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A conformação do processo e o controle jurisdicional a partir do dever estatal de proteção do consumidor

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22/08/2006 às 00:00
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8. A proteção jurisdicional em caso de omissão ou atuação inadequada da administração

Além de o juiz ter que interpretar as regras processuais segundo o direito fundamental do consumidor, cabe- lhe, ainda, dar efetividade às normas de proteção em caso de omissão ou atuação inadequada da administração pública. Basicamente porque o dever de proteção não recai somente sobre a administração, mas também sobre o juiz.

Não há razão para imaginar que o juiz, no caso, estará ocupando o espaço da administração. Quando se confere à administração o poder de atuar as normas de proteção, isso é feito para otimizar a tutela do consumidor, a partir da suposição de que a melhor política de prevenção contra os abusos do fornecedor deve priorizar o controle administrativo. Portanto, quando se dá à administração o poder de exercer a tutela preventiva, pretende-se apenas outorgar maior efetividade à prevenção. Isso significa, como é fácil perceber, que o controle administrativo é privilegiado em atenção aos direitos do consumidor, e não com o intuito de afastar o exercício do controle jurisdicional.

Assim, não há como pensar que o juiz não pode atuar para evitar a violação da norma, ou mesmo para remover o ilícito continuado que contra ela foi praticado, quando a administração for omissa ou ineficiente. Nessa situação, a jurisdição estará suprindo a negação da proteção devida pela administração.


9. A possibilidade de a jurisdição atuar ainda que as normas técnicas de produção tenham sido observadas

Uma análise apressada poderia levar à conclusão de que a simples observância das normas técnicas, quando da concepção ou da fabricação de um produto, seria suficiente para identificá-lo como adequado à venda ao consumidor.

Acontece que as normas técnicas, por terem sido formuladas – como não poderia deixar de ser – para um determinado momento histórico, podem não acompanhar o desenvolvimento da ciência. Se, em regra, as normas técnicas são suficientes para atender ao consumidor, isso apenas pode significar uma presunção iuris tantum, que por isso pode ser posta em teste32. Ora, se o objetivo dessa espécie de norma é proteger o consumidor, seria irracional não permitir que justamente o sujeito que, em princípio, deve por ela ser tutelado, não possa discutir a sua adequação para a segurança. Como corretamente escreve Calvão da Silva, a não se entender assim permitir-se-ia a colocação no mercado de produtos inseguros que, utilizados em condições normais ou previsíveis, implicariam perigo ou risco inaceitável para a segurança física e a saúde dos consumidores, pelo simples fato de se apresentarem conformes com normas técnicas...desatualizadas e ultrapassadas. 33


10. A concordância da administração com a fabricação e a comercialização do produto e a necessidade de tutela jurisdicional

A simples liberação, por parte do administrador, de produto para ser fabricado e comercializado, não significa que a sua fabricação e comercialização não possa ser controlada pelo juiz. Se o administrador possui o dever de proteger os direitos do consumidor, ele não pode deixar de tutelá- los, pena de o Estado ferir o seu dever de proteção e o direito fundamental do consumidor.

Não há dúvida que, se o Estado tem o dever de proteger os direitos fundamentais, a administração, ao liberar um produto altamente perigoso ou nocivo para industrialização ou comercialização, viola o direito fundamental do consumidor. Para que esse direito prevaleça, a decisão administrativa deve ser levada ao Judiciário.

Nesse caso, nada pode impedir a afirmação de que o produto liberado apresenta, como diz o art. 10 do CDC, "alto grau de nocividade ou periculosidade à saúde ou segurança". O fato dessa norma possuir um conceito indeterminado não quer dizer que o administrador, diante dela, esteja em uma situação de discricionariedade.

Cabe deixar claro, assim, que não há relação aproximativa entre conceito indeterminado e discricionariedade. Fala-se, é certo, que um conceito indeterminado conduz a uma zona de penumbra, onde não se pode negar que existe discricionariedade.

Acontece que a zona de penumbra é uma região interna a duas outras regiões ou zonas, chamadas de zona de certeza positiva e de zona de certeza negativa, nas quais o conceito se concretiza ou não34, e nessas zonas não existe discricionariedade. Por isso, o produto não pode ser liberado quando é altamente nocivo ou perigoso, pois nesse caso se está pisando em uma zona de certeza positiva.

Em tal hipótese, a prova, se necessária, deverá recair sobre a periculosidade ou nocividade do produto, o que não é o mesmo do que prova do dano ou da sua probabilidade. Como é óbvio, de prova do dano não se pode falar, pois dano sequer houve. Porém, não se trata, também, de provar a probabilidade do dano, uma vez que essa noção supõe um evento futuro, do que não precisa se cogitar quando se está frente aos conceitos de alta nocividade e de alta periculosidade. Ou melhor, para se impedir a industrialização e a comercialização de um produto basta a sua alta nocividade ou a sua alta periculosidade, sendo desnecessário se cogitar sobre um fato futuro.

Diante de um direito fundamental e do dever estatal de proteção, há o que Canaris35 chama de imperativo de tutela, isto é, a necessidade de tutela ou de proteção do direito fundamental. Essa tutela incumbe, em princípio, ao legislador, que deve editar a norma de proteção, realizando a denominada proteção ou tutela normativa. Porém, quando o legislador confere ao administrador, através de um conceito indeterminado, o poder de concretizar a proteção mediante a eleição de fatos que a ele (legislador) são imprevisíveis, o legislador expressamente outorga ao administrador a incumbência da proteção que lhe é impossível. Contudo, como já foi dito, isso não significa que o administrador passa a ter plena liberdade, mas sim que ele deve preencher o conceito indeterminado de maneira correta. Caso o administrador assim não o preencha, descumprindo o seu dever de proteção, surgirá uma situação de omissão de tutela ou de proteção, que, obviamente, poderá ser questionada perante o Poder Judiciário. Nesse caso, o juiz deverá verificar, em face do direito fundamental, se realmente houve omissão de proteção por parte do administrador. Se a conclusão for positiva, caberá ao magistrado suprir a omissão na proteção do direito fundamental, concedendo a tutela jurisdicional.

Portanto, na iminência da industrialização ou da comercialização de produto liberado pela administração, mas que apresenta alto grau de periculosidade ou nocividade, caberá ação inibitória, e na mesma situação, mas se o produto já estiver exposto à venda, poderá ser proposta ação de remoção do ilícito.


Notas

1 Robert Alexy, Teoria de los derechos fundamentales, Madrid: Centro de Estudios Constitucionales,

1997.

2 Como é óbvio, essa é apenas uma imagem aproximada do dever estatal de proteção.

3 ADCT, art. 48: "O Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias da promulgação da Constituição, elaborará Código de Defesa do Consumidor".

4 A suspensão do fornecimento, nessa linha, impõe-se nos casos em que há apenas o temor de que o produto ou o serviço possa ser inadequado ou inseguro.

5 João Calvão da Silva, Responsabilidade civil do produtor, Coimbra, Almedina, 1999, p. 213 e ss.

6 Art. 443, CC de 2002: "Se o alienante conhecia o vício ou defeito da coisa, restituirá o que recebeu com perdas e danos; se o não conhecia, tão somente restituirá o valor recebido, mais as despesas do contrato".

7 Sobre as noções de vícios ocultos e vícios aparentes, ver, no direito português, João Calvão da Silva, Compra e venda de coisas defeituosas, Coimbra, Almedina, 2002, p. 39 e ss.

8 Como é óbvio, o fornecedor não poderá, quando existente bem da mesma espécie, oferecer ao consumidor bem diverso e, muito menos, pretender receber eventual diferença de preço.

9 A "onerosidade excessiva" não precisa estar expressamente prevista na lei, pois se a razão e a equidade devem permear as decisões, não é racional ou justo impor um prejuízo excessivamente oneroso ao causador do dano quando, de outra maneira, o lesado puder ser ressarcido.

10 João Calvão da Silva, Cumprimento e sanção pecuniária compulsória, Coimbra, Almedina, 1987, pp. 153/154.

11 Jorge Musset Iturraspe, Responsabilidad por daños, Buenos Aires, Rubinzal-Culzoni, p. 380.

12 O CC argentino é expresso no sentido da prioridade do ressarcimento na forma específica sobre o ressarcimento pelo equivalente. Diz o seu art. 1.083: "El resarcimiento de daños consistirá en la reposición de las cosas a su estado anterior, excepto si fuera imposible, en cuyo caso la indemnización se fijará en dinero. También podrá el damnificado optar por la indemnización en dinero ." Essa norma consiste no resultado de uma grande polêmica travada no direito argentino, tendo substituído o texto anterior do antigo artigo 1.083, que possuía o seguinte teor: "toda reparación del daño, sea material o moral, causado por un delito, debe resolverse en una indemnización pecuniaria que fijará el juez, salvo el caso en que hubiere lugar a la restitución del objeto que hubiese hecho la materia del delito". Discorrendo sobre o novo artigo 1.083, observa Iturraspe "que la reforma ha puesto las cosas en su lugar, al sancionar el único criterio que, cuando es viable, permite ‘desmantelar’ el ilícito y retornar al ‘statu quo ante’: la reparación específica" (Jorge Musset Iturraspe, Responsabilidad por daños, cit., p. 380).

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13 Aliás, em relação aos direitos transindividuais, essa forma de reparação nem mesmo constitui opção, mas sim obrigação, pois o legitimado à sua tutela não pode preferir dinheiro no lugar da reparação em natura.

14 § 249 (Schadensersatz durch Naturalherstellung): Wer zum Schadensersatze verpflichtet ist, hat den Zustand herzustellen, der bestehen würde, wenn der zum Ersatze verpflichtende Umstand nicht eingetreten wäre. Ist wegen Verletzung einer Person oder wegen Beschädigung einer Sache Schadensersatz zu leisten, so kann der Gläubiger statt der Herstellung den dazu erforderlichen Geldbetrag verlangen.

15 De acordo com Helmut Rübmann, o § 249, primeira fase, dá ao credor a pretensão ao reestabelecimento in natura. "§ 249 Satz 1 gibt dem Gläubiger einen Anspruch auf Herstellung in Natur" (Helmut Rübmann, Kommentar zum Bürgerlichen Gesetzbuch, Darmstadt, Luchtenhand, 1980, p. 185). Ver, também, Peter Erman, Handkommentar zum Bürgelichen Gesetzbuch, Münster, Aschendorf, 1993, v. 1, p. 12.

16 Como diz Rübmann, "Wer Pflanzen zerstört, mub zur Herstellung solche Pflanzen oder auch Früchte liefern, wie sie sich bis zum Herstellungszeitpunkt beim Gläubiger entwickelt hätten" (Helmut Rübmann, Kommentar zum Bürgerlichen Gesetzbuch, cit., p. 186).

17 Art. 12, §3o CDC: "O fabricante, o construtor, o produtor ou importador só não será responsabilizado quando provar: I – que não colocou o produto no mercado; II – que, embora haja colocado o produto no mercado, o defeito inexiste; III – a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro". Art. 14, §3o CDC: "O fornecedor de serviços só não será responsabilizado quando provar: I – que, tendo prestado o serviço, o defeito inexiste; II – a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro".

18 Luigi Ferrajoli, Pasado y futuro del Estado de Derecho, Neoconstitucionalismo(s). Coordenado por Miguel Carbonell, Madrid: Trotta, 2003, p. 18.

19 Ver Luiz Guilherme Marinoni, Tutela Inibitória, São Paulo: Ed. RT, 2003, 3ª. ed.

20 Ver Luiz Guilherme Marinoni, Técnica processual e tutela dos direitos, São Paulo, Ed. RT, 2004.

21 Ver Luiz Guilherme Marinoni, Técnica processual e tutela dos direitos, cit.

22 Ver Luiz Guilherme Marinoni, Técnica processual e tutela dos direitos, cit.

23 Como escreve Calvão da Silva, "esta concepção, que alarga desmedidamente o princípio da reparação do dano e da execução por equivalente – de forte influência romanista e do antigo direito, onde, por efeito novatório da litis contestatio, a obrigação primitiva desaparecia para dar lugar à obrigação de indenização –, foi sendo atacada porque, na verdade, é inaceitável. Tinha, com efeito, à partida, uma contradição insanável ao afirmar que o devedor se vinculava no momento da formação do contrato, mas já seria livre de não cumprir, como se o cumprimento fosse, para o devedor, um ‘dever livre’ ou um puro ato potestativo e não um ato devido. Reconduzia a obrigação à idéia de um poder do credor sobre o patrimônio do devedor quando não mesmo à relação entre patrimônios, tomando a nuvem por Juno, sem captar a verdadeira substância do direito de crédito como direito à prestação. Contrariava a realidade da vida, pois era indiferente à realização efetiva e espontânea da prestação (cumprimento), ou da prestação efetivada por via executiva. Desrespeitava, em suma, as obrigações, que não têm valor senão na medida em que realizam o seu pleno efeito, sendo antijurídica a recusa de cumprir ainda que acompanhada da oferta de reparação do dano proveniente do não cumprimento" (João Calvão da Silva, Cumprimento e sanção pecuniária compulsória, Coimbra: Almedina, 1987, p. 173-174).

24 Por exemplo Washington de Barrros Monteiro, Curso de direito civil. Direito das obrigações – 1.ª Parte. São Paulo: Saraiva, 1984. p. 266.

25 João Calvão da Silva, Cumprimento e sanção pecuniária compulsória, cit., p. 152-153.

26 Ver Luiz Guilherme Marinoni, Técnica processual e tutela dos direitos, cit.

27 Clayton Maranhão, Tutela jurisdicional específica do direito à saúde nas relações de consumo: um capítulo do direito processual do consumidor, Revista de Direito Processual Civil (Genesis), v. 24, p. 248.

28 Clayton Maranhão, Tutela jurisdicional específica do direito à saúde nas relações de consumo: um

capítulo do direito processual do consumidor, Revista de Direito Processual Civil (Genesis), v. 24, p. 257.

29 Clayton Maranhão, Tutela jurisdicional específica do direito à saúde nas relações de consumo: um capítulo do direito processual do consumidor, Revista de Direito Processual Civil (Genesis), v. 24, p. 257.

Ver, ainda, do mesmo autor, Tutela jurisdicional do direito à saúde (tese de doutorado apresentada no Curso de Doutorado em Direito - Direito Processual Civil - da UFPR). São Paulo: Ed. RT, 2003.

30 Ou, na melhor das hipóteses, que ele tenha que se conformar com o seu es tado durante a longa demora para a obtenção de indenização em dinheiro.

31 Ver Luiz Guilherme Marinoni, Tutela Inibitória, 3a. ed., cit., p. 92 e ss. e 152 e ss.

32 João Calvão da Silva, Responsabilidade Civil do Produtor, cit., p. 651.

33 João Calvão da Silva, Responsabilidade Civil do Produtor, cit., p. 652.

34 Fernando Sainz Moreno, Conceptos jurídicos, interpretación y discricionariedad administrativa, Madrid, Civitas, 1976, p. 71.

35 Claus-Wilhelm Canaris, Direitos Fundamentais e Direito Privado, Coimbra: Almedina, 2003, p. 56 e ss.

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Sobre o autor
Luiz Guilherme Marinoni

professor titular de Direito Processual Civil dos cursos de Graduação, Mestrado e Doutorado da UFPR, mestre e doutor em Direito pela PUC/SP, pós-doutor pela Universidade de Milão, advogado em Curitiba, ex-procurador da República

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARINONI, Luiz Guilherme. A conformação do processo e o controle jurisdicional a partir do dever estatal de proteção do consumidor. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1147, 22 ago. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8835. Acesso em: 19 abr. 2024.

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