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O controle jurisdicional do ato administrativo discricionário à luz do princípio da juridicidade

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23/09/2006 às 00:00
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CAPÍTULO II

DO ATO ADMINISTRATIVO

2.1 Noções introdutórias

Na legislação brasileira não há um conceito para ato administrativo. Em decorrência disto, também não há uma uniformização de conceitos entre os doutrinadores. Cada um leva em consideração critérios os quais consideram mais adequados para oferecer uma definição satisfatória. Celso Antônio Bandeira de Mello salienta que tal discrepância é plenamente aceitável:

De fato, nada há que obrigue, do ponto de vista lógico, a uma coincidência de opiniões sobre a qualidade ou o número dos traços de afinidade que devam ser compartilhados pelos atos designáveis por tal nome; isto é: pelo nome "ato administrativo". [33]

Desta forma, reconhece o citado doutrinador que, dependendo dos elementos levados em consideração para se examinar quais atos se enquadram na categoria dos ditos atos administrativos, serão obtidas diversas noções acerca do tema.

Procurar-se-á analisar as definições elaboradas por diversos doutrinadores a fim de proporcionar um melhor entendimento, bem como delimitar o objeto de estudo deste trabalho monográfico. Para isto, é imprescindível situar o ato administrativo dentro da teoria geral do ato jurídico, estabelecendo as distinções necessárias.

De acordo com a teoria tridimensional do direito formulada pelo jurista Miguel Reale, o direito deve ser analisado tendo como base três elementos que o compõe: fato, norma e valor. A todo instante ocorrem eventos os quais tanto podem ter origem na natureza como podem ser fruto da ação humana. Denominamos tais eventos fatos naturais ou fatos humanos. O direito, ao considerar relevante um fato, pode atribuir-lhe determinada conseqüência jurídica. Dessa forma, a doutrina civilista assim conceitua o fato jurídico:

[...] a expressão fatos jurídicos, em seu sentido amplo, engloba todos aqueles eventos, provindos da atividade humana ou decorrentes de fatos naturais, capazes de ter influência na órbita do direito, por criarem, ou transferirem, ou conservarem, ou modificarem, ou extinguirem relações jurídicas. [34]

Desta forma, fato jurídico constitui todo fato o qual é valorado pela norma jurídica. Maria Sylvia Zanella Di Pietro [35] classifica como fato administrativo todo fato jurídico que produza efeitos no campo do direito administrativo. E complementa, aduzindo que, se o fato não produz efeito jurídico, mas é praticado no âmbito da Administração Pública, então será chamado fato da administração.

Dentre os fatos jurídicos, aqueles praticados pelo homem são denominados atos jurídicos. Os atos jurídicos podem ser praticados com a intenção de alcançar determinados efeitos jurídicos (e nesse caso são denominados negócios jurídicos) ou podem ser praticados sem o intuito de produção de efeitos jurídicos, embora produzam, os quais são denominados atos jurídicos em sentido estrito. Essa distinção, embora bastante importante no âmbito do Direito Civil, não possui aplicação no âmbito do Direito Administrativo:

No direito administrativo, onde a Administração Pública não dispõe de autonomia da vontade, porque está obrigada a cumprir a vontade da lei, o conceito de negócio jurídico não pode ser utilizado com relação ao ato administrativo unilateral. [36]

Celso Antônio Bandeira de Mello [37] critica esta forma de distinção entre fato jurídico e ato jurídico, pois afirma que existem fatos jurídicos objetivos que não decorrem da natureza nem da vontade humana, como por exemplo, a prescrição e a decadência que ocorre mediante o decurso do tempo e a omissão do titular do direito. Outrossim, aponta ainda a existência de atos jurídicos administrativos que não derivam de ato humano, como por exemplo, um semáforo utilizado para ordenar o fluxo de trânsito.

Para solucionar o problema, aquele autor propõe que a distinção seja feita levando em consideração que sempre o ato jurídico conterá em seu bojo uma declaração, uma prescrição, enquanto que o fato jurídico não conteria nenhuma declaração ou prescrição, seria apenas um acontecimento ao qual a lei atribui conseqüências no mundo do direito. Sendo assim, a omissão, por não conter nenhuma declaração, mas que gera conseqüências jurídicas, segundo o denominado autor, não constitui ato administrativo, e sim fato administrativo, ainda que a Administração Pública tenha se omitido na prática do ato com o intuito deliberado de produzir os efeitos determinados na lei.

2.2 Fato Administrativo, Ato da Administração e Ato Administrativo

Tecidas considerações acerca da teoria geral do ato jurídico, cabe distinguir o ato administrativo, objeto do presente estudo, do ato da administração e do fato da administração. Com efeito, tal providência se mostra bastante útil na medida que os atos da administração e fatos da administração não gozam de certos atributos os quais serão examinados mais adiante e que dizem respeito ao ato administrativo.

Conforme já salientado alhures, fato administrativo é todo fato jurídico que produz efeitos no âmbito do direito administrativo. Themístocles Brandão Cavalcanti salienta que "fato administrativo é uma ocorrência na esfera administrativa, que não pressupõe a manifestação da vontade, antes constitui um acontecimento verificado sem essa participação, pelo menos imediata". [38] Cita-se como exemplo desse tipo de fato a morte de um servidor público que resulta na vacância do seu cargo.

Já no que tange ao ato da administração, salienta Maria Sylvia Zanella Di Pietro que este tem sentido mais amplo que ato administrativo, e constitui "todo ato praticado no exercício da função administrativa". [39] Desta forma, conclui-se que o ato administrativo é espécie do gênero ato da administração.

Outrossim, verifica-se que existem diversos atos que, embora praticados pela Administração Pública, não configuram atos administrativos. A doutrina enumera os seguintes atos da administração: 1) os atos materiais praticados pela Administração Pública como a execução de uma obra, ou a destruição de mercadorias impróprias para o consumo; 2) os atos praticados pela Administração Pública, mas regidos pelo direito privado, tais como a locação, a troca, a permuta, a compra e venda; 3) os atos políticos, cuja prática encontra-se fundamentada diretamente na Constituição Federal e que se revestem de certa margem de discricionariedade, como, por exemplo, a concessão de asilo político, a sanção ou o veto às leis aprovadas pelo Congresso Nacional; 4) os atos normativos praticados pela Administração Pública tais como portarias, resoluções, instruções normativas, cujos efeitos são gerais e abstratos; 5) os atos enunciativos, como certidões, atestados e pareceres e por fim, 6) os contratos. [40]

Celso Antônio Bandeira de Mello ao tratar deste assunto somente enumera como atos da administração os atos políticos, os atos materiais e os atos regidos pelo direito privado. Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo [41], discorrendo acerca da classificação dos atos administrativos, incluem nesse rol os chamados atos enunciativos, ressalvando, entretanto, que estes, por não conterem uma manifestação de vontade da Administração Pública, somente são considerados atos administrativos em sentido formal.

No que tange à conceituação de ato administrativo, analisar-se-á noções introduzidas por diversos doutrinadores.

Celso Antônio Bandeira de Mello, define ato administrativo, em sentido amplo, como a:

[...] declaração do Estado (ou de quem lhe faça as vezes – como, por exemplo, um concessionário de serviço público), no exercício de prerrogativas públicas, manifestada mediante providências jurídicas complementares da lei a título de lhe dar cumprimento, e sujeitas a controle de legitimidade por órgão jurisdicional. [42]

Ao definir o ato administrativo como uma declaração, o citado doutrinador entende que o ato administrativo engloba não só os atos que expressam uma vontade, como também aqueles que contém somente um juízo, uma declaração, uma opinião (os já mencionados atos enunciativos). Além disso, esse conceito amplo, abrange também os atos normativos de caráter geral e abstrato.

Por outro lado, ato administrativo em sentido estrito pode ser conceituado como:

Declaração unilateral do Estado no exercício de prerrogativas públicas, manifestada mediante comandos concretos complementares da lei (ou, excepcionalmente, da própria Constituição, aí de modo plenamente vinculado) expedidos a título de lhe dar cumprimento e sujeitos a controle de legitimidade por órgão jurisdicional. [43]

Analisando ambos os conceitos trazidos a lume, verifica-se que o ato administrativo em sentido estrito possui como características que o diferencia a unilateralidade e a praticidade.

Themístocles Brandão Cavalcanti, ao procurar estabelecer um conceito para ato administrativo, menciona que este pode ser definido tanto no sentido formal como no sentido material. Maria Sylvia Zanella Di Pietro, acompanhando este mesmo entendimento, leciona que "pelo critério subjetivo, orgânico ou formal, ato administrativo é o que ditam os órgãos administrativos". [44] Dessa forma, este critério se mostra visivelmente inadequado para fornecer uma escorreita definição de ato administrativo por excluir o Legislativo e o Judiciário da prática de atos administrativos, além de englobar todos os atos da Administração sem distinção.

Pelo critério material, "ato administrativo é somente aquele praticado no exercício concreto da função administrativa, seja ele editado pelos órgãos administrativos, ou pelos órgãos judiciais e legislativos". [45]

Por fim, não se pode deixar de mencionar também o conceito dado por Hely Lopes Meirelles, para o qual

[...] ato administrativo é toda manifestação unilateral de vontade da Administração Pública, que, agindo nessa qualidade, tenha por fim imediato adquirir, resguardar, transferir, modificar, extinguir e declarar direitos, ou impor obrigações aos administrados ou a si própria. [46]

Desta forma, conclui-se que ato administrativo é espécie de ato jurídico submetido a regime jurídico de direito administrativo, possuindo atributos e elementos característicos os quais serão analisados adiante.

2.3 Atributos do Ato Administrativo

Prosseguindo no estudo dos atos administrativos, abordaremos, sucintamente, os atributos ou também chamadas características que os distinguem dos demais atos jurídicos.

São, portanto, atributos do ato administrativo: a presunção de legitimidade, imperatividade, exigibilidade, e executoriedade. Tais características decorrem do regime de direito público ao qual estão submetidos os atos administrativos, que conferem à Administração Pública determinadas prerrogativas e sujeições em virtude do relevante papel a ser desempenhado por ela: a realização do interesse público. Portanto, a Administração Pública só deve fazer uso de suas prerrogativas quando no desenvolvimento de atividade voltada ao atendimento de seu fim primordial: o interesse público.

Maria Sylvia Zanella Di Pietro [47] aponta que os atos administrativos são dotados de presunção de legitimidade, que diz respeito à conformidade do ato com a lei; e presunção de veracidade, que tange aos fatos, os quais alegados pela Administração Pública são tidos como verdadeiros até prova em contrário. Milita em favor dos atos administrativos uma presunção júris tamtum de legitimidade, o que implica na produção de efeitos do ato até que seja decretada sua invalidade. Além disso, cabe àquele que alega a existência de vício em relação ao ato administrativo fazer prova da mácula vertente.

A imperatividade implica na imposição dos atos administrativos a terceiros independentemente da anuência destes, anuência esta que seria necessária para constituição de obrigação caso se tratasse de ato no âmbito do direito privado.

A auto-executoriedade é a prerrogativa que tem a Administração Pública de exigir que seus atos sejam cumpridos independentemente de ter que ingressar em juízo para que se obrigue a execução do ato.

Celso Antônio Bandeira de Mello com muita propriedade distingue o atributo da exigibilidade da imperatividade salientando que nesta

[...] apenas se constitui uma dada situação, se impõe uma obrigação. A exigibilidade é atributo pela qual se impele à obediência, ao atendimento da obrigação já imposta, sem necessidade de recorrer ao Poder Judiciário para induzir o administrado a observá-la. [48]

Por sua vez, a exigibilidade difere da executoriedade, pois nesta "a Administração emprega meios diretos de coerção, compelindo materialmente o administrado a fazer alguma coisa" [49] enquanto que na exigibilidade "a Administração se utiliza de meios indiretos de coerção, como a multa ou outras penalidades administrativas impostas em caso de descumprimento do ato". [50]

Por fim, Maria Sylvia Zanella Di Pietro enumera ainda outro atributo do ato administrativo: a tipicidade, que decorre diretamente do princípio da legalidade. Segundo ela, para cada ato há uma finalidade específica a ser perseguida pela Administração Pública.

2.4 Elementos do Ato Administrativo

O ato administrativo, assim como o ato jurídico, possui alguns elementos que o compõem e os quais constituem requisitos para sua validade. A doutrina não é pacífica ao enumerá-los, entretanto, a maioria aponta como sendo cinco: sujeito ou competência, forma, finalidade, motivo ou causa e objeto.

O estudo de cada um desses elementos ou requisitos possui importância na medida em que se permite que sejam identificados os vícios presentes em cada um deles que podem invalidar o ato administrativo.

Com efeito, a legislação brasileira reconhece cada um desses elementos ao apontar no artigo 2º da Lei 4.717, de 29/06/1965, a chamada Lei da ação popular, os casos de nulidade dos atos, senão vejamos:

Art. 2º São nulos os atos lesivos ao patrimônio das entidades mencionadas no artigo anterior, nos casos de:

a) incompetência;

b) vício de forma;

c) ilegalidade do objeto;

d) inexistência dos motivos;

e) desvio de finalidade. [51]

Desta forma, depreende-se que, muito embora alguns doutrinadores apontem outros elementos, estes são os principais.

Celso Antônio Bandeira de Mello [52], ao tratar do assunto, separa os elementos intrínsecos do ato e os elementos extrínsecos. Segundo ele, o emprego da palavra elementos é imprópria: "Com efeito, o termo "elementos" sugere a idéia de "parte componente de um todo". Ocorre que alguns deles, a toda evidência, não podem ser admitidos como "partes" do ato, pois lhe são exteriores, conforme se verá adiante, ao tratarmos destes distintos tópicos." [53] Aponta, desta maneira, o citado autor que somente são elementos do ato, por serem componentes intrínsecos do mesmo o conteúdo e a forma. Os demais seriam tão somente pressupostos do ato. Tal orientação permite chegar à conclusão de que será inexistente o ato quando lhe faltar algum de seus elementos, bem como será inválido o ato quando caracterizado o vício quanto aos seus pressupostos.

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Não obstante tal entendimento, analisar-se-á a seguir cada um dos cinco elementos que compõem o ato administrativo, entendidos aqui como requisitos de validade deste tipo de ato.

Vale a pena ainda ressaltar a distinção feita por Régis Fernandes de Oliveira [54] entre perfeição, validade e eficácia do ato. Diz-se perfeito o ato quando completadas todas as etapas necessárias para sua produção. Já a validade diz respeito à sua obediência a todos os requisitos legais necessários. E, por último, a eficácia importa a aptidão do ato para a produção de seus efeitos, não estando submetido a nenhum termo, condição, ou encargo.

2.4.1 Competência

Competência constitui a medida do poder legalmente conferida a alguém, e que o habilita à prática de determinado ato. Maria Sylvia Zanella Di Pietro considera como elemento do ato não a competência, mas o sujeito, ressaltando ainda que este deve ser capaz e competente para praticar ato administrativo.

A capacidade diz respeito a qualquer ato jurídico, estando inclusive prevista como requisito de validade deste na esfera do direito civil. No direito administrativo, não basta que o sujeito seja capaz, antes de tudo, é necessário que este possua competência legal para a prática do ato. Nas palavras daquela autora, competência é definida "como o conjunto de atribuições das pessoas jurídicas, órgãos e agentes, fixadas pelo direito positivo". [55] Como conseqüência de sua necessidade de estar prevista sempre na lei, a competência será sempre elemento vinculado do ato administrativo.

A competência pode ser atribuída levando-se em conta alguns critérios, tais como: em razão da matéria, do território, do tempo, e do grau hierárquico. No que concerne à matéria, verifica-se a distribuição de competência entre vários Ministérios de acordo com o assunto que o é pertinente: saúde, educação, transportes. No que tange o território, verificamos a competência dos delegados de polícia para punir as infrações praticadas em determinada localidade, dos fiscais de receita para cobrança e fiscalização de impostos. Ainda, com relação ao limite de tempo para o exercício da competência, pode-se citar a título de exemplo, a duração de um mandato ou da investidura no cargo público até o seu término com a demissão, exoneração ou aposentadoria. Por fim, cabe salientar que a distribuição de competência levando em consideração o grau hierárquico geralmente é feita com base no maior ou menor grau de complexidade ou responsabilidade que exige o ato.

A doutrina cita como características da competência o fato desta derivar diretamente da lei, ser inderrogável, posto que é atribuída em razão do interesse público, podendo, no entanto, ser delegada ou avocada, dentro de limites determinados. [56]

Delegação consiste na transferência de parcela de competência de um órgão ou agente que a detém para outro, podendo o primeiro, estabelecer ressalva de exercício da atribuição delegada, podendo, desta forma, exercer a competência ao mesmo tempo que aquele que recebeu a delegação. A delegação é regra no ordenamento jurídico, segundo dispõe o artigo 11 da Lei 9.784, de 29 de janeiro de 1999, só não podendo ocorrer em casos excepcionais, como por exemplo, quando se tratar de competência exclusiva do órgão ou agente.

A avocação é a transferência temporária para superior hierárquico de competência atribuída originariamente a subordinado. Da mesma forma que ocorre com a delegação, não poderá haver avocação caso se trate de competência exclusiva do subordinado. Outrossim, para que ocorra a avocação de competência deve-se fundamentar devidamente a sua necessidade.

Finalmente, cabe ressaltar que quando a competência é exercida além dos limites fixados na lei, caracteriza-se um vício que é denominado pela doutrina excesso de poder. Este constitui uma das formas de abuso de poder (a outra, desvio de poder diz respeito a um vício contido no elemento finalidade do ato).

Ao tratar dos vícios relativos ao sujeito, Maria Sylvia Zanella Di Pietro cita dentre os vícios que dizem respeito à competência a usurpação de função, o excesso de poder e a função de fato:

A usurpação de função [...] ocorre quando a pessoa que pratica o ato não foi por qualquer modo investida no cargo, emprego ou função [...]

O excesso de poder ocorre quando o agente público excede os limites de sua competência [...]

A função de fato ocorre quando a pessoa que pratica o ato está irregularmente investida no cargo, emprego ou função, mas a sua situação tem toda a aparência de legalidade. [57]

Na hipótese de usurpação de função, além de constituir crime tipificado no artigo 328 do Código Penal, a grande parte da doutrina considera o ato praticado como inexistente. No excesso de poder a autoridade extrapola da sua competência em relação à execução de determinado ato: por exemplo, se a lei determinava pena de suspensão para determinada infração e a autoridade aplica a pena de demissão. Já na função de fato, cabe ressaltar que, com a finalidade de proteger terceiros de boa-fé, adota-se a teoria da aparência, de forma que não serão desconstituídos os atos praticados em relação aos administrados por possuírem a aparência de legalidade.

Quanto à possibilidade de convalidação quando da ocorrência de vício relativo à competência, verifica-se que somente é possível a convalidação no vício de competência com relação à pessoa, desde que não seja competência exclusiva, o que não ocorre quando o vício da competência é com relação à matéria.

2.4.2 Forma

Forma é a maneira pela qual se exterioriza o ato administrativo. Muitos autores, tais como Celso Antônio Bandeira de Mello e Régis Fernandes de Oliveira, ao tratar do tema, preferem denominá-lo formalidade ou formalização. Maria Sylvia Zanella Di Pietro faz a distinção necessária ao apontar que a forma tanto pode ser tomada numa acepção mais restrita, designando o modo pelo qual se dá a exteriorização do ato, como também numa acepção ampla incluindo no conceito não só a maneira como o ato se exterioriza o ato, mas também "todas as formalidades que devem ser observadas durante o processo de formação da vontade". [58]

Odete Medauar considera que a forma "engloba tanto os modos de expressar a decisão em si, quanto a comunicação e as fazes preparatórias, pois todos dizem respeito à exteriorização do ato, independentemente do conteúdo". [59]

Em âmbito de direito administrativo a forma deve vir predeterminada na lei e geralmente deve ser escrita, por dar maior segurança e certeza jurídica aos administrados. Admite-se, no entanto, excepcionalmente, a existência de ordens não escritas tais como a sinalização de trânsito ou ordens verbais de superior ao seu subordinado. Da mesma forma, a Lei 9.784, de 29 de janeiro de 1999, que trata do processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal, disciplina em seu artigo 22: "Os atos do processo administrativo não dependem de forma determinada senão quando a lei expressamente a exigir". Depreende-se disto, portanto, que a forma nem sempre é elemento vinculado.

No entanto, Maria Sylvia Zanella Di Pietro salienta da grande importância que possui a forma no âmbito do direito administrativo:

[...] a obediência à forma (no sentido estrito) e ao procedimento constitui garantia jurídica para o administrado e para a própria Administração; é pelo respeito à forma que se possibilita o controle do ato administrativo, quer pelos seus destinatários, quer pela própria Administração, quer pelos demais Poderes do Estado. [60]

A desobediência à forma exigida em lei para a prática do ato acarreta a invalidade do ato administrativo por ferir garantia dos administrados. No entanto, deve-se avaliar com razoabilidade se o vício em questão é capaz de macular por completo o ato, uma vez que, por vezes, este constitui mera irregularidade perfeitamente sanável e que não acarreta maiores prejuízos à Administração Pública ou aos destinatários daquele ato.

2.4.3 Finalidade

A finalidade é também chamada por Celso Antônio Bandeira de Mello de pressuposto teleológico do ato administrativo. Ela constitui o objetivo que se pretende alcançar com a prática do ato. A maior parte dos doutrinadores considera que o elemento finalidade é sempre vinculado posto que os fins almejados pela prática do ato estão sempre previstos explicitamente ou implicitamente na lei.

É pacífico o entendimento que, em sentido amplo, o fim almejado pela prática de todo ato administrativo é o atendimento a interesse público. Tal acepção é derivada do princípio da impessoalidade consagrado no artigo 37, caput, da Constituição Federal, que veda a concessão de favores a determinado indivíduo, a utilização da máquina administrativa para benefícios de interesses individuais.

Outrossim, cada ato possui uma finalidade específica contida na lei que o concebeu. Ensina-nos Eduardo García de Enterría que:

[...] os poderes administrativos não são abstratos, utilizáveis para qualquer finalidade; são poderes funcionais, outorgados pelo ordenamento em vista de um fim específico, com o quê apartar-se do mesmo obscurece sua fonte de legitimidade. [61]

Em decorrência do que foi dito, a edição de determinado ato visando uma finalidade alheia àquela para qual este foi concebido configura vício do ato administrativo consubstanciado em abuso de poder, na modalidade desvio de poder ou de finalidade.

Celso Antônio Bandeira de Mello aponta duas formas de ocorrência de desvio de poder: "a) quando o agente busca uma finalidade alheia ao interesse público (...); b) quando o agente busca uma finalidade – ainda que de interesse público – alheia à "categoria" do ato que utilizou".

Exemplo clássico apontado na doutrina de desvio de finalidade e de ocorrência bastante comum no dia a dia da Administração Pública é a remoção ex officio de servidor público para outra localidade a título de punição ou perseguição política, quando se sabe que esse tipo de remoção deve se fundamentar na necessidade do serviço público.

2.4.4 Motivo ou Causa

Neste item, cabe tecer algumas considerações sobre diferentes concepções terminológicas adotadas pelos doutrinadores. Alguns consideram motivo e causa sinônimos, já outros preferem estabelecer uma distinção entre ambos.

Para Celso Antônio Bandeira de Mello e Regis Fernandes de Oliveira, motivo é o pressuposto de fato que autoriza a prática do ato enquanto que a causa diz respeito à adequação entre o motivo e o objeto (conteúdo) do ato.

Odete Medauar conceitua motivo como "as circunstâncias de fato e os elementos de direito que provocam e precedem a edição do ato administrativo". [62] Partilha este mesmo entendimento a doutrinadora Maria Sylvia Zanella Di Pietro. Já Celso Antônio Bandeira de Mello distingue motivo do ato de motivo legal, afirmando que o primeiro diz respeito à situação material que serviu de suporte para a prática do ato, enquanto que o segundo é a previsão abstrata da ocorrência de determinada situação fática na lei.

O motivo nem sempre é elemento vinculado do ato, o que quer dizer que a discricionariedade administrativa – ou seja, o exame da oportunidade e conveniência na prática de determinado ato – pode recair sobre o motivo do ato caso a lei não o determine expressamente.

Outra distinção que se faz imprescindível realizar diz respeito ao termo motivação. A motivação é diferente do motivo. A primeira consiste na exposição dos motivos que levaram à prática de determinado ato.

Em se tratando de ato vinculado, isto é, aquele cujos motivos estão previamente previstos em lei, a motivação feita pelo agente que editou o ato é irrelevante. Para verificação da legalidade do ato, basta que se constate que os motivos elencados na legislação de fato ocorreram de foram a autorizar a expedição do ato.

Já no que concerne aos atos administrativos discricionários, os quais a lei não prevê os motivos necessários para sua edição, a motivação do ato permitirá que se verifique se esta se adéqua à realidade, ou seja, ao mundo empírico.

Há uma discussão na doutrina acerca da obrigatoriedade da motivação dos atos administrativos, na qual afirmam alguns autores que esta somente seria obrigatória nos casos de ato vinculado.

No Brasil, quando da elaboração da Constituição de 1988 cogitou-se a introdução do princípio da motivação dos atos administrativos dentre os princípios administrativos positivados. Infelizmente, tal providência não foi acatada.

Maria Sylvia Zanella Di Pietro defende a necessidade de motivação não só dos atos administrativos vinculados como também os discricionários, por entender que esta constitui garantia de legalidade à Administração Pública e aos interessados.

Já Odete Medauar salienta uma crescente tendência a se exigir a motivação dos atos:

Durante muito tempo, vigorou no direito administrativo a regra da não obrigatoriedade de enunciar os motivos do ato, salvo imposição explícita na norma. A partir de meados dos anos 70 essa tendência vem se invertendo, no sentido da predominância da exigência de motivação dos atos administrativos, principalmente daqueles que: restringem o exercício de direitos e atividades; apliquem sanção; imponham sujeições; anulem ou revoguem uma decisão; recusem vantagem ou benefício qualificado como direito; expressem resultado de concursos públicos. [63]

A própria jurisprudência já vêm reconhecendo a necessidade de motivação dos atos administrativos discricionários:

ADMINISTRATIVO - SERVIDOR PÚBLICO - REMOÇÃO - ATO NÃO MOTIVADO - NULIDADE - ART. 8º, INCISO I DA LEI ESTADUAL Nº 5.360/91 - PRERROGATIVA DE INAMOVIBILIDADE - INEXISTÊNCIA - PRECEDENTES – RECURSO PROVIDO.

I - O princípio da motivação possui natureza garantidora quando os atos levados a efeito pela Administração Pública atingem a seara individual dos servidores. Assim, a remoção só pode ser efetuada se motivada em razão de interesse do serviço. Precedentes.

II - O art. 8º, inciso I da Lei Estadual nº 5.360/91 não impede que o servidor por ela regido seja removido. Não se cogita de inconstitucionalidade da expressão "fundamentada em razão do interesse do serviço" nele contida.

III - No caso dos autos, o ato que ordenou as remoções encontra-se desacompanhado do seu motivo justificador. Conseqüentemente, trata-se de ato eivado de nulidade por ausência de motivação, que desatende àquela regra específica que rege os Agentes Fiscais da Fazenda Estadual.

IV - Recurso provido. (STJ, Relator Min. Gilson Dipp, RMS 12856/PB, 5ª Turma, DJ 01 jul. 2004, p. 214)

RECURSO ESPECIAL - MANDADO DE SEGURANÇA - TRANSFERÊNCIA DE SERVIDOR PÚBLICO - ATO DISCRICIONÁRIO - NECESSIDADE DE MOTIVAÇÃO – RECURSO PROVIDO.

1. Independentemente da alegação que se faz acerca de que a transferência do servidor público para localidade mais afastada teve cunho de perseguição, o cerne da questão a ser apreciada nos autos diz respeito ao fato de o ato ter sido praticado sem a devida motivação.

2. Consoante a jurisprudência de vanguarda e a doutrina, praticamente, uníssona, nesse sentido, todos os atos administrativos, mormente os classificados como discricionários, dependem de motivação, como requisito indispensável de validade.

3. O Recorrente não só possui direito líquido e certo de saber o porquê da sua transferência "ex officio", para outra localidade, como a motivação, neste caso, também é matéria de ordem pública, relacionada à própria submissão a controle do ato administrativo pelo Poder Judiciário.

4. Recurso provido. (STJ, Relator Min. Paulo Medina, RMS 15459/MG, 6ª Turma, DJ 16 mai. 2005 p. 417)

Verifica-se, dessa forma, a necessidade cada vez mais crescente de motivação dos atos administrativos, principalmente quando importar tais atos em restrições a direitos dos administrados. Outro fundamento que justificaria a exigência da motivação dos atos administrativos é dada por Celso Antônio Bandeira de Mello ao afirmar que "ao agentes administrativos não são "donos" da coisa pública, mas simples gestores de interesses de toda a coletividade, esta sim, senhora de tais interesses". [64] Dessa forma, o dever de motivação dos atos administrativos, embora não absoluto, é consentâneo à noção de boa administração.

2.4.5 Objeto

De um modo geral a doutrina considera objeto e conteúdo do ato como sinônimos. Objeto do ato seria os efeitos práticos produzidos com a sua edição. Regis Fernandes de Oliveira, levando em consideração o entendimento de Zanobini, estabelece uma diferença entre conteúdo e objeto do ato: conteúdo seria a prescrição do ato, enquanto que o objeto seria a coisa, a atividade, a relação sobre a qual o ato versa. [65]

O objeto deve ser lícito, isto é, deve ser conforme a lei; possível, ou seja, realizável no mundo dos fatos e do direito; moral, posto que de acordo com os princípios éticos e as regras de conduta que norteiam a Administração Pública; e certo, definido em seu conteúdo, destinatário, efeitos, tempo e lugar.

O objeto não sempre constitui elemento vinculado. Nos atos discricionários, seu conteúdo pode ser determinado pelo administrador público segundo critérios de conveniência e oportunidade de acordo com os limites impostos na legislação.

Conclui-se, portando, que dos elementos dos atos administrativos, o motivo e o objeto são aqueles que determinarão se esse ato será ou não discricionário, ou seja, esta será determinável de acordo com a esfera de liberdade conferida ao administrador público na escolha do objeto e na valoração dos motivos.

2.5 Extinção dos Atos Administrativos

O ato administrativo é editado para produzir efeitos jurídicos. Estes, depois de exauridos, acarretam na extinção do ato. Outras vezes, a extinção do ato administrativo se dá pela existência de vícios que o maculam.

Celso Antônio Bandeira de Mello [66] enumera as seguintes hipóteses de extinção do ato administrativo: 1) pelo cumprimento de seus efeitos, que pode se dar pela fluência do prazo pelo qual estes deveriam perdurar, pela execução material do ato, ou pelo implemento de condução resolutiva ou termo final; 2) pelo desaparecimento do sujeito ou objeto da relação, como por exemplo, a morte do sujeito ou a perda do objeto; 3) pela retirada do ato pelo Poder Público, que nesse caso, conforme os motivos pode caracterizar a revogação, quando o ato é retirado pela Administração Pública por razões de conveniência e oportunidade; invalidação, quando o ato esteja em desconformidade com o ordenamento jurídico, a cassação, que ocorre quando o destinatário do ato descumpriu as condições necessárias para permanência do ato, a caducidade, quando norma jurídica posterior torne inadmissível a permanência do ato, pois este passa a ir de encontro ao ordenamento jurídico, e ainda a contraposição ou derrubada que ocorre quando "foi emitido ato, com fundamento em competência diversa da que gerou o ato anterior, mas cujos efeitos são contrapostos aos daquele" [67]; por fim, tem-se a 4) renúncia que é efetuada pelo beneficiário de determinada situação jurídica constituída por ato administrativo.

Para os fins desta monografia, a presente abordagem se restringirá à análise da questão das nulidades do ato administrativo. Desta forma, procurar-se-á elucidar questões relativas à invalidação dos atos administrativos através da revogação e da anulação, bem como as hipóteses em que se permite a convalidação do ato.

Como a Administração Pública se fundamenta no atendimento ao interesse público e na obediência ao ordenamento jurídico vigente, o presente tema se mostra de extrema importância, pois a anulação e a revogação dos atos administrativos constituem instrumentos que possibilitam a concretização desses princípios bem como a salvaguarda dos direitos fundamentais dos administrados.

Trata-se, na verdade, da realização de um verdadeiro controle dos atos administrativos. Este controle é realizado não só no âmbito interno, pela própria Administração Pública, como também externamente através do Judiciário.

A Administração Pública dispõe de ampla possibilidade de realização desse controle: pode não só revogar os atos inconvenientes ou inoportunos, como também pode invalidar atos em desconformidade com a lei e ainda, nos casos em que o interesse público autorize, convalidar atos administrativos eivados de vício. O controle desempenhado pela Administração Pública no que tange os seus atos é pleno como se pode perceber.

A jurisprudência é pacífica nesse sentido. Tal entendimento já foi até mesmo sumulado pelo Supremo Tribunal Federal. A Súmula 346 dispõe que "a Administração Pública pode declarar a nulidade de seus próprios atos", e a Súmula 473 contém entendimento no sentido de que "a Administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornem ilegais, porque deles não se originam direitos, ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial".

Esse controle feito pela Administração Pública independe de provocação. Já o controle efetuado pelo Judiciário dependerá de provocação do interessado, bem como se restringirá à análise da legalidade do ato. Sendo assim, o Judiciário poderá somente anular o ato administrativo viciado, não podendo dispor acerca de sua revogação, pois esta envolve um exame de mérito (oportunidade e conveniência).

2.5.1 Revogação

Segundo conceitua Hely Lopes Meirelles: "Revogação é a supressão de um ato administrativo legítimo e eficaz, realizada pela Administração – e somente por ela – por não mais lhe convir sua existência". [68] A revogação é ato praticado exclusivamente pela Administração Pública, conforme já exposto, pois envolve a análise da conveniência e oportunidade do ato, que não pode ser feita pelo Judiciário, uma vez que este se cinge ao exame da legalidade do mesmo.

O fundamento da revogação é o interesse público. As freqüentes mudanças que ocorrem no dia a dia da Administração Pública podem implicar que um determinado ato praticado com vistas ao atendimento do interesse público não mais esteja apto a atingir este fim. A revogação permitirá, portanto, a adequação a esta nova realidade e contribuirá para uma administração mais dinâmica e eficiente.

É necessário mencionar que somente se pode revogar ato administrativo discricionário, ou seja, cuja prática é facultada pela lei à Administração Pública. É que não cabe à mesma decidir sobre a conveniência ou a oportunidade da prática de ato administrativo vinculado, já que este se encontra totalmente disciplinado em lei. A doutrina, no entanto, aponta a possibilidade de um ato administrativo vinculado vir posteriormente a ser disciplinado em lei como ato discricionário, hipótese em que será possível sua revogação.

Outrossim, também não se pode revogar ato ilegal, estes devem ser anulados. A revogação diz respeito somente a atos administrativos legais. E por esta mesma razão, seus efeitos serão ex nunc, ou seja, devem ser resguardados todos os seus efeitos produzidos até o momento da revogação, posto que resultantes de ato perfeito e legal.

Quanto à competência para revogação dos atos administrativos, de forma geral, tem-se que é competente para revogar determinado ato aquele que também detém a competência para praticá-lo. Já no que tange à possibilidade de um ato praticado por um subordinado ser revogado por seu superior hierárquico, tem-se que é perfeitamente aceitável. No entanto, adverte Odete Medauar que "se a norma conferir à autoridade subordinada competência exclusiva para editar o ato, descaberá à autoridade superior revogá-lo". [69]

Existem ainda certas limitações impostas à faculdade de revogar atos administrativos. Celso Antônio Bandeira de Mello elenca os seguintes atos irrevogáveis: 1) os atos que a lei declare irrevogáveis; 2) os atos já exauridos, ou seja, que já produziram todos os seus efeitos; 3) os atos vinculados; 4) os meros atos administrativos (e.g. certidões, votos), pois seus efeitos derivam somente da lei; 5) os atos de controle; 6) os atos que integram um procedimento, uma vez que, através da sucessiva edição de atos, opera-se a preclusão com relação aos antecedentes; 7) os atos complexos, pois para sua constituição é necessária a conjugação de vontades de distintos órgãos; 8) os atos que geram direitos adquiridos, conforme dispõe a Súmula 473 do STF. [70]

Por fim, cabe ainda fazer uma observação acerca do questionamento levantado por Hely Lopes Meirelles acerca da ocorrência de uma situação em que um ato irrevogável se torne inconveniente ao interesse público. Será possível à Administração Pública revogá-lo em nome do interesse público? Entende aquele autor que sim: "A nosso ver, a situação só poderá ser solucionada pela supressão do ato mediante indenização completa dos prejuízos suportados pelo seu beneficiário". [71] Tal solução encontra fundamento no princípio da supremacia do interesse público o qual deve prevalecer sobre o particular.

2.5.2 Anulação

As nulidades no âmbito do direito administrativo devem receber tratamento diferenciado, não sendo, pois, aplicáveis à matéria os princípios da doutrina civilista. Alguns doutrinadores defendem a tese de que, assim como no Direito Civil, os atos administrativos podem ser divididos em nulos e anuláveis: os primeiros tidos como nulos são aqueles que ofendem norma de ordem pública indisponível, enquanto que os anuláveis seriam aqueles que ofendem normas de interesses privados, portanto disponíveis. Como as normas de direito administrativo são todas fundadas no interesse público e, por isso, indisponíveis, não se pode aplicar, sem limitações, este critério.

Seabra Fagundes distingue os atos administrativos em nulos, anuláveis e irregulares e defende que

A aplicação dos princípios do Direito Privado aos atos administrativos tem de ser aceita, limitadamente, através de uma adaptação inteligente feita pela doutrina, no tocante à sistematização geral, e pela jurisprudência, no que respeita aos casos concretos, de modo a articulá-los com os princípios gerais e especiais do Direito Administrativo. [72]

Desta forma, é preciso ter muita cautela quando da transposição de princípios do direito privado para o direito público.

No que tange à graduação das nulidades, Hely Lopes Meirelles considera sempre nulo o ato eivado de vício, enquanto Celso Antônio Bandeira de Mello propõe a distinção entre atos nulos, anuláveis e inexistentes. Segundo aquele autor, ato inexistente é aquele cujo conteúdo possui um vício de tal gravidade que jamais pode ser objeto de prescrição, uma vez que o ordenamento jurídico expurga sua existência. Cita-se como exemplo aqueles atos cujo objeto seja a prática de algum crime.

Por sua vez, ato nulo é aquele cujo vício é insanável, ou seja, mesmo que a Administração Pública repita a sua prática, o vício persistirá. Já o ato anulável é aquele cujo vício pode ser sanado pela Administração Pública através da convalidação. Esta última, nas palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello "é o suprimento da invalidade de um ato com efeitos retroativos". [73]

A convalidação só poderá ocorrer se o ato vertente não tiver sido impugnado administrativamente ou judicialmente.

Não sendo possível a convalidação do ato, a Administração Pública deverá proceder à anulação do ato eivado de vício. Essa anulação, também chamada por alguns doutrinadores invalidação, "consiste no desfazimento do ato administrativo, por motivo de ilegalidade, efetuada pelo próprio Poder que o editou ou determinada pelo Judiciário". [74]

Em razão do princípio constitucional da inafastabilidade da tutela jurisdicional (artigo 5º, XXXV da Constituição Federal), o Judiciário, quando provocado, poderá analisar a legalidade de ato administrativo e se for o caso, anulá-lo. Já a própria Administração Pública também pode, independentemente de provocação, conhecer da ilegalidade de seu ato e anular seus efeitos. Trata-se do exercício de sua prerrogativa de autotutela. A possibilidade de anulação do ato administrativo fundamenta-se no princípio da legalidade no qual deve a Administração Pública obediência.

No que diz respeito às conseqüências decorrentes da anulação de ato administrativo, esta produz efeitos ex tunc, diferentemente da revogação. Dessa forma, o ato é comprometido desde a sua origem, uma vez que o vício o macula desde o seu surgimento no mundo jurídico.

Com relação a terceiros de boa-fé, entretanto, os efeitos do ato nulo devem ser protegidos pela Administração Pública. Depreende-se disto, portanto, que o efeito ex tunc da anulação somente atinge as partes.

O prazo para promover a anulação do ato administrativo é objeto de controvérsias na doutrina. Uns sustentam que não há prazo para promovê-la. Almiro Couto e Silva [75] defende que o prazo que se deve utilizar para determinar a preclusão ou decadência do direito que tem o Poder Público de invalidar seus próprios atos seja o mesmo previsto para a Ação Popular, ou seja, 5 (cinco) anos.

Já Odete Medauar, ao tratar do assunto, aduz que não há prazo para a Administração Pública anular seus atos quando eivados de vício, fazendo inclusive uma crítica ao entendimento anteriormente exposto:

Limitação temporal ao poder de anular deve estar prevista de modo explícito e não presumido ou deduzido de prazos prescricionais fixados para outros âmbitos. Entendimento diverso traz subjacente incentivo à prática de ilegalidade, ante a possibilidade de ser consolidada pela prescrição. [76]

Este é o posicionamento majoritário da doutrina. No entanto, atualmente, a tendência é de se flexibilizar tal entendimento para, de acordo com a análise de cada caso concreto, determinar a conveniência de se anular determinado ato já consolidado no tempo, ainda que eivado de vício desde sua origem, em nome dos princípios da boa-fé e da segurança jurídica.

Para concluir, cabe ainda esclarecer acerca da obrigatoriedade da Administração Pública, ao verificar a existência de ilegalidade, proceder à anulação do ato. Odete Medauar e Maria Sylvia Zanella Di Pietro defendem que a Administração Pública tem o dever de anular, posto que deve sempre se nortear pelo princípio da legalidade, podendo deixar de fazê-lo, porventura, se for mais proveitoso ao interesse público que o ato persista. Já Hely Lopes Meirelles, ao tratar do assunto, dispõe acerca de uma faculdade que a Administração tem de anular seus atos.

Entende-se que a posição mais razoável é aquela que atenda ao interesse público. Sendo assim, a Administração Pública ao verificar a existência de ilegalidades, deve analisar cada caso em concreto de forma a verificar se a anulação do ato atenderá ao disposto na lei e ao interesse público, ou se acarretará maiores prejuízos, o que justificaria eventual permanência do ato.

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Sobre a autora
Olivia Braz Vieira de Melo

bacharela em Direito em João Pessoa (PB)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MELO, Olivia Braz Vieira. O controle jurisdicional do ato administrativo discricionário à luz do princípio da juridicidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1179, 23 set. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8955. Acesso em: 29 mar. 2024.

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