3. CONCLUSÕES E CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Direito não é norma isolada, e sim um sistema de normas de um ordenamento social (daí decorrendo que uma norma particular apenas possa ser considerada jurídica se pertencente a esse ordenamento); essa premissa somada à força normativa das disposições constitucionais, podemos iniciar o exame do que vem sendo chamado de Direito Civil Constitucional. [156]
Por Direito Civil Constitucional deve-se entender, na definição de Flores-Valdés, como um sistema de normas e princípios institucionais integrados na Constituição, relativos à proteção da pessoa em si mesma e suas dimensões fundamentais familiar e patrimonial, na ordem de suas relações jurídico-privadas gerais, e concernentes àquelas outras matérias residuais consideradas civis, que tem por finalidade firmar as bases mais comuns e abstratas da regulamentação de tais relações e matérias, nas que são suscetíveis de aplicação imediata, ou que podem servir de ponto de referência da vigência, da validez e da interpretação da norma aplicável da pauta para o seu desenvolvimento. [157]
Nesse contexto a Constituição passa a ser não apenas um sistema em si – com sua ordem, unidade e harmonia – mas também um modo de olhar e interpretar todos os demais ramos do Direito; toda a ordem jurídica deve ser lida, entendida e apreendida sob a lente da Constituição, de modo a realizar os valores nela consagrados. [158] A constitucionalização do direito infraconstitucional não identifica apenas a inclusão na Lei Maior de normas próprias de outros domínios, mas, sobretudo, a reinterpretação de seus institutos sob uma ótica constitucional. [159]
O respeito à Constituição implica não somente a observância de certos procedimentos de validade para a emanação da norma infraconstitucional, mas também a necessidade de que seu conteúdo atenda aos valores presentes e sistematizados na própria Constituição, decorrentes das opções político-jurídicas do legislador constituinte. [160]
Assim, no campo contratual, acompanhando Enzo Roppo [161], podemos enumerar duas premissas que movem as alterações jurídicas:
a)Não há declaração de vontade livre e vinculante se os desiguais, social e economicamente considerados, não foram tutelados com normas jurídicas distintas tendentes a conferir-lhes isonomia e a realizar a máxima constitucional: todos são iguais perante a lei. Igualdade substancial (e não meramente formal) pressupõe tratamento isonômico para os semelhantes.
A exposição da vontade não é livre quando à parte hipossuficiente ou economicamente mais vulnerável não é dada a liberdade de escolha de contratar ou não contratar, ou de estabelecer as condições mínimas que preservem seus interesses juridicamente tutelados.
b)Por outro lado, a regulamentação dos contratos é instrumento de regulação e planejamento econômico, de realização de políticas sociais, promoção do progresso e manutenção da estabilidade social.
O Estado Social Moderno constatou a falsidade das premissas do Estado Liberal. Não havia igualdade entre os homens. Passou, então, a buscar seus ideais de justiça, de paz e segurança social e de igualdade e dignidade humana, apesar das desigualdades econômicas e sociais, através da intervenção nas relações privadas. E tais ideais não se alcançam nem com a irrestrita autonomia individual, tampouco com a improvável e ineficaz atuação absolutista e onipotente do Estado, seja o juiz, o legislador ou o administrador.
É no equilíbrio entre direitos e liberdades individuais e interesses públicos e sociais que se obtém, com maior eficiência, o que se pode chamar de relação jurídica justa e economicamente equilibrada, preservando-se, ao mesmo tempo, os valores erigidos na Constituição Federal, tais como a propriedade privada e a livre iniciativa.
A autonomia contratual não é mais vista como um fetiche impeditivo da função de adequação dos casos concretos aos princípios substanciais contidos na Constituição e às novas funções que lhe são reconhecidas. Por esta razão desloca-se o eixo da relação contratual da tutela subjetiva da vontade à tutela objetiva da confiança, diretriz indispensável para a concretização, entre outros, dos princípios da superioridade do interesse comum sobre o particular, da igualdade (em sua face positiva) e da boa-fé em sua feição objetiva. [162]
Enfim, no novo sistema de Direito Civil, fundado pela Constituição, a prevalência é de ser atribuída às situações existenciais, ou não patrimoniais, porque à pessoa humana devem o ordenamento jurídico inteiro e o ordenamento civil, em particular, dar a garantia, a tutela e a proteção prioritárias. Por isso, nesse novo sistema, passam a ser tuteladas, com prioridade, as pessoas das crianças, dos adolescentes, dos idosos, dos consumidores, dos não proprietários, dos contratantes em situação de inferioridade, dos membros da família, das vítimas de acidentes anônimos. [163]
O princípio constitucional não garante o respeito e a proteção da dignidade humana apenas no sentido de assegurar um tratamento humano e não degradante, nem tampouco traduz somente o oferecimento de garantias à integridade física, psíquica e moral do ser humano. A Constituição Federal considera essa dignidade "fundamento da República". Dados o caráter normativo dos princípios constitucionais e a unidade do ordenamento jurídico, para o que nos interessa nesta sede, para o Direito Civil, isso vem significar uma completa transformação, uma verdadeira transmutação. [164]
A igualdade – formal e substancial, a solidariedade e a dignidade da pessoa humana se tornam os parâmetros axiológicos da jurisprudência e de todo o aparato jurídico conceitual, estando aptos a fundar uma verdadeira revolução nos conceitos jurídicos próprio do Direito Privado e, sobretudo, na função atribuída a esses conceitos. [165]
4. BIBLIOGRAFIA
AGUIAR JUNIOR, Ruy Rosado. A boa-fé na relação de consumo. In: Revista de direito do consumidor, n. 14. São Paulo: RT, abr-jun/1995. p. 20-27.
___________. Projeto do código civil - as obrigações e os contratos. In: Revista dos tribunais, n. 775. São Paulo: RT, mai/2000. p. 18-31.
ALVES, José Carlos Moreira. Direito romano, vol. 1. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995.
ALVIM NETTO, José Manoel de Arruda. A função social dos contratos no novo código civil. Disponível em: http://www.fadisp.com.br/artig9.htm. Acessado em: 08/03/2005.
AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. 5ª ed. rev. atual. aum. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. 662 p.
AZEVEDO, Antônio Junqueira de. O direito civil tende a desaparecer?. In: Revista dos tribunais, n. 472. São Paulo: RT, fev/1975. p. 15-21.
___________. A liberdade de contrato: contratos típicos e contratos atípicos. In: Revista do advogado, n. 8. São Paulo: AASP, jan-mar/1982. p. 10-17.
___________. Princípios do novo direito contratual e desregulamentação do mercado (parecer). In: Revista dos tribunais, n. 750. São Paulo: RT, abr-1998. p. 113-120.
___________. O direito pós-moderno. In: Revista USP, n. 42. São Paulo: USP, jun-ago/1999. p. 96-101.
___________. Insuficiências, deficiências e desatualização do projeto de código civil na questão da boa-fé objetiva nos contratos. In: Revista dos tribunais, n. 775. São Paulo: RT, maio-2000. p. 11-17.
___________. Caracterização jurídica da dignidade da pessoa humana. In: Revista USP, n. 53. São Paulo: USP, mar-mai/2002. p. 90-101.
___________. O direito pós-moderno e a codificação. In: Revista da faculdade de direito, n. 94. São Paulo: USP, 1999. p. 3-12.
___________. Responsabilidade pré-contratual no código de defesa do consumidor. In: Revista de direito do consumidor, n. 18. São Paulo: RT, abr-jun/1996. p. 23-31.
BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas. 7ª ed. atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. 366 p.
BITTAR, Carlos Alberto; BITTAR FILHO, Carlos Alberto. Direito civil constitucional. 3ª ed. São Paulo: RT, 2003. 229 p.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Civilização do direito constitucional ou constitucionalização do direito civil? – A eficácia dos direitos fundamentais na ordem jurídico-civil no contexto do direito pós-moderno. In: GRAU, Eros Roberto; GUERRA Fº., Willis Santiago (orgs.). Direito constitucional – estudos em homenagem a Paulo Bonavides. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 108-115.
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado. 20ª ed. São Paulo: Saraiva, 2000.
DIAS, Joaquim José de Barros. Direito civil constitucional. In: LOTUFO, Renan (coord.). Direito civil-constitucional: caderno 3. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 13-58.
DOMINGUES, Marcos Abílio. Introdução ao direito coletivo do trabalho. São Paulo: LTR, 2000.
DONNINI, Rogério Ferraz. A constituição federal e a concepção social do contrato. In: VIANA, Rui Geraldo Camargo; NERY, Rosa Maria de Andrade (orgs.). Temas atuais de direito civil na constituição federal. São Paulo: RT; 2000. p. 69-79.
FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2001.
___________. Estudos de filosofia do direito – reflexões sobre poder, liberdade, a justiça e o direito. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2003.
FIORILLO, Celso A. Pacheco. Curso de direito ambiental brasileiro. 6ª ed.. São Paulo: Saraiva, 2005.
GEHLEN, Gabriel Menna Barreto von. O chamado direito civil constitucional. In: MARTINS-COSTA, Judith (coord.). A reconstrução do direito privado. São Paulo: RT, 2002. p. 174-210.
GIORGIANNI, Michele. O direito privado e os seus atuais confins. Trad. de Maria Cristina de Cicco. In: Revista dos tribunais, n. 747. São Paulo: RT, jan/1998. p. 35-55.
GODOY, Cláudio Luiz Bueno de. Função social do contrato. São Paulo: Saraiva, 2004. 203 p.
GOMES, Orlando. Contratos. 25ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002.
___________. Algumas inovações na teoria geral do contrato. In: Revista do advogado, n. 8. São Paulo: AASP, jan-mar/1982. p. 5-9.
GRAMSTRUP, Erik Frederico. Por uma definição dogmático-constitucional de função social da propriedade. In: LOTUFO, Renan (coord.). Cadernos de direito civil-constitucional: caderno nº 2. Curitiba: Juruá, 2001. p. 93-109.
HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha. Trad. de Luís Alonso Heck da 20ª ed. alemã (Grundzüge des Verfassungsrecht der Bundesrepublik Deutchland). Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Ed., 1998.
HIRONAKA, Giselda Maria Fernandez Novaes. A Função social do contrato. In: Revista Jurídica, n. 117. Porto Alegre: Revista Jurídica, jan-fev/1987. p. 57-74.
___________. Contrato: estrutura milenar de fundação do direito privado. In: Revista da faculdade de direito, n. 97. São Paulo: USP, 2002. p 127-138.
LÔBO, Paulo Luiz Netto. Constitucionalização do direito civil. Jus Navigandi, Teresina, nº 33, jul/1999. Disponível em: http://jus.com.br/revista/doutrina/texto.asp?id=507. Acesso em: 29/03/2005.
LOTUFO, Renan. O pioneirismo de Clóvis Beviláqua quanto ao direito civil constitucional. In: Revista dos tribunais, n. 768. São Paulo: RT, out/1999. p. 747-755.
MAGANO, José Paulo Camargo. A boa-fé objetiva – uma visão geral. Disponível em: http://www.fadisp.com.br/artig8.htm. Acessado em: 08/03/2005.
MALUF, Sahid. Teoria geral do estado. 23ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 1995.
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: RT, 1999. 544 p.
___________. Crise e modificação da idéia de contrato no direito brasileiro. In: Revista de direito do consumidor, n. 3. São Paulo: RT, set-dez/1992. p 127-154.
___________. Notas sobre o princípio da função social dos contratos. Acessado em: 06/04/2005.
MELLO, Adriana Mandim Theodoro de. A função social do contrato e o princípio da boa-fé no novo código civil brasileiro. In: Revista dos tribunais, n. 801. São Paulo: RT, jul/2002. p. 11-29.
MONTORO, André Franco. Introdução à ciência do direito. 23ª ed. São Paulo: RT, 1995.
MORAES, Maria Celina Bodin de. O direito civil constitucional. In: Arquivos de direito, n. 3. Nova Iguaçu: Gráfica Universitária, out/1999. p. 181-194.
___________. Constituição e código civil: tendências. In: Revista dos tribunais, n. 779. São Paulo: RT, set/2000. p. 47-63.
MORAES TEPEDINO, Maria Celina Bodin de. A caminho de um direito civil constitucional. In: Revista de direito civil, imobiliário, agrário e empresarial nº 65. São Paulo: RT, jul-set/1993. p. 21-32.
NANNI, Giovanni Ettore. A evolução do direito civil obrigacional. In: LOTUFO, Renan (coord.). Cadernos de direito civil-constitucional: caderno nº 2. Curitiba: Juruá, 2001. p. 155-225.
NORONHA, Fernando. Direito das obrigações, vol. 1. São Paulo: Saraiva, 2003. 698 p.
NUNES, Luiz Antônio Rizzatto. Manual de introdução ao estudo do direito. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2000.
___________. Curso de direito do consumidor. São Paulo: Saraiva, 2004.
PEDRA, Anderson Sant’Ana. Interpretação e aplicabilidade da Constituição: em busca de um Direito Civil Constitucional. Jus Navigandi, Teresina, nº 99, 10/out/2003. Disponível em: http://jus.com.br/revista/doutrina/texto.asp?id=4266. Acesso em: 28/jun/2005.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, vol. III. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997. 401 p.
RAMOS, Carmen Lúcia Silveira. Direito civil constitucional. Curitiba: Editora Juruá, 2003
RAPOSO, Paulo Marcelo Wanderley. Autonomia privada e autonomia da vontade em face das normas constitucionais. In: LOTUFO, Renan (coord.). Direito civil-constitucional: caderno 3. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 76-92.
REALE, Miguel. Função social do contrato. Disponível em: http://www.miguelreale.com.br/artigos/funsoccont.htm. Acessado em: 10/04/2005.
___________. Função social da família no código civil. Disponível em: http://www.miguelreale.com.br/artigos/funsoc.htm. Acessado em: 10/04/2005.
RICCI, Rudá.‘A função social da propriedade’. In: Revista espaço acadêmico, nº 6, nov/2001. Disponível em: http://www.espacoacademico.com.br/006/06ruda.htm. Acessado em: 11/05/2005.
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 20ª ed. rev. atual. São Paulo: Malheiros, 2002. 878 p.
TEPEDINO, Gustavo José Mendes. Normas constitucionais e relações de direito civil na experiência brasileira. In: Revista Jurídica, n. 278. Porto Alegre: Notadez, dez/2000. p. 5-21.
___________. Temas de direito civil. 3ª ed. rev. atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. 590 p.
THEODORO JUNIOR, Humberto. O contrato e sua função social. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. 160 p.
VILLELA, João Baptista. Por uma nova teoria dos contratos. In: Revista forense, n. 261. Rio de Janeiro: Forense, jan-mar/1978. p. 27-35.
___________. Desbiologização da paternidade. In: Revista forense, n. 271. Rio de Janeiro: Forense, jul-set/1980. p. 45-51.