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Acordos de credores para o pagamento de precatórios

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28/03/2021 às 09:35
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II – Análise dos acordos sob o escudo da Constituição Federal e das normas do Direito Administrativo

 Para melhor clarear o assunto, falo, ainda que en passant, sobre o Estado Brasileiro, os Poderes da República e as suas respectivas atribuições, também a respeito de delegação e usurpação de competência, sobre atos administrativos e sobre assuntos outros que se fazem necessários para demonstrar e comprovar o erro grosseiro que o Estado da Bahia vem cometendo ao longo desses 11 (onze) últimos anos, no mister de pagar os débitos precatoriais, em discrepância total, não só com a Constituição Federal, mas também com todo o ordenamento jurídico, como visto nas decisões do STF, que não admitem tais acordos e ao próprio Tribunal de Justiça daquele Estado da Bahia.

Com a devida permissão, faço essa análise à luz do Direito Administrativo, considerando os acordos diretos atos administrativos, como efetivamente o são, e assim subsumidos às normas desse ramo do direito.

1. Direito Administrativo.

São diversas as definições dadas ao Direito Administrativo, umas mais simples, outras mais prolixas, mas todas elas convergem em suas conclusões para um mesmo sentido.

O Direito Administrativo é o ramo do Direito Público que disciplina o funcionamento do Estado e de toda máquina administrativa.

Diz-se que o Direito Administrativo é o ramo do Direito Público que tem como objetivo o estudo jurídico do funcionamento dos Poderes do Estado - Executivo, Legislativo e Judiciário, em todas as esferas governamentais - Federal, Estadual, Distrital e Municipal, se dedicando a deslindar o funcionamento da Administração Pública, tendo como fonte primeira a Constituição Federal.

  2. Administração Pública

Por Administração Pública se entende o conjunto de órgãos e entes estatais responsáveis pelo atendimento das necessidades de interesse público. A administração pública se exterioriza e se concretiza através das diversas espécies de atos administrativos.

3. O Estado Brasileiro

O Poder do Estado é uno e indivisível, existindo, contudo, as repartições das suas funções entre os três órgãos que o compõem: Poder Executivo, Legislativo e Judiciário, que devem agir com independência e harmonia.

O objetivo principal da divisão das funções no campo político é o de descentralizar o poder, impedindo que a administração do País fique sob a batuta de uma só pessoa; fique nas mãos de um só governante. No campo administrativo, essa repartição de funções tem como finalidade distribuir as atividades e ações para melhor governar o País, realizando as políticas públicas, atendendo as necessidades da população, elaborando as leis e as aplicando corretamente, empregando com responsabilidade as verbas públicas, dizendo o direito e compondo conflitos entre as pessoas físicas e jurídicas.  

Assim, cada um dos três Poderes deve ficar adstrito ao exercício das atribuições que lhes são expressas ou implicitamente conferidas pela Constituição Federal, por leis específicas ou por normas organizacionais, não podendo delas se afastar para que não haja interferência nas atribuições um do outro.

Esses Poderes da República são independentes entre si, ainda que funcionem em harmonia, submetendo-se à fiscalização mútua a que se chama de sistema de freios e contrapesos. Consiste essa norma no controle do Poder pelo próprio Poder, sendo que cada um deles tem autonomia para exercer suas funções sob o controle dos demais.  Esse sistema tem como finalidade impedir que haja abusos no exercício das atividades por qualquer um deles.

Essa divisão de funções entre os três Poderes, e definição de atribuição e atividades, ocorrem de idêntica forma em todas as esferas de governo que integram o Estado Brasileiro.

4. Ato Administrativo

O Prof. Hely Lopes Meirelles define o ato administrativo na forma abaixo descrita:

"Ato administrativo é toda manifestação unilateral de vontade da Administração Pública que, agindo nessa qualidade, tenha por fim imediato adquirir, resguardar, transferir, modificar, extinguir e declarar direitos, ou impor obrigações aos administrados.”

4a. Requisitos necessários à formação do ato administrativo   

Para que os atos administrativos sejam considerados perfeitos, válidos e eficazes se faz necessária a presença dos seguintes requisitos: competência; finalidade; forma; motivo e objeto. 

Desses requisitos falarei apenas sobre a competência, que permite demonstrar a inconstitucionalidade desses acordos.

4b. Competência 

A legalidade é a principal característica da competência, vez decorrer ela sempre da lei, sendo inderrogável, intransferível, imutável e irrenunciável, não podendo ser modificada por vontade dos interessados.

Se a legalidade é a principal característica da competência, é esta considerada como o mais fundamental requisito exigido para a concepção de um perfeito, válido e eficaz ato administrativo.

A competência administrativa é sempre originária de uma norma jurídica. Não há competência sem previsão normativa, seja ela constitucional, infraconstitucional ou mesmo regulamentar.

Não existe atribuição ou atividade a ser exercida por qualquer dos três Poderes, seus órgãos e agentes, sem um mandamento legal que faça nascer a alçada em nome do qual serão elas realizadas.

Para os órgãos e agentes de maior hierarquia, ou que exerçam finalidades específicas, a fonte da competência, via de regra, é a própria Constituição, isso segundo a esteira de pensar do Professor José dos Santos Carvalho Filho que afirma:

“Em relação a órgãos de menor hierarquia, pode a competência derivar de normas expressas de atos administrativos organizacionais. Nesses casos, serão tais atos editados por órgãos cuja competência decorre de lei. Em outras palavras, a competência primária do órgão provém da lei e a competência dos segmentos internos dele, de natureza secundária, pode receber definição através dos atos organizacionais.” 

4ba. Delegação de Competência

Delegar competência é transferir temporariamente, no interior de um mesmo Poder, o exercício de determinada tarefa a outro órgão ou agente da sua mesma hierarquia ou a ele subordinado.

A Lei 9.784/99, que dispõe sobre o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal, diz que a competência é exercida pelos órgãos administrativos aos quais lhes foi por lei atribuída, salvo os casos de delegação e avocação legalmente admitidos.

Nessas circunstâncias, será considerada ilícita, qualquer atividade realizada por órgão ou agente público, que não sejam os originariamente competentes, a não ser que a eles tenha sido delegada e que essa delegação tenha sido feita atendendo as exigências previstas na lei.

São as seguintes as imposições para transferir atividades de um órgão ou agente para outro órgão ou agente do mesmo Poder e da mesma hierarquia ou a ele subordinado:

· deve ser concedida por lei, em seu sentido formal, ou por ato normativo, a não ser nas situações especiais, em que a competência já vem determinada no texto constitucional ou em leis específicas, assim entendidos aquelas aprovadas com objetivos também especiais;

· deve ser temporária, isto é, deve ser concedida por prazo determinado ou determinável;

· deve transferir poderes e deveres de determinada classe de agentes públicos ou órgão a outro;

· é irrenunciável, ou seja, mesmo delegando as atribuições a outro órgão ou agente público a competência será sempre daquele que a recebeu por norma jurídica ou ato administrativo;

· deve ser motivado;

· finalmente, ao ato concessivo de delegação de competência deve ser dada publicidade. 

Ora, depois de analisar os dispositivos que falam sobre a introdução dos acordos diretos com os credores em nossa legislação, como forma opcional para quitação dos seus débitos discutidos em ações judiciais, não se contesta que a competência para sua realização, como não poderia deixar de ser, foi atribuída aos Poderes Executivos das unidades federativas, que deveriam exercitá-la através de lei de iniciativa deles próprios, como impunha o texto inserido no § 8º, III do artigo 97 do ADCT, que acima foi transcrito.

Em decorrência da inércia, ou falta de interesse, do Poder Executivo do Estado da Bahia e dos seus Municípios, deixando de exercitar o direito que lhes foi outorgado, resolveu então o Poder Judiciário fazê-lo, editando para isso o Decreto Judiciário nº 407/12.

A Lei Régia do País, em seus artigos 92 a 126, estabelece a organização do Poder Judiciário em todas as esferas e graus de jurisdição, ditando as suas respectivas competências e atribuições, outorgando ao STF a mais honrosa, ser dela guardião, e, dentre inúmeras outras:

Interpretar as leis, julgar litígios; compor conflitos... enfim,  dizer o direito.

Tem- se essas como atividades típicas do Poder Judiciário.

As atividades atípicas são os atos normativos editados pelos Tribunais com a finalidade de disciplinar as suas funções internas.

Não se pode confundir o poder normativo orgânico do Poder Judiciário, como tal concebido aquele que institui, organiza e disciplina o funcionamento interno das Cortes de Justiça, com o poder de legislar outras situações que não integram a sua competência.

Como normas orgânicas, os Tribunais expedem decretos judiciários, regulamentos, portarias, resoluções, editais, atos esses, os quais, por terem caráter organizacional, não criam, não modificam e não extinguem direitos e são aplicados internamente, no âmbito do Tribunal que os editou.

Por tudo o quanto explicitado, não se contesta a inexistência de delegação da competência da matéria em análise, do Executivo para o Judiciário, primeiro, por ser vedada essa transferência entre Poderes e, segundo, pelo fato da Constituição daquele Estado da Bahia proibir, em todos os organismos que o compõem, cessão de atividades, assertiva provada com o dispositivo abaixo enunciado:

“Art. 1º - O Estado da Bahia, integrante da República Federativa do Brasil, rege-se por esta Constituição e pelas leis que adotar, nos limites da sua autonomia e do território sob sua jurisdição.

(...)

§ 2º - São Poderes do Estado o Legislativo, o Executivo e o Judiciário, independentes e harmônicos entre si.

§ 3º - Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, é vedado a qualquer dos Poderes delegar atribuições, e quem for investido na função de um deles não poderá exercer a de outro.”

Ao criar e disciplinar os acordos diretos com os credores por Decreto e Editais, o Poder Judiciário praticou a denominada usurpação de competência e feriu frontalmente todos os princípios constitucionais: legalidade; reserva legal; moralidade; igualdade; impessoalidade; publicidade; eficiência e tantos outros implícitos na Lei Maior.

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Criou o NACP/Bahia o que se pode chamar de uma aberração jurídica, isso já há cerca de 11 (onze) anos, sem que os organismos constituídos tomassem as devidas providências

Isso é inconcebível!

Não havendo alterações nas atribuições dos Poderes que integram o Estado da Bahia, pelos motivos por demais explicados, o que ocorreu e o que ocorre durante todo o lapso temporal na celebração dos acordos foi e continua sendo uma indiscutível e inaceitável usurpação de alçada, o que leva à nulidade de todos os acordos firmados, desde o início da vigência da EC 62/09 ato que os instituiu, por ter faltado ao usurpador, o Tribunal de Justiça da Bahia/NACP, um dos requisitos mais importantes para a formação de um ato administrativo legítimo, válido e eficaz:

Faltou-lhe a competência! 

5. Nulidade do ato administrativo

Invalidação é a eliminação, com efeitos retroativos, de um ato administrativo ou da relação jurídica por ele gerada, ou de ambos, por terem sido produzidos em desconformidade com a ordem jurídica.

Reconhecendo a Administração Pública a invalidade do ato administrativo, deve, de logo, declarar a sua nulidade, restabelecendo com isso a legalidade administrativa.

A declaração de nulidade do ato administrativo pode ocorrer tanto pelo Poder Judiciário, quando provocado, a quem compete dizer o direito e também pela própria Administração Pública, no exercício do seu poder de autotutela. Esse tem sido o entender do Supremo Tribunal Federal – STF, como subscrito:

“Súmula 473:

A Administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornem ilegais, porque deles não se originam direitos, ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial.”

Não só a ilegalidade, vale dizer, não só a violação à lei torna o ato nulo, mas também o abuso por excesso ou desvio de poder, que também representa uma ilegalidade.

Também é nulo o ato constituído e praticado em dissonância com normas e princípios gerais do direito e, ainda, com os princípios que norteiam a administração pública, previstos no artigo 37 da Lei Régia, como se vê da sua transcrição:

“Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade; impessoalidade; moralidade; publicidade e eficiência.”

Os atos administrativos elaborados e aplicados agredindo a Constituição Federal são considerados inexistentes, não geram quaisquer efeitos, são eivados de vícios intransponíveis desde a sua gênese. São nulos e dão azo à indenização dos prejudicados.

A nossa Carta Magna no § 6º do artigo 37 impõe responsabilidade ao Estado, determinando que tanto a Administração Pública direta, quanto a indireta e também pessoas jurídicas de direito privado, na qualidade de prestadoras de serviços públicos, devem ser responsabilizadas por danos causados a terceiros por si mesmas ou por seus agentes.

Quanto à nulidade, essa se dá sob o efeito ex tunc.

Por tudo o que vimos, ressalta aos olhos a inconstitucionalidade e, por consequência, a nulidade dos acordos firmados pelo Poder Judiciário/NACP/BA com os credores de Precatórios. E ato nulo é ato inexistente, não produz qualquer efeito.

Nesse caminho, o ato declaratório de nulidade sofre efeitos ex tunc, vale dizer, alcança todos os acordos firmados desde a data da sua criação, através da EC 62/09, obrigando o Poder Judiciário da Bahia a devolver o percentual de 40% (quarenta por cento) que foi cobrado dos titulares de precatório como deságio, além dos danos morais advindos do seu comportamento ilegal e abusivo.

Não se pode deixar de considerar o percentual da verba originária do acordo que vai para os cofres do Estado da Bahia, pois além do deságio de 40% (quarenta porcento), este por demais escorchante, a ele também pertencem as verbas do IR retido na fonte, por determinação da Constituição Federal e, também, a Contribuição Previdenciária.

Um hediondo confisco!

Tal proceder representa um verdadeiro enriquecimento ilícito do Estado e dos Municípios em detrimento do sacrificado credor.

O credor ainda paga os honorários contratuais devidos ao causídico que patrocinou a ação.

Para quitar o precatório através de acordo, mesmo desrespeitando a ordem cronológica, a espera é de no mínimo 20 (vinte) anos, considerando 15 (quinze) anos da fase de conhecimento até o trânsito em jugado da ação e mais 5 (cinco) anos para o Estado e/ou o NACP liberar esse crédito e, ao fazê-lo, retira do proprietário um insuportável percentual do valor a que fazia jus por força da sentença judicial.

Pergunta-se:

Valeu a pena o acordo?

Assim concluo:

O Estado da Bahia, de maneira ostensiva desrespeita a decisão do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Afirma o ex- Ministro do Supremo Celso de Mello:

“A recusa de aceitar uma sentença fere o núcleo da separação dos poderes, pois desobedecer sentenças do Poder Judiciário significa praticar gesto inequívoco de inaceitável desprezo pela integridade e pela supremacia da Lei Fundamental do nosso país".

Completa o Ministro:

“Não há espaço para o voluntário desrespeito às decisões” 

Volto a perguntar:

Onde está a Ordem dos Advogados do Brasil - OAB, principalmente a seccional baiana?

Onde está o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – CFOAB?

Onde está o Tribunal de Contas?

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Sobre a autora
Telma Dantas

Sou advogada formada pela Eg. Universidade Católica do Salvador no ano de 1970. De início exerci a advocacia dedicando-me principalmente a área trabalhista e família. Fiz alguns concursos públicos sendo aprovada como Auditora Fiscal do Estado da Bahia, função que exerci até 1996, tendo inclusive integrado o Conselho de Fazenda daquele Estado. Concomitantemente ministrava aulas de Direito Tributário para os colegas na Escola Fazendária Estadual.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DANTAS, Telma. Acordos de credores para o pagamento de precatórios. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6479, 28 mar. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/89295. Acesso em: 28 mar. 2024.

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