão do dano. A sumarização do procedimento

As ações inibitória e de remoção do ilícito se dirigem contra o ato contrário ao direito (respectivamente provável e já ocorrido), e assim não têm entre seus pressupostos o dano e o elemento subjetivo relacionado à imputação ressarcitória (culpa ou dolo).

De modo que, a não ser nos casos em que se teme um ilícito que se identifica cronologicamente com o dano, o autor não deve e não precisa invocar dano para obter a tutela inibitória. No caso de ação de remoção, existindo regra estabelecendo um ilícito, a invocação da violação da norma é suficiente para permitir a obtenção da tutela jurisdicional.

Os problemas das ações inibitória e de remoção, nessas hipóteses, são justamente os dos limites da defesa do réu e da extensão da cognição judicial. Ou seja, o que se pergunta é se, quando basta evidenciar a proibição de uma conduta, há como justificar a impossibilidade do réu discutir o dano e o juiz perguntar sobre ele.

Não temos dúvida que sim. Lembre-se que, no caso de direito absoluto, pouco importa o fato danoso, uma vez que o seu titular tem o direito de impedir qualquer ato que lhe seja contrário. O mesmo acontece em relação a normas que, embora relacionadas a direitos individuais, objetivam protegê-los através da vedação de condutas.

Mas, o que mais preocupa e importa são as normas que, também por intermédio da proibição de condutas, protegem determinados direitos transindividuais, como o direito do consumidor. Ora, se a norma objetiva dar tutela ao direito, impedindo certa conduta, ela foi editada justamente porque a sua prática pode trazer danos, e por isso deve ser evitada.

Assim, ampliar a cognição das ações inibitória e de remoção do ilícito, viabilizando a discussão do dano, é o mesmo que negar a proteção outorgada pela norma jurídica. Em outros termos: caso o réu pudesse negar a norma, afirmando que sua conduta não pode gerar dano, a norma não teria significação alguma. Do que adiantaria a norma proibir uma conduta, por entendê-la capaz de produzir dano, se o procedimento judicial abrisse oportunidade à discussão do que foi nela pressuposto?

Pense-se, por exemplo, na norma que proíbe a venda de determinado remédio ou produto, reputados nocivos ao consumidor. Caso não existissem ações voltadas a impor a vontade da norma, sempre seria possível a comercialização de remédio ou produto afirmado nocivo pela legislação. Não existiria, nessa perspectiva, ação capaz de inibir ou remover o ilícito, pois o réu sempre poderia apresentar contestação dizendo que tal comercialização não iria trazer danos. Portanto, essas ações seriam reduzidas, no máximo, a ações contra a probabilidade de dano. E daí novamente apareceria a pergunta: qual a razão de ser das normas de proteção?[21]

Se a jurisdição tem o dever de proteger os direitos do consumidor, obviamente é necessário que o Estado estabeleça técnica processual idônea à sua efetivação e que o juiz preste, mediante interpretação adequada, uma forma de tutela jurisdicional que seja realmente capaz de lhes outorgar utilidade. Tem-se, a partir daí, a idéia de que devem existir ações processuais destinadas a dar atuação ao desejo dessas normas, seja evitando (ação inibitória negativa) ou impondo (ação inibitória positiva) condutas, seja eliminando o ato que, embora proibido, foi praticado (ação de remoção do ilícito).

Nesse exato momento é que entra em jogo o labor da doutrina que liga o dever de proteção estatal à norma de direito material, ou que é consciente de que a atuação do ordenamento jurídico requer a atuação das normas protetivas. As ações inibitória e de remoção do ilícito constituem resultados de uma construção dogmática preocupada em dar ao processo a possibilidade de atuação dessas normas.

Para tanto, tal elaboração dogmática não só parte de uma interpretação dos arts. 461. do CPC e 84 do CDC à luz do direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva, como ainda é obrigada a pensar no procedimento como algo materialmente sumarizado, ou melhor, que elimina a possibilidade de discussão do dano, e assim deve possuir cognição parcial, a qual é plenamente legitimada pela necessidade de atuação das normas de proteção.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

A restrição da cognição em relação ao dano, nessas ações, encontra justificativa na necessidade de se dar efetividade à norma. Portanto, não há nada de lesivo ao contraditório ou à igualdade em se impedir a discussão do dano nessas ações. Arbitrário e irracional seria dar a um perito a possibilidade de substituir o juízo técnico que fundamentou a atuação do legislador ao proibir, por exemplo, a comercialização de um produto.

Como é óbvio, não se quer dizer, através dessa argumentação, que o dano não possa ser discutido, ou, em outras palavras, que aquilo que foi pressuposto pela norma não possa ser questionado. O que se quer frisar é que nessas ações a cognição deve ficar restrita ao ato contrário ao direito, pois de outra forma simplesmente não haverá razão para a proteção outorgada pelo direito material. Ou seja, da mesma forma que na ação possessória não se discute o domínio, nas ações inibitória e de remoção do ilícito não se discute o dano. Porém, e como é evidente, esse poderá ser discutido através de ação inversa posterior.

7.3.4. A ação de adimplemento na forma específica[22]

A outorga de proteção adequada no caso de adimplemento imperfeito requer a estruturação de uma ação de conhecimento capaz de permitir ao juiz forçar o devedor a substituir o produto ou suas partes viciadas, a complementar o peso ou a medida e a reexecutar o serviço. Para tanto é correto pensar na sentença que se concretiza em ordem sob pena de multa, prevista no §4o do art. 84. do CDC.

Contudo, nem sempre a multa será o meio executivo ideal a esses casos, pois não é possível ignorar que, em determinadas hipóteses, ela poderá não surtir o efeito desejado pelo consumidor. Nessas situações, quando a tutela almejada puder ser obtida sem a necessidade de participação do devedor, poderá ser requerida uma medida de execução necessária fundada no § 5º do art. 84, como a busca e apreensão do produto.

Particularmente para a hipótese de reexecução do serviço, é possível que se peça a sua reexecução por um terceiro às custas do devedor. Nesse caso não há racionalidade na aplicação do antigo modelo da execução das obrigações de fazer.

Desejando que o serviço seja executado por terceiro, o credor deverá indicá- lo desde logo, não havendo razão para ter que se subordinar a uma indicação do devedor ou do juiz, embora o serviço sempre corra por conta e risco do fornecedor (cf. art. 20, §1o, CDC).

Contudo, como a reexecução depende de financiamento do devedor, e o terceiro obviamente não começará o serviço antes de ser pago, é possível que o adimplemento seja mais uma vez frustrado, agora pelo não pagamento do valor necessário à sua realização.

A admissão da obstaculização da realização do serviço por simples iniciativa do fornecedor, significa o mesmo do que dar ao detentor do bem ou do capital a possibilidade de transformar o direito ao bem contratado em pecúnia. Se essa lógica fosse aceita, aquele que necessita do bem, e por isso realiza o contrato – ou seja, o consumidor -, jamais teria efetivamente assegurado o seu direito, enquanto o detentor do capital ou do bem teria a possibilidade de, a qua lquer momento, e inclusive em razão de uma "variação de mercado" que não lhe é benéfica, liberar-se da obrigação de entregar o bem mediante simples pagamento de dinheiro.23

De qualquer forma, como foi demonstrado nos itens anteriores, o CDC, através de normas materiais de proteção, confere ao consumidor o direito ao adimplemento perfeito da obrigação, de modo que o processo civil não pode fugir dessa realidade, negando a proteção que lhe foi expressamente prometida.

Apenas a tutela jurisdicional específica pode assegurar a prestação devida àquele que possui a expectativa de receber um bem. Não é por outra razão que o art. 84, §1º do CDC afirma que a obrigação somente se converterá em perdas e danos "se o autor o requerer ou se impossível a tutela específica ou a obtenção do resultado prático correspondente".

Lembre-se que o juiz pode utilizar a multa (art. 84, §4o do CDC) para constranger o devedor a entregar o bem, a suprir os seus vícios, a complementar o peso e a medida e a reeexecutar o serviço. Portanto, quando o demandado, além de descumprir a ordem judicial para reexecutar o serviço, nega-se a custeá-lo, impedindo que um terceiro o faça, a única saída para se dar efetividade à proteção prometida ao consumidor é admitir o uso da multa para compelir o devedor a arcar com as custas relativas a reexecução do serviço.

Se as regras processuais do CDC devem ser interpretadas em consonância com o dever estatal de proteção ao consumidor, não há como negar que a multa pode ser utilizada para forçar o devedor a pagar pelos custos da reexecução do serviço, pena de o direito à reexecução ser entregue à vontade não só de quem já detém uma posição de privilégio no mercado, mas também de quem, segundo a própria decisão jurisdicional, já violou o direito do consumidor.

Cabe deixar claro, por outro lado, que a ação para o adimplemento perfeito ou na forma específica se baseia apenas no inadimplemento ou no cumprimento imperfeito; nunca em dano. Por isso não é possível sequer cogitar a respeito de discussão de culpa nessa ação.

É certo que não há como confundir inadimplemento e mora. Mas essa distinção não pode partir da premissa de que o inadimplemento é definitivo e a mora é temporária, como sustentam alguns civilistas.24 A diferença entre inadimplemento e mora não tem relação com a possibilidade do cumprimento da obrigação. Inadimplir é simplesmente descumprir. Se o prazo para o cumprimento não foi observado, e a obrigação ainda pode ser adimplida, há evidente inadimplemento (ou descumprimento).

A mora é o inadimplemento qualificado pela culpa. Portanto, quando a obrigação ainda pode ser adimplida, pode haver simples inadimplemento e inadimplemento culposo (ou mora). Dizer que o simples inadimplemento (não culposo) não importa quando há descumprimento "temporário" é o mesmo que afirmar que, nesse caso, a obrigação – ainda que o seu cumprimento seja possível e desejável – não pode ser adimplida. Ora, o fundamento do direito à prestação não tem nada a ver com o dano e, portanto, com a culpa. A culpa somente tem relevância qua ndo se investiga a responsabilidade pelo dano. Ou seja, a mora (ou o retardamento culposo) somente importa quando se pensa na responsabilidade pelo eventual dano causado pelo inadimplemento.

Como é lógico, o consumidor não tem que provar dano na ação voltada ao adimplemento específico da obrigação. "É que pacta sunt servanda e o desrespeito dos contratos é contra ius, constitui um ilícito violador do direito de crédito, a que pode ou não se seguir dano. É um comportamento ou estado contrário ao direito – um ilícito, portanto – condenado pelo ordenamento jurídico mesmo sem a presença de dano, à semelhança do que se passa nos direitos absolutos, como na ação de reivindicação.

Ilícito e dano são dois fenômenos conceitual e temporalmente distintos. O ilícito é conceitualmente mais amplo do que o dano: pode conter este mas não tem que conter necessariamente. O ilícito não postula necessariamente dano, que é conseqüência eventual mas não necessária dele. Pode haver ilícito sem dano, mas sem este não pode surgir a obrigação de indenização. Daí que a ação de cumprimento possa ter lugar na ausência de dano, por ser justamente uma forma de suprimir o ilícito, enquanto que a ação de indenização, por ser uma forma de superar os danos resultantes do ilícito, só pode ter lugar em caso de dano."25

7.3.5. A ação de ressarcimento na forma específica26

Ao contrário, a ação de ressarcimento, como é evidente, pressupõe dano. O consumidor, para obter tutela ressarcitória, deve demonstrar o dano e a relação de causalidade entre esse e o defeito do produto ou do serviço, ou ainda que o dano é proveniente de informações insuficientes ou inadequadas sobre a fruição e o risco do produto ou do serviço. Mas a responsabilização, nesse caso, dispensa a culpa. É que a culpa, que em regra constitui critério para a imputação da sanção ressarcitória, foi expressamente dispensada pelo CDC (arts. 12. e 14).

Já foi visto acima que o lesado tem direito ao ressarcimento na forma específica, que prevalece sobre a outra forma de ressarcimento, ou seja, sobre o ressarcimento pelo equivalente monetário.

Porém, em termos de proteção processual, interessam as técnicas capazes de permitir a obtenção do ressarcimento na forma específica. Conforme já foi demonstrado, o direito à reparação do dano não é um simples direito à obtenção de dinheiro. Foi a legislação processual, em razão da sua ideologia e de falsos pressupostos, que estimulou a distorção da idéia de ressarcimento, levando à necessária postulação do ressarcimento em dinheiro no lugar do ressarcimento na forma específica.

Ou seja, em razão da ineficiente estruturação do processo civil, o ressarcimento pelo equivalente, que é uma opção, foi transformado em necessidade.

A obrigação de reparar o dano é, antes de tudo, uma obrigação de fazer. Em razão do dano, o lesado passa a ter o direito de obrigar o infrator à reparação, e não um mero direito sobre o patrimônio do devedor. A existência de um direito de obrigar à reparação implica na possibilidade de usar o processo para coagir o infrator a reparar, ou seja, na possibilidade da utilização da multa.

A multa, prevista no art. 84. do CDC, deve ser utilizada para dar efetividade ao direito do consumidor se proteger contra o dano. Trata-se de conclusão natural quando o intérprete olha para o regramento processua l à luz do direito fundamental do consumidor e do dever que o Estado possui de lhe dar proteção.

Não obstante, parece correto argumentar que, quando o infrator não possui capacidade técnica para proceder à reparação, não é racional usar a multa para constrangê-lo a fazer. Contudo, nesse caso não basta a simples alegação de incapacidade técnica, sendo necessária a sua prova. Nessa hipótese, a multa deixará de ser aplicada para obrigá- lo a fazer, mas não para obrigá-lo a custear a reparação a ser feita por um terceiro.

Não é correto pensar que o consumidor, diante da incapacidade técnica do infrator, deve adiantar as despesas para a reparação para somente após, mediante execução por expropriação, cobrar o seu valor. Ora, se o dever de reparar foi declarado pelo juiz, o fato de o infrator não possuir capacidade técnica para fazer não pode permitir a conclusão de que o lesado deve arcar com as despesas para a reparação, como se o dever de reparar na forma específica não mais existisse ou houvesse sido transformado em mera obrigação de indenizar o gasto com a reparação.

Não procede, aí, o argumento de que não é possível usar a multa para compelir ao pagamento de soma em dinheiro. Se a obrigação de pagar, no caso, serve somente para viabilizar o cumprimento da obrigação de reparar, a primeira obrigação é meramente acessória à segunda. A obrigação de pagamento de soma é um mero instrumento para a realização da obrigação de reparar, essa sim a verdadeira obrigação do infrator.

Se ninguém nega que é possível obter forçadamente, mediante expropriação de bens, o custo do ressarcimento, por que razão seria impossível utilizar a multa para pressionar o infrator a pagar a reparação? Somente assim o consumidor não será prejudicado pelo infrator e pelo processo, e apenas dessa forma o dever estatal de proteção será realmente cumprido.

Como é óbvio, o processo que só permite a cobrança de dinheiro não constitui resposta adequada aos direitos. Um processo desse tipo é, na realidade, um incentivo à prática de danos ou, pior, uma porta aberta à desconsideração do direito material, já que o infrator, nesse caso, somente terá que pagar o valor equivalente ao do dano depois de um bom tempo, o que certamente poderá ser, em termos econômicos e de mercado, uma "excelente" opção.

Como lembra Clayton Maranhão, estando a sociedade de consumo exposta a riscos inevitáveis, cujos exemplos marcantes são o da colocação no mercado de produtos ou serviços com periculosidade inerente (art. 8o, CDC) e de produtos ou serviços cujo desenvolvimento da ciência é limitado sobre o seu alto grau de nocividade à saúde (art. 10, §1o, CDC), não há como impedir que danos possam vir a ocorrer. Nessa linha, a necessidade de efetiva reparação do dano está diretamente ligada à noção geral de expectativa legítima do consumidor e ao princípio geral da segurança dos bens de consumo.27

Maranhão, ciente de que o ressarcimento do dano, nas relações de consumo, deve priorizar a forma específica, e que essa modalidade de tutela somente possui real sentido quando é efetiva, apresenta o seguinte exemplo: "O dano à saúde decorrente de erro médico tem sido muito freqüente. Uma dessas situações refere-se ao esquecimento de instrumentos cirúrgicos no corpo do paciente, havendo um caso real, já apreciado pela jurisprudência, em que foram necessárias cinco cirurgias, a última delas estética reparadora de deformidade. No caso concreto, a paciente foi submetida a uma simples cirurgia para retirada de cálculos na vesícula, recebendo alta cin co dias depois. Sentindo fortes dores, retirou de seu abdômen um objeto metálico da dimensão de uma agulha, reinternando-se por quatro vezes sucessivas no mesmo hospital, onde foi submetida a tantas intervenções para retirada de objetos esquecidos em seu abdômen na primeira cirurgia. Por conseqüência, contraiu deformidades estéticas que exigiram uma sexta intervenção cirúrgica reparadora. Não bastasse, apresentou problemas de locomoção em razão de mais um erro profissional: a enfermeira quebrara a agulha quando aplicava uma injeção. Diante de tanta negligência, demandou em face do hospital e da equipe médica. Como arcou com todas as despesas, pleiteou indenização pela soma em dinheiro correspondente. Contudo, poderia muito bem ter invocado o art. 84, §§ 3º, 4o e 5o, para pleitear ressarcimento na forma específica, com pedido de antecipação de tutela, consistente: i) na ordem de fazer dirigida ao hospital, sob pena de multa, sem despender qualquer soma em dinheiro, pois tudo deveria correr às custas do referido estabelecimento; ou então ii) na ordem de fazer dirigida ao hospital, no sentido de entregar soma em dinheiro diretamente a outro hospital e equipe médica de confiança, indicados pelo consumidor lesado, e nomeados pelo juiz, nos valores que se fizessem necessários para a realização das cinco cirurgias reparadoras do dano biológico,incluído o dano estético"28.

O hospital poderia dizer que o uso da multa somente é possível quando o infrator for titular de capacidade técnica suficiente para realizar a reparação. Porém, se o infrator possui, antes de mais nada, o dever de reparar o dano na forma específica, e se essa reparação, diante do caso concreto, somente pode ser realizada se por ele for custeada, é lógico que essa obrigação de pagar (de custeio da reparação) deve ser vista como uma simples obrigação acessória ao dever de reparar. Se não for assim, o dever de reparar o dano será transformado em obrigação de pagar. Ou em outras palavras: o direito ao ressarcimento na forma específica somente existiria quando o infrator tivesse condições técnicas suficientes. Ora, o ressarcimento na forma específica constitui direito básico do consumidor, e assim não devem importar as qualidades daquele que cometeu o dano. Com efeito, a especial qualidade do infrator não pode servir para retirar a efetividade do direito de ressarcimento do lesado.

Ao apresentar o exemplo do erro médico que exigiu várias cirurgias, Maranhão, além de ter deixado claro – como mencionado ao final do exemplo narrado acima – que a ordem poderia ser dirigida para obrigar o próprio hospital a realizar as cirurgias, evidenciou que a ordem sob pena de multa poderia ser endereçada para obrigar o demandado a custear o valor da reparação do dano. Disse que o lesado poderia, invocando o art. 84. do CDC, postular tutela ressarcitória na forma específica, inclusive na forma antecipada, consistente em "ordem de fazer dirigida ao hospital, no sentido de entregar soma em dinheiro diretamente a outro hospital".29 Na realidade, em um caso como esse, se não for viável o ressarcimento na forma específica mediante o uso da multa, porém apenas o recurso ao mecanismo da antiga execução por sub-rogação, o processo civil estará aceitando a morte do paciente lesado30 e transformando o direito à reparação específica em direito à herança!

7.3.6. A ação coletiva como resposta ao direito do público consumidor participar para a reivindicação dos seus direitos

Conforme dito no início, o direito fundamental do consumidor exige a instituição de condutos para que o público consumidor possa participar para reivindicar os seus direitos.

Como o direito do consumidor pertence à sociedade, ou particularmente àqueles que vivem dentro do mercado de consumo, é óbvio que esse direito pode ser visto como um interesse pertencente a uma coletividade, e não apenas a um indivíduo ou a consumidor isolado.

Nesse sentido, importa a instituição da ação coletiva, no modelo instituído pelo CDC e pela Lei da Ação Civil Pública. Na perspectiva da face necessariamente participativa do direito fundamental do consumidor, a ação coletiva pode ser vista como uma resposta do legislador ordinário ao direito fundamental de participação dos consumidores.

Para a configuração da ação coletiva, foi necessário repensar a legitimidade para a causa, que antes era dada ao titular do direito material, e agora passa a ser conferida a vários entes e associações, como o Procon, as associações de proteção dos consumidores e o Ministério Público, conforme o art. 82. do CDC. Dando-se legitimidade para participar, nos lugar dos indivíduos isoladamente, a entes que, em tese, têm legitimidade para representá-los, por conseqüência lógica também foi dada uma nova configuração à coisa julgada material. Isso para permitir que o indivíduo representado pela associação ou pelo Procon fosse realmente beneficiado pela eventual proteção jurisdicional conferida ao direito e, ao mesmo tempo, para evitar que a má condução do processo por parte de um desses entes pudesse prejudicá-lo. Foi nesse sentido que o CDC afirmou, no seu art. 103, II, que a sentença, no que diz respeito aos direitos coletivos, faz coisa julgada ultra partes, mas limitadamente ao grupo, categoria ou classe, salvo improcedência por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova.

No caso em que é preciso evitar a violação de norma de proteção ou em que é imprescindível remover um ato concreto a ela contrário, as ações inibitória e de remoção do ilícito podem ser propostas na forma coletiva para proteger o público consumidor. Nesse caso, tais ações poderão ser propostas por qualquer um dos legitimados do art. 82. e com sentenças geradoras de coisa julgada material nos termos do art. 103, II.31

Por outro lado, se o adimplemento imperfeito atinge vários consumidores, e o caso assim é de violação em massa de direitos individuais - os quais poderiam, em tese, ser reivindicados mediante ações individuais ou em litisconsórcio ativo - há o que o CDC chama, no seu art. 81, III, de "direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum".

Entre os vícios de qualidade dos produtos, pode ser lembrado, por exemplo, o defeito de fabricação do rádio dos automóveis de certa série. A alegação desse defeito, como é evidente, não é afirmação de um dano, mas sim do adimplemento imperfeito da obrigação de entrega dos veículos. Se vários consumidores foram lesados em razão de um defeito que possui origem em uma determinada falha da indústria automobilística, existem "direitos individuais homogêneos", nos termos do art. 81, III do CDC. Nesse exemplo, constatada a necessidade de substituição do rádio, poderá ser proposta ação coletiva para a tutela dos direitos individuais que foram lesados.

Cabe lembrar, entretanto, que no caso de vício de qualidade do produto, o consumidor poderá requerer, de acordo com o art. 18. do CDC, não só a "substituição das partes viciadas" do bem ou a "substituição do produto por outro da mesma espécie, em perfeitas condições de uso", mas também "a restituição imediata da quantia paga, monetariamente atualizada, sem prejuízo de eventuais perdas e danos; ou "o abatimento proporcional do preço". Portanto, saber se é melhor a substituição das partes viciadas, a substituição integral do bem, a restituição da quantia paga ou o abatimento no preço, dependerá do caso concreto e do desejo de cada um dos consumidores.

A sentença de procedência, no caso em que se alega adimplemento imperfeito que violou direitos individuais homogêneos, deve apenas declarar que o réu cumpriu de maneira defeituosa a sua obrigação, entregando aos consumidores produto com vício de qualidade.

Exatamente por isso, os consumidores deverão se "habilitar", na forma individual, após essa sentença. Nessa ocasião, deverão demonstrar apenas o vínculo obrigacional que os une ao demandado, o qual lhes garante o direito ao adequado e perfeito adimplemento. Aí é que o consumidor optará pela substituição das partes viciadas do bem, por sua substituição integral, pela restituição da quantia paga ou pelo abatimento no preço. Se a opção for pela substituição das partes viciadas ou pela substituição integral do produto, poderá ser pleiteada multa, nos termos do art. 84. do CDC. Nessa hipótese, não existirá maneira mais adequada de se obter tutela específica, pois solicitar (no caso de obrigação de fazer) que terceiro faça o que deveria ser feito pelo demandado, obriga ao pagamento de soma em dinheiro. Além do mais, o uso da multa, obrigando o réu a fazer ou a entregar coisa, propiciará tutela mais barata, tempestiva e efetiva aos lesados, e assim não só responderá aos anseios da ação coletiva como também estará de acordo com os valores que a inspiram.

Como se vê, a ação coletiva para a tutela de direitos individuais homogêneos, nessa hipótese, não é de "condenação genérica" (art. 95. do CDC) nem se volta à obtenção de soma em dinheiro.

Perceba-se, aliás, que não é possível confundir o valor correspondente ao cumprimento da prestação com a indenização devida em virtude do dano eventualmente gerado pelo adimplemento imperfeito. Embora o art. 18. do CDC fale em perdas e danos apenas no caso em que se pede restituição da quantia paga (art. 18, §1o, II, CDC), é óbvio que as outras alternativas de tutela, se podem constituir reação aos vícios, não são capazes de responder aos danos por eles eventualmente provocados.

Sublinhe-se, porém, que no caso de dano ocasionado em razão de adimplemento defeituoso, a responsabilidade deverá ser fixada na sentença da ação coletiva, cabendo ao consumidor, na forma individual, demonstrar o dano sofrido, bem como o nexo de causalidade e o seu valor. Isso significa que o consumidor não pode pleitear - na fase de liquidação (arts. 95. e 97, CDC) - indenização pelo dano derivado do adimplemento defeituoso se a responsabilidade por esse dano não tiver sido fixada na sentença da ação coletiva. Em outras palavras, é o legitimado coletivo que deve pedir a fixação da responsabilidade pelo adimplemento imperfeito e pelo dano dele decorrente.

Da mesma forma, diante dos termos do art. 95. do CDC, alguma dúvida poderia haver acerca da viabilidade de uma ação coletiva voltada à tutela ressarcitória na forma específica dos direitos individuais homogêneos. Isso porque o art. 95. do CDC, ao referir-se àquela que seria, em princípio, a sentença destinada à tutela dos direitos individuais homogêneos, afirma que, "em caso de procedência do pedido, a condenação será genérica, fixando a responsabilidade do réu pelos danos causados".

A sentença de condenação genérica, de acordo com elaboração doutrinária já fixada há bastante tempo, é aquela que condiciona a execução forçada à prévia liquidação do valor devido. O próprio parágrafo único do art. 97. do CDC, embora vetado por razão estranha àquela que aqui interessa, estabelecia que a sentença do art. 95. deve ser liquidada, ocasião em que deveria ficar provado o "montante" do dano".

Contudo, na hipótese de tutela ressarcitória específica de direitos individuais homogêneos, não cabe pensar em sentença condenatória e, muito menos, em liquidação do valor do dano. Nesse caso, porque a tutela não objetiva dar aos lesados os valores equivalentes aos seus danos, mas sim a reparação na forma específica dos danos que foram ocasionados a cada um dos prejudicados, obviamente não há que se falar em liquidação dos valores dos danos.

Na hipótese de ressarcimento na forma específica, a sentença coletiva é declaratória e não mandamental, pois não instaura a execução - ordenando, por exemplo, o demandado a fazer, isto é, a exercer uma atividade capaz de permitir a reparação na forma específica dos danos acarretados aos titulares dos direitos individuais. Essa sentença se limita a declarar o dever de ressarcir. Porém, na fase que a sucede – que pode ser chamada de "liquidação de sentença" – deve ser provado o dano e a sua qualidade e extensão, não importando o seu valor.

A sentença que julga a "liquidação da sentença" é que assumirá natureza mandamental, devendo ordenar que o demandado repare na forma específica ou custeie a reparação a ser feita por terceiro, que nesse caso deverá ser indicado pelo juiz. É desnecessária, em vista da própria natureza da sentença mandamental, a propositura de ação de execução, que somente tem cabimento no caso de "condenação" (cf. artigos 95 e 98, CDC).

O fato de a "ação coletiva para a defesa de interesses individuais homogêneos" ter sido ligada, em princípio, à sentença de condenação genérica (art. 95, CDC) e à ação de execução (art. 98, CDC), obviamente não tem o condão de eliminar a possibilidade de uma ação para a tutela ressarcitória na forma específica de direitos individuais homogêneos. O que há de diferente, nesse último caso, é que a "liquidação", por objetivar o ressarcimento na forma específica, além de apenas definir o dano e não o seu quantum, desemboca na técnica mandamental, dispensando a ação de execução.

Mas, como a forma de ressarcimento do dano deve ser deixada ao critério do lesado, ele deve ter a opção de solicitar, diante do caso concreto e de suas condições pessoais, ressarcimento na forma específica ou ressarcimento pelo equivalente. É por essa razão que a sentença da ação coletiva é declaratória, ao passo que, quando se objetiva ressarcimento na forma específica, a "liquidação" deve culminar em sentença mandamental, e no caso em que se deseja ressarcimento em pecúnia a "liquidação" deve condenar ao pagamento de soma em dinheiro, fixando a sanção executiva e abrindo oportunidade para a ação de execução.

Como se vê, no caso em que se postula a reparação de direitos individuais homogêneos, a sentença ficará limitada, no caso de procedência, a declarar o dever de indenizar, não podendo tratar da forma do ressarcimento. Isso, como já dito, deve ficar ao critério do lesado, que assim deve ter a oportunidade de escolher, na chamada fase de "liquidação", a forma de ressarcimento de sua preferência. Por esse motivo, o lesado ou seu sucessor, depois de proferida a sentença declaratória coletiva, pode optar entre a tutela ressarcitória pelo equivalente (execução por quantia certa) e a tutela ressarcitória na forma específica (técnica mandamental).

Entretanto, justamente porque o ressarcimento na forma específica pode não abarcar a totalidade do dano, o legitimado coletivo também pode postular a fixação da responsabilidade do réu pelo dano que não poderá ser ressarcido através da tutela na forma específica. Nesse caso, a vítima ou seu sucessor poderá requerer (na fase de "liquidação", evidentemente), ao lado da reparação na forma específica, a condenação ao pagamento do valor equivalente ao do dano incapaz de ser ressarcido na forma específica. Como é óbvio, esse dano, o nexo de causalidade e o seu valor deverão ser provados na chamada fase de "liquidação".

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Luiz Guilherme Marinoni

professor titular de Direito Processual Civil dos cursos de Graduação, Mestrado e Doutorado da UFPR, mestre e doutor em Direito pela PUC/SP, pós-doutor pela Universidade de Milão, advogado em Curitiba, ex-procurador da República

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARINONI, Luiz Guilherme. A conformação do processo e o controle jurisdicional a partir do dever estatal de proteção do consumidor. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1147, 22 ago. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8835. Acesso em: 26 dez. 2024.

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos