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A judicialização do direito à saúde.

Direito de alguns ou de todos?

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11/03/2021 às 12:17
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CAPÍTULO 3: A JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE EM CONTRAPONTO COM AS POLÍTICAS PÚBLICAS

Com relação a atuação do poder público nas demandas referentes a judicialização da saúde, é interessante falar sobre o princípio do mínimo existencial, que nas palavras de TORRES (1999, p. 141), seria “um direito às condições mínimas de existência humana digna que não pode ser objeto de intervenção do Estado e que ainda exige prestações estatais positivas”. Tal princípio tem ramificações no acesso universal ao direito à saúde, e que por várias vezes vira um verdadeiro transtorno para os administradores públicos, que são responsáveis por transformar os conceitos abstratos em politicas públicas e ações concretas. Em face das várias decisões exaradas pelas Cortes da Justiça do país, que dizem que a Administração Pública deve fornecer os medicamentos de custo elevado e tratamentos igualmente caros, não previstos na RENAME, o Estado alega que é impossível atender todos os pedidos da população, manifestando-se pela teoria da “reserva do possível”.

É fato que as necessidades da população por vezes são superiores ao valor que é destinado pela Administração Pública para adequação do convívio social. De acordo com o Tribunal de Contas da União, em um estudo que abrangeu União, Estados e municípios constatou-se que os gastos da União com processos judiciais referentes à saúde, em 2015, foram de R$ 1 bilhão, um aumento de mais de 1.300% em sete anos. O fornecimento de medicamentos, alguns sem registro no Sistema Único de Saúde, corresponde a 80 % das ações.

Ainda que a Constituição Federal determine a promoção de medidas mínimas e imprescindíveis para o desenvolvimento da sociedade, a fim de promover uma vida digna (mínimo existencial), os cofres do Estado não são suficientes para abarcar todas as garantias sociais, então os agentes públicos acabam por realizar ações consideradas prioritárias, e por vezes deixando de lado outros tipos de políticas públicas, visto que os recursos são limitados, mas as necessidades são intermináveis. Daí surge o conceito da “reserva do possível”

Importante destacar também sobre o debate entre doutrinadores que se posicionam pela defesa da contenção do Judiciário nas demandas da saúde, onde afirmam que este deve atuar só quando houver alguma lacuna entre a Constituição Federal e a ausência do poder público, não cabendo, em hipótese alguma, criar novas políticas públicas, pois com isso poderá infringir o princípio da separação dos poderes. Por outro lado, é dever do Estado promover à população uma vida digna, não apenas uma sobrevida, como forma de efetivar o direito à saúde, cabendo ao judiciário intervir de modo proativo, quando necessário.

A Carta Magna deu ao Estado as diretrizes relacionadas ao bem-estar coletivo, proporcionando-lhe os insumos para promover a dignidade dos seus cidadãos. Assim sendo, a fim de atenderem as solicitações relacionadas à saúde, os entes estatais empenharam esforços para a criação de uma estrutura de governo encabeçada por políticas públicas próprias, que seriam capazes de proporcionar a saúde da sociedade, saúde esta equiparada a condição de direito fundamental.

O art. 198 da CF/88 teve como um resultado concreto a criação do Sistema Único de Saúde, que tem como objetivo ser uma política que venha minimizar as desigualdades na saúde e as injustiças sociais. Todavia, o fato é que não há uma proporção entre as normas constitucionais e a estrutura da saúde pública brasileira, pois o modelo de atuação do Estado não suporta a procura apresentada pela sociedade. É inegável o conflito por qual passa a Administração, que tem que escolher a melhor destinação dos recursos financeiros insuficientes para atender a demanda, recursos esses que não abrangerão todos os serviços essenciais. Também deve-se lembrar da má gestão dos escassos recursos, que em muitas vezes são aplicados sem a necessária reflexão e o conhecimento técnico imprescindíveis à redução das necessidades dos usuários da saúde pública.

Conforme exposto anteriormente, várias ações judiciais são demandadas para que se consigam procedimentos médicos e medicamentos. Contudo, vários desses medicamentos não compõem a lista fornecida pelo SUS e outros não têm autorização da ANVISA para circularem no Brasil. Autorizar a aquisição de um medicamento que conste na lista da ANVISA, mesmo com valor elevado, leva o Judiciário a aproximar os direitos do cidadão de sua realidade concreta; por outro lado, quando o judiciário autoriza a compra pelo poder público de um medicamento ou de qualquer insumo da saúde não regulamentado no Brasil, acaba por favorecer algumas minorias privilegiadas. Na medida em que os juízes concedem tutelas de urgência para a aquisição imediata de bens ou serviços de saúde, que devem ser adquiridos pelo Poder Executivo, em geral sem licitação, eles intervêm diretamente na alocação orçamentária, determinada pelo Poder Legislativo, e na condução da política pública de saúde, estabelecida pelo Poder Executivo.

Segundo Borges (2007, p.23), o principal problema “surge quando a saúde se apresenta como um bem particular, ou em termos jurídicos, como um direito subjetivo público. Nessas situações, o exercício do direito subjetivo contra o Estado por determinado indivíduo poderá afetar o exercício do direito subjetivo de outros cidadãos, constituindo-se nesses casos como um bem exclusivo e de consumo rival”. De acordo com este pensamento, a saúde deixaria de ser um direito de cidadania garantido a toda população para transformar-se num bem particular de consumo exclusivo disputado por todos os cidadãos. Em todo o caso, não se pode perder de vista a possibilidade da atuação do Poder Judiciário servir para pressionar os demais Poderes a atender as necessidades da sociedade brasileira. Como ocorreu com a política da AIDS, a judicialização pode contribuir para o aumento das ações e serviços disponibilizados pelo Estado e para a própria revisão da política que vem se desenvolvendo.

O que pode-se perceber é que existem evidências tanto positivas como negativas do processo de expansão do Poder Judiciário. A adoção da política de AIDS claramente representa o primeiro grupo. Por outro lado, há indícios de que a compra de determinados insumos possa desvirtuar os aspectos benéficos da judicialização.

Conforme o exposto, é necessária uma análise crítica à maneira atual de obtenção de fármacos e tratamentos médicos junto ao poder judiciário, pois existe uma necessidade urgente de reforma das políticas públicas que hoje existem, para adequar e melhorar os mecanismos junto aos órgãos responsáveis pela compra e distribuição dos medicamentos. Além disso, existe a complexidade que envolve as decisões judiciais, expondo em muitos casos, uma ampliação da interferência do Judiciário nos sistemas político e econômico, o que exige uma maior legitimidade democrática da tomada de decisão.

Sendo assim, a saúde brasileira precisa de novas e sustentáveis políticas públicas capazes de transmitir eficiência ao modelo de administração praticado pelo Estado brasileiro, construindo sistemas capazes de promover a real recuperação da saúde dos cidadãos, dando-lhes a oportunidade de usufruir da igualdade de posições próprio de um Estado Democrático de Direito, cuja finalidade essencial é a igualdade dos membros da sociedade.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme exposto anteriormente, mesmo com a criação do Sistema Único de Saúde, o Brasil ainda sofre com a falta de investimento e estrutura na área da saúde, e isso tem impacto na vida de vários cidadãos que, por não terem condições de pagar por planos de saúde privados, se veem obrigados a procurar atendimento na rede pública.

Essa alta procura por parte da população aliada com a deficiente estrutura do Estado em fornecer os serviços de saúde solicitados acabou gerando uma demanda peculiar em vários estados da federação brasileira: muitos cidadãos têm procurado o poder judiciário para forçar o Estado a fornecer tratamentos e medicamentos de alto custo.

Entra aí a chamada judicialização da saúde, e de um lado há o apelo das pessoas que invocam o direito à vida para fundamentarem seus pedidos, e do outro, o Estado, que alega não ter condições de atender a todos, visto que há toda uma questão legal envolvida em torno do orçamento público. Como se pode ver, há críticas em torno da prática das ações judiciais envolvendo o fornecimento de medicamentos de alto custo. Alguns alegam que o judiciário, ao deferir uma ação deste tipo, acaba favorecendo uma parcela da população em detrimento de outra, ferindo assim o princípio da igualdade. Outros ainda dizem que tais decisões acabam por ferir o princípio da separação dos poderes, visto que tais ações interferem diretamente nos gastos do poder Executivo, que se vê na obrigação de atender a ordem judicial e tem que fazer o possível para manter o controle dos gastos públicos. Porém há também críticas positivas, onde defendem a atuação do judiciário, e acham que este deve ter uma postura enérgica e proativa na execução das ações de manutenção da saúde pública.

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O fato que é deve-se ter cautela no que se refere a tal judicialização da saúde, pois estas situações deveriam ser exceções, ao passo que com tantas demandas em andamento, tal instituto fique “banalizado”. Deve-se tentar solucionar o problema nas suas causas, com ações e políticas públicas de modo que um dia, a população em geral não tenha mais que procurar a justiça para conseguir que se faça valer um direito básico de todos, que é a saúde.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol III. Os Direitos Humanos e a Tributação – Imunidades e isonomia. Rio de Janeiro. Editora Renovar. 1999.

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Sobre a autora
Bruna Gomes Lima

Acadêmica do 3° período do Curso de Direito da Fundação Universidade Federal de Rondônia.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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