A era da informática vem estreitando a distância entre as pessoas e facilitando a difusão de informações das mais variadas ordens. As redes sociais e, principalmente, os aplicativos eletrônicos, possibilitam a troca de mensagens, imagens fotográficas, vídeos, etc., tudo em tempo real.
Hoje, por exemplo, é possível se conectar com pessoas de forma instantânea com apenas um click, independentemente da distância. Toda essa tecnologia, sem dúvida, é um grande avanço e possibilitou que diversos setores do poder público se reinventassem.
No Poder Judiciário isso não foi diferente!
Após anos convivendo com papéis, o Poder Judiciário foi, aos poucos, modernizando-se por meio da informatização no tocante ao seu fluxo de trabalho e ao cumprimento de atos processuais, trazendo mais economia aos cofres públicos e celeridade aos processos judiciais, contribuindo para que fosse garantido às partes o direito à “razoável duração do processo”, conforme prevê o art. 5º, LXXVIII, da Constituição Federal de 1988.
Esse cenário ficou mais evidente com a edição da Lei n. 11.419/2006, que trata da informatização do processo judicial, pois “o uso de meio eletrônico na tramitação de processos judiciais, comunicação de atos e transmissão de peças processuais” passou a ser admitido e regulamentado (art. 1º).
No entanto, a evolução é acompanhada, por vezes, de dúvidas e incertezas. Uma delas é quanto à utilização de aplicativos eletrônicos para a citação do réu em ações penais, a exemplo do whatsapp, telegram, viber, signal, messenger, skype etc.
Dispõe o art. 5º, LIV, da CF/1988, que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”, o que quer dizer, especialmente no âmbito do processo penal, que as “regras do jogo” devem ser seguidas nos exatos termos da lei para que se tenha um processo legítimo.
Na lição de Aury Lopes Jr., “existe uma íntima relação e interação entre a história das penas e o nascimento do processo penal, na medida em que o processo penal é um caminho necessário para alcançar-se a pena e, principalmente, um caminho que condiciona o exercício do poder de penar (essência do poder punitivo) à estrita observância de uma série de regras que compõe o devido processo penal (ou, se preferirem, são as regras do jogo, se pensarmos no célebre trabalho Il processo come giuoco de CALAMANDREI). Esse é o núcleo conceitual do 'Princípio da Necessidade'." (Direito processual penal, 15ª ed., São Paulo: Saraiva, 2018. p. 22).
Renato Brasileiro de Lima leciona:
“O processo penal não pode prosseguir validamente sem a observância do contraditório e da ampla defesa. Afinal, é por meio da colaboração das partes que o Poder Judiciário pode chegar ao acertamento do fato delituoso. Por conseguinte, de modo a preservar o contraditório e a ampla defesa, concebido pelo binômio conhecimento e reação, às partes envolvidas devem ser asseguradas condições de saber o que nele se passa, podendo reagir de alguma forma aos atos ali praticados. É natural, pois, a preocupação do Código de Processo Penal e da legislação especial com a comunicação dos atos processuais, isto é, com a forma pela qual os sujeitos do processo são informados sobre os acontecimentos sucedidos ao longo de toda a marcha procedimental” (Lima, Renato Brasileiro de. Código de processo penal comentado. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 963).
E, no processo penal, uma das formas de se respeitar o devido processo legal e garantir o contraditório e a ampla defesa é dar ciência ao acusado dos termos da denúncia por meio da citação.
Segundo o art. 351 do Código de Processo Penal, “a citação inicial far-se-á por mandado, quando o réu estiver no território sujeito à jurisdição do juiz que a houver ordenado”, ou seja, o dispositivo legal não prevê a realização do mencionado ato processual por meio eletrônico.
Diga-se, novamente, que é por meio do ato citatório que o réu será cientificado da acusação, momento em que poderá exercer o direito ao contraditório e à ampla defesa (art. 5º, LV, da CF/1988), garantias fundamentais instituídas pelo Estado Democrático de Direito, conforme lição de Eugênio Pacelli:
“O contraditório, [...] junto ao princípio da ampla defesa, institui-se como a pedra fundamental [...] do processo penal. E assim é porque, como cláusula de garantia instituída para a proteção do cidadão diante do aparato persecutório penal, encontra-se solidamente encastelado no interesse público da realização de um processo justo e equitativo, único caminho para a imposição da sanção de natureza penal” (Curso de processo penal. 24ª ed. São Paulo: Atlas, 2020, p. 76).
Em complemento à citação, Renato Brasileiro de Lima descreve o seguinte:
“[...] é um dos mais importantes atos de comunicação processual, porquanto dá ciência ao acusado do recebimento de uma denúncia ou queixa em face de sua pessoa, chamando-o para se defender. Considerando-se que a instrução criminal deve ser conduzida sob o crivo do contraditório, a parte contrária deve ser ouvida (audiatur et altera pars). Para que ela seja ouvida, faz-se necessário o chamamento a juízo, que é feito por meio da citação. Funciona a citação, portanto, como misto de contraditório e de ampla defesa, já que, ao mesmo tempo em que dá ciência ao acusado da instauração de demanda penal contra ele, também o chama para exercer seu direito de defesa” (Código de processo penal comentado. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 963).
O Código de Processo Penal ainda prescreve, em seu art. 363, caput, que “o processo terá completada a sua formação quando realizada a citação do acusado”, a qual, obviamente, deve ser realizada dentro da legalidade para que seja considerada válida.
Tamanha é a importância do ato citatório que a sua ausência é causa de nulidade absoluta, a qual pode ser arguida a qualquer tempo (art. 564, III, ‘e’, do CPP).
Inobstante, a Lei n. 11.419/2006 veio para agilizar o trâmite das ações judiciais, tanto que aplicável “aos processos civil, penal e trabalhista, bem como aos juizados especiais, em qualquer grau de jurisdição” (art. 1º, § 1º).
Com ela, propiciou-se que até os atos citatórios pudessem observar a forma eletrônica. Contudo, apesar da previsão legal anotada, o art. 6º da Lei n. 11.419/2006 impõe uma exceção, ou seja, as citações dos “Direitos Processuais Criminal e Infracional” não poderão ser efetuadas pelo modo eletrônico. Eis o conteúdo da norma citada:
“Art. 6º Observadas as formas e as cautelas do art. 5º desta Lei, as citações, inclusive da Fazenda Pública, excetuadas as dos Direitos Processuais Criminal e Infracional, poderão ser feitas por meio eletrônico, desde que a íntegra dos autos seja acessível ao citando”.
Não se nega que “compete ao Conselho Nacional de Justiça e, supletivamente, aos tribunais, regulamentar a prática e a comunicação oficial de atos processuais por meio eletrônico” (art. 196 do CPC/2015, c/c o art. 3º do CPP), inclusive diante de ocorrências de força maior que possam dificultar a prática de certos atos processuais. Porém, não se verifica a possibilidade de regulamentação e efetivação de “citação do réu em ação penal por meio eletrônico”, sobretudo porque expressamente vedado por lei.
Somado a isso, compete privativamente à União legislar sobre direito processual, na linha do que dispõe o art. 22, I, da CF/1988,
Nessa perspectiva, eventual “regulamentação” pelo CNJ e, ou, Tribunais, por certo, estaria eivada de vício de forma, além de vício de ordem material, em razão da ausência de previsão legal.
De registrar que o Conselho Nacional de Justiça, oportunamente, manifestou-se sobre a utilização do whatsapp para a comunicação de atos processuais, mas a decisão abrangeu “intimações” realizadas no Juizado Especial Cível e Criminal (Procedimento de controle administrativo n. 0003251-94.2016.2.00.0000, julgado em 23/6/2017. 23ª Sessão Virtual. Relator(a): Daldice Santana).
Como se vê, os aplicativos eletrônicos não podem ser utilizados para a citação do acusado em ação penais, devendo o ato processual ser realizado por Oficial de Justiça, pessoalmente, sob pena de nulidade.
Nesse sentido, extrai-se da jurisprudência:
“HABEAS CORPUS. CRIME DE LESÃO CORPORAL EM CONTEXTO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER. CITAÇÃO POR MEIO ELETRÔNICO. WHATSAPP. VEDAÇÃO LEGAL. ARTIGO 351 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL E ARTIGO 6º DA LEI Nº 11.419/2006. PORTARIAS Nº 52/2020 E 155/2020 DO TJDFT. IMPOSSIBILIDADE DE INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA EM CONTRARIEDADE À LEI. INAPLICABILIDADE AO PROCESSO CRIMINAL. AUSÊNCIA DE ATO QUE DEMONSTRE A CIÊNCIA INEQUÍVOCA DO CITADO. NÃO CONFIRMAÇÃO DE DADOS PESSOAIS DO CITADO E DE SEU ENDEREÇO ATUALIZADO PARA FUTURAS INTIMAÇÕES. FINALIDADE DA LEI NÃO ATINGIDA. ORDEM CONCEDIDA.
1. No processo penal, a citação do réu deve ser pessoal, por mandado a ser cumprido por Oficial de Justiça, consoante artigo 351 do Código de Processo Penal. Ademais, mesmo com o advento do processo eletrônico, e, por conseguinte, da comunicação processual eletrônica, foi mantido o rigor no tocante ao ato citatório no processo criminal, pois a Lei nº 11.419/2006, em seu artigo 6º, vedou expressamente a citação eletrônica nos processos criminais e infracionais.
2. O escopo da Portaria Conjunta nº 52/2020 e da Portaria GC nº 155/2020 foi densificar as disposições legais já existentes para que houvesse a continuidade da prestação jurisdicional durante a pandemia, não sendo possível concluir que tais portarias tenham possibilitado o descumprimento de dispositivos legais acerca da citação no processo criminal.
3. Não se mostra possível interpretar as disposições das portarias de modo extensivo e, com isso, contrariar flagrantemente dispositivos legais.
4. No caso dos autos, não é possível presumir que o paciente tenha, de fato, tomado conhecimento da ação penal instaurada contra si, pois não compareceu ao processo, não constituiu advogado ou realizou qualquer outro ato que demonstrasse sua ciência inequívoca. Ademais, não consta dos autos que tenha havido qualquer determinação do Juízo para cumprimento do mandado de citação por telefone ou aplicativo de mensagem, sendo que o Oficial de Justiça responsável, por ato voluntário, optou por não realizar a citação pessoal do réu.
5. A ausência de confirmação de dados pessoais do citado e o registro na certidão do Oficial de Justiça de número de telefone que diverge do constante nos autos geram dúvidas acerca da identidade do receptor da mensagem. Além disso, a ausência de questionamento sobre o endereço atualizado do citado pode inviabilizar futuras intimações.
6. Ordem concedida para declarar a nulidade da citação efetuada por WhatsApp e determinar a realização da citação do paciente por meio de mandado a ser cumprido pessoalmente por Oficial de Justiça, ressalvada a hipótese de comparecimento pessoal do paciente” (TJDFT. HC n. 0703918-67.2021.8.07.0000, julgado em 18/2/2021. Relator: Des. Roberval Casemiro Belinati).
Por isso, com a devida vênia, pensamos que autorizar o ato citatório em ações penais por meio de aplicativos eletrônicos é uma afronta à lei. E, ainda que fosse legalmente possível, a sua validade estaria condicionada à efetiva comprovação do ato citatório eletrônico.
Isso porque, apesar da fé pública que guarnece os atos praticados por Oficiais de Justiça, o que se verifica, na prática, é que a realização da citação eletrônica vem desprovida da efetiva comprovação da identidade do proprietário ou do usuário da linha telefônica, já que não juntam aos autos documento de identidade do destinatário da citação, nem mesmo uma fotografia; não demonstram o conteúdo da conversa eletrônica entabulada com o suposto réu; e não comprovam que a mensagem foi visualizada ou respondida pelo acusado.
De se concluir, então, que o processo eletrônico e a tecnologia em geral, apesar de serem aliados de todos os operadores do Direito, não autorizam o cumprimento de atos processuais em desacordo com a lei, ainda que sobre o pretexto da celeridade.