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O controle jurisdicional do ato administrativo discricionário à luz do princípio da juridicidade

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23/09/2006 às 00:00
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CAPÍTULO IV

O CONTROLE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA PELO JUDICIÁRIO

4.1 Conceito

A necessidade de controle da Administração Pública deriva do sistema constitucional que previu uma série de instrumentos voltados à harmonização da atuação dos órgãos estatais no exercício de suas funções. Trata-se do sistema de freios e contrapesos (checks and balance) que prevê que cada órgão do Poder deverá exercer um controle sobre o outro, para que se evite a ocorrência de abusos e arbitrariedades no exercício das funções.

O controle da Administração Pública constitui garantia aos cidadãos de que os bens públicos sejam devidamente utilizados em consonância com seus fins, bem como de que sejam respeitados seus direitos individuais. Ademais, o exercício do controle se faz imprescindível num Estado Democrático de Direito, já que o administrador público, por gerir interesses alheios, tem como dever primordial o de prestar contas de suas ações e responder por eventuais danos causados à coletividade. Pode-se concluir, portanto, que o controle da Administração Pública constitui garantia de que esta sempre atuará em observância ao ordenamento jurídico.

Maria Sylvia Zanella Di Pietro, seguindo a tendência da concepção de um direito por princípios, conceitua o controle da Administração Pública:

[...] pode-se definir o controle da Administração Pública como o poder de fiscalização e correção que sobre ela exercem os órgãos dos Poderes Judiciário, Legislativo e Executivo, com o objetivo de garantir conformidade de sua atuação com os princípios que lhe são impostos pelo ordenamento jurídico. [112] (grifo nosso)

O controle da Administração Pública poderá ser exercido não só pelos órgãos do Executivo, como também pelo Legislativo, a quem compete, com o auxílio do Tribunal de Contas, a fiscalização de seus atos (artigo 49, inciso X da Constituição Federal), e pelo Judiciário, que atua sempre mediante provocação de algum interessado.

Outrossim, pode-se classificar o controle como interno, quando realizado pelo próprio órgão que editou o ato, ou externo, quando realizado por órgão diverso daquele do qual emanou o ato.

A presente análise do controle da Administração Pública ficará adstrita ao controle realizado pelo Judiciário, foco principal desta monografia. Denomina-se tal controle de jurisdicional, e seu exercício se dá, segundo Seabra Fagundes, "Quando o Poder Judiciário, pela natureza da sua função, é chamado a resolver as situações contenciosas entre a Administração Pública e o indivíduo" [113].

Como o Judiciário não atua de ofício, o exercício do controle jurisdicional só se dará mediante provocação do interessado, que neste caso pode ser qualquer pessoa que tenha sofrido lesão a direito fundamental, podendo valer-se dos instrumentos processuais adequados previstos da Constituição Federal, como é o caso, por exemplo, do mandado de segurança. Poderá ainda ser provocado por qualquer cidadão, na defesa de interesses coletivos, através da ação popular. Ou ainda, também será parte legítima para desencadeá-lo o Ministério Público, posto que é guardião, nos termos do artigo 127 da Constituição Federal, da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.

4.2 Sistemas de Controle Jurisdicional

Existem dois sistemas de jurisdição pertinentes à realização do controle judicial da Administração Pública: o controle realizado por uma jurisdição comum e o controle realizado por uma jurisdição especial.

O controle realizado por uma jurisdição especial é característico do sistema de jurisdição dúplice, no qual existem Tribunais especificamente dotados de competência para apreciar contenciosos em que a Administração Pública seja parte. Esta, portanto, nesse sistema, não se submete à jurisdição comum. Este sistema é típico de países como a França.

Fundamentava-se esse tipo de controle no princípio da separação das funções do Estado, visando impedir que o Judiciário (jurisdição comum) interferisse nos conflitos envolvendo os órgãos administrativos. Esta concepção remonta à Revolução Francesa quando se compelia qualquer forma de intervenção de um poder sobre outro. Atualmente, superada essa problemática, o sistema de dupla jurisdição permanece em vigor, desta vez sob o argumento de necessidade de maior especialização técnica por parte das Cortes quando da resolução de conflitos no âmbito da Administração Pública.

Já o controle exercido no sistema de jurisdição una é aquele no qual a Administração Pública submete-se a uma jurisdição comum. Esse sistema é típico de países anglo-americanos e é também o adotado no Brasil. Seu fundamento no direito pátrio brasileiro, segundo a doutrinadora Maria Sylvia Zanella Di Pietro [114], reside na previsão constitucional contida no artigo 5º, inciso XXXV, segundo a qual a lei não poderá excluir da apreciação do Judiciário lesão ou ameaça a direito.

Os defensores desse sistema argumentam em seu favor que os direitos individuais só podem ser efetivamente garantidos quando a jurisdição possa ser exercida por um órgão autônomo.

4.3 Origens do Controle da Administração Pública pelo Judiciário

A origem do controle da Administração Pública pelo Judiciário é inerente ao aparecimento deste último como órgão independente e autônomo.

Com efeito, conforme já demonstrado, no Estado Absoluto todo o poder estava concentrado nas mãos do Monarca ao qual incumbia, inclusive, o monopólio da justiça. Nesse período não se pode falar em controle da Administração Pública posto que todo ato praticado pelo soberano não sofria quaisquer limitações.

Com o processo de distribuição das funções do Estado, as quais passaram a ser exercidas por diferentes órgãos, verifica-se inicialmente na Inglaterra o surgimento do Legislativo que passa a exercer certo controle sobre os atos praticados pelo Monarca. [115] Todavia, tal controle se revela meramente político, não protegendo os direitos individuais dos súditos.

Posteriormente, durante certo período, o Monarca passou a delegar a administração da justiça para um órgão específico. Entretanto, este órgão não era dotado de independência e autonomia, seus membros podiam ser demitidos pelo soberano sem necessidade de qualquer justificativa. Somente em 1701 que esta prática passa a ser vedada com o Act of settlement. A partir desse momento, com a vedação à livre demissão dos funcionários e a estabilização de competência daquele órgão para administrar a justiça, o Judiciário ganha contornos, conquista autonomia, e passa a exercer seu poder jurisdicional.

Outro importante fator que propiciou o exercício do controle da Administração Pública pelo Judiciário foi a positivação do direito, com o conseqüente surgimento do princípio da legalidade. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1793) que remonta ao período da Revolução Francesa no qual consolidou-se a separação das funções do Estado, provocando a extinção do absolutismo, tem sua importância na medida que permite o reconhecimento de uma série de direitos dos cidadãos contra o Estado. Por sua vez, o Código Napoleônico, datado de 1804, consolidou essa tendência à positivação do direito, acolhida na época como forma de salvaguardar e dar segurança aos direitos do indivíduo. [116]

É nesse momento, pois, que nasce e se desenvolve a idéia da necessidade de controle da Administração Pública pelo Judiciário.

4.4 Limites

O cerne de toda a problemática acerca da realização do controle da Administração Pública pelo Judiciário parece girar em torno dos limites que deve esse controle se pautar.

Retomando aquilo que foi dito quando do exame dos limites pertinentes ao exercício da discricionariedade administrativa, alguns doutrinadores tais como Hely Lopes Meirelles e Seabra Fagundes defendem que a extensão do controle realizado pelo Judiciário deve se restringir ao exame tão somente sob a ótica da legalidade. Para estes administrativistas, é vedado ao Judiciário adentrar na análise do mérito administrativo, sob pena do magistrado substituir o administrador no exercício da sua atividade.

Tais argumentos encontram fundamento no princípio da separação das funções do Estado, segundo o qual cada órgão do Poder deve agir nos limites que lhe são impostos quando da conferência de suas respectivas competências. Visa-se com essa medida evitar, portanto, o chamado "governo de juízes", no qual a atividade administrativa é totalmente controlada por um órgão externo: o Judiciário.

Nesse sentido, acrescenta-se ainda que o Judiciário deverá se limitar, no exercício desse controle, a declarar a legalidade ou não do ato, isto é, se ilegal, decretará sua nulidade, negando-lhe os efeitos.

Esse entendimento, entretanto, vem sofrendo modificações na doutrina que, conforme demonstrado, tem revelado uma tendência à ampliação do exercício do controle da Administração Pública pelo Judiciário a partir da introdução da necessidade de adequação de sua atividade com os princípios positivados no ordenamento jurídico.

Nesse sentido, acerca do tema, Maria Sylvia Zanella Di Pietro assevera que:

O Poder Judiciário pode examinar os atos da Administração Pública, de qualquer natureza, sejam gerais ou individuais, unilaterais ou bilaterais, vinculados ou discricionários, mas sempre sob o aspecto da legalidade e, agora, pela Constituição, também sob o aspecto da moralidade (artigo 5º, inciso LXXIII e 37). [117]

Dessa forma, a citada doutrinadora inclui um novo parâmetro a ser observado no exercício do controle jurisdicional da Administração Pública: a moralidade.

Embora hoje não mais se adéqüem ao novo paradigma de Estado e de Administração Pública, os ensinamentos de Seabra Fagundes são de valiosa importância para compreensão do tema.

Não obstante, não se pode mais considerá-los como totalmente aplicáveis diante das mudanças pelas quais passa o Direito Constitucional e o Direito Administrativo. Também não se pode mais conceber que a Administração Pública, sob a escusa de que se estaria ferindo o princípio da separação das funções do Estado, possa praticar atos discricionários cujo mérito seja totalmente impenetrável.

Num Estado Democrático de Direito, em que todos estão sob o manto da lei, não é concebível que haja total liberdade para que o Administrador Público pratique ato discricionário, sem quaisquer limites no que diz respeito ao seu mérito, ainda mais quando este se encontra em total dissonância com a norma constitucional.

A nova concepção do direito por princípios, bem como a constitucionalização da Administração Pública acarretaram novos contornos ao exercício do controle jurisdicional. Conforme bem salienta J. J. Canotilho,

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Os princípios do Estado de direito (proporcionalidade, não retroatividade, confiança, segurança), e os princípios constitucionais da administração (legalidade, imparcialidade, justiça) forçam a reconstrução do direito administrativo à luz do direito constitucional. [118]

Nesse sentido, concebe-se o princípio da juridicidade como limite ao exercício do controle jurisdicional da Administração Pública. Este último exige que não só os aspectos de legalidade formal, mas também os princípios sejam levados em conta quando da apreciação dos atos administrativos.

O fenômeno da constitucionalização do Direito Administrativo, com o conseqüente enaltecimento da Constituição como Lei Maior de um Estado, de onde as leis inferiores retiram toda sua sustentação, e a ela devem estar em conformidade, resultou numa total submissão da Administração Pública aos preceitos constitucionais. Nesse sentido é a lição de Mauro Roberto Gomes de Mattos:

A vinculação da Administração à realidade constitucional faz com que seus atos sejam vigiados, não como uma forma de intervenção em sua conveniência e nem na respectiva oportunidade, e sim para mantê-la atrelada aos seus instrumentos condicionantes. É o mesmo fenômeno que ocorre quando o Poder Legislativo edita uma lei inconstitucional. Ou seja, quando o Poder Judiciário interpreta a norma e aplica a eficácia da Constituição, na prática ele não extrapola a sua função para transformar-se em legislador. [120]

Desta forma, conclui-se que não há que se falar em mérito administrativo quando há afronta direta a disposição constitucional ou a princípios nela contidos. Este último, embora consista numa determinada esfera de liberdade conferida pela lei ao gestor público, não implica em autorização para que este pratique atos que resultem em desrespeito a direitos individuais, favorecimento de interesses pessoais em detrimento do interesse público, enfim, que desvirtuem totalmente sua finalidade.

Por outro lado, nunca se deve perder de vista a noção de que cada órgão do Poder possui uma área de atuação exclusiva. O controle da discricionariedade deve, pois, ter lugar somente quando ocasionar lesão a direitos individuais. Nos dizeres de Castro Nunes: "a discrição cessa onde começa o direito individual, posto em equação legal". [121] É justamente em decorrência do princípio da inafastabilidade da tutela jurisdicional, já explicitado anteriormente, que se encontra o fundamento para tal afirmação.

Não há também que se afirmar que o controle jurisdicional da discricionariedade administrativa à luz dos princípios estaria indo de encontro à separação das funções do Estado, pois a atividade do magistrado, conforme já dito, restringir-se-á a declarar a invalidade do ato, não competindo ao mesmo dizer qual ato deverá ser praticado pela Administração Pública. Caberá a esta última, levando em conta os limites constantes no ordenamento jurídico, editar novo ato que substitua aquele eivado de vício.

4.5 Controle Principiológico

Seguindo essa mudança no paradigma do controle judicial da Administração Pública, temos que esta passa agora a não mais se restringir a aspectos de legalidade, analisando também, à luz dos princípios, a juridicidade do ato.

Com efeito, a positivação dos princípios que regem a administração no caput do artigo 37 da Constituição Federal permitiu que o Judiciário realizasse não somente um controle de legalidade dos atos administrativos, mas também um controle principiológico da atividade administrativa. Em decorrência disso, abre-se a possibilidade de análise não só dos aspectos vinculados do ato, como também de seus aspectos não-vinculados.

A respeito dos princípios, não é demais ressaltar a sua importância como verdadeiros pilares que dão sustentação ao ordenamento jurídico, informando-o, e servindo de norte para a interpretação das regras jurídicas, de forma que estas últimas devem sempre estar em conformidade com aqueles. É clássica a lição de Celso Antônio Bandeira de Mello acerca da conceituação e da importância dos princípios:

[...] princípio é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para a sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento do princípio que preside a intelecção das diferentes partes componentes do todo unitário que há por nome sistema jurídico positivo. Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra. [122]

Rita Tourinho, por sua vez, salienta o caráter normativo dos princípios aduzindo que estes "não são meras declarações de sentimentos ou intenções ou, ainda, meros postulados de um discurso moral. Em verdade, são normas dotadas de positividade que têm o condão de determinar condutas ou impedir comportamentos com eles incompatíveis". [123]

Diante disso, dada a importância dos princípios para todo o arcabouço jurídico, passar-se-á a examinar como se dá a realização do controle dos atos administrativos discricionários a partir da observância de cada um dos princípios positivados na Carta Magna, bem como, dos princípios gerais de direito pertinentes ao tema: o princípio da razoabilidade e da proporcionalidade.

4.5.1 Princípio da legalidade

O princípio da legalidade, previsto no caput do artigo 37 da Constituição Federal, constitui princípio inerente à atividade administrativa. Na verdade, a Constituição Federal, ao estabelecer no caput do seu artigo 1º que a República Federativa do Brasil se constitui em Estado Democrático de Direito quis submeter todos ao império da Lei. Dessa forma, não só a Administração Pública deve se pautar na lei, mas também todos os outros órgãos dos Poderes, bem como os indivíduos.

Ao particular, entretanto, aplica-se a regra prevista no artigo 5º, inciso II da Carta Magna no sentido de que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.

No cerne da Administração Pública a interpretação deve se dar de forma diversa: todos os seus atos devem estar em consonância com a lei, e agora, considerando a ampliação no conteúdo da legalidade, deve-se contemplá-la no sentido de conformidade com o ordenamento jurídico.

Destaque-se ainda que a atividade administrativa nem sempre está totalmente vinculada à lei, pois, muitas vezes, esta autoriza que o gestor atue com certa margem de liberdade. Destarte, o exercício da competência discricionária deve sempre observar os limites e os fins contidos na regra autorizadora.

4.5.2 Princípio da impessoalidade

A doutrina tem apontado diversos tipos de desdobramentos do princípio da impessoalidade. Reconhece-se uma estreita relação do princípio da impessoalidade com as noções de legalidade, igualdade, finalidade pública, e neutralidade e imparcialidade da Administração Pública.

A aplicação deste princípio permite que se evite a satisfação de interesses estritamente pessoais, a obtenção de vantagens e concessão de benefícios. Assim, o princípio da impessoalidade visa não só promover um tratamento igualitário, como também uma atuação voltada ao interesse público, alheio a qualquer tipo de subjetividade por parte do gestor público.

Desta forma, o princípio da impessoalidade exige que o Administrador Público, ao praticar ato discricionário, na ponderação da conveniência e da oportunidade da sua prática, não vise, com sua conduta, a outro fim senão o atendimento ao interesse público.

Observa-se, outrossim, na legislação pátria a existência de certos instrumentos que permitem a concretização desse princípio no exercício da atividade administrativa, como é o caso da vedação contida no §1º do artigo 37 da Constituição Federal à veiculação de nome, símbolos ou imagens que caracterizem a promoção pessoal do gestor na publicidade de obras, serviços, programas etc; também a exigência de prévia aprovação em concurso público para preenchimento de cargo ou função, bem como a necessidade de realização de prévio procedimento licitatório para compras, contratação de serviços ou obras. Todas essas exigências coadunam-se com o conteúdo do princípio da impessoalidade que exige uma atuação imparcial da Administração Pública com base em critérios objetivos e não subjetivos.

4.5.3 Princípio da moralidade

A elaboração de um conceito que demonstre o alcance do conteúdo do princípio da moralidade constitui tarefa bastante árdua, pois se corre sempre o risco de não conseguir tratar do tema em sua completude. Embora a Constituição Federal tenha elevado tal princípio ao nível constitucional, ela não nos oferece uma definição, motivo pelo qual a doutrina tem tentado suprir esta lacuna.

A dificuldade que se põe, à primeira vista, seria fixar o conteúdo da moral, posto que esta varia de acordo com o tempo e o lugar, ou seja, dependendo da época e da sociedade, os preceitos de moral podem divergir. Deve-se, no entanto, ter sempre em consideração que não se trata de um problema de ordem intrínseca ao indivíduo. A análise da moralidade deve envolver aspectos objetivos sempre tendo em vista cada caso concreto.

Maurice Hauriou foi o primeiro administrativista a se referir à moralidade como um princípio já no início do século XX, associando a mesma à idéia de "boa administração": "no âmbito da Administração Pública as decisões devem atentar à distinção entre o bem e o mal, o lícito e o ilícito, o justo e o injusto, o conveniente e o inconveniente e também entre o honesto e o desonesto". [124]

Germana de Oliveira Moraes, analisando as diversas conceituações do princípio da moralidade trazidas à lume pelos doutrinadores administrativistas, sintetiza-as salientando que "na doutrina brasileira, como já visto, relacionam o conteúdo do princípio ora com a teoria do desvio de poder, ora com a moral interna da Administração, ora com o dever de boa administração, ora com pautas éticas da atuação dos agentes públicos". [125]

Desta forma, a moralidade administrativa relaciona-se não só com os fins da norma jurídica, os quais devem ser atingidos com a prática do ato, como também com os meios empregados para atingir estes fins, que devem ser pautados na ética, na boa-fé, no dever de probidade e de honestidade.

Em consonância com este entendimento, cita-se decisão do Supremo Tribunal Federal reconhecendo a possibilidade de exercício de controle jurisdicional, levando em consideração o aspecto da moralidade do ato administrativo como valor ético-jurídico que deve nortear a Administração Pública:

O PRINCÍPIO DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA - ENQUANTO VALOR CONSTITUCIONAL REVESTIDO DE CARÁTER ÉTICO-JURÍDICO - CONDICIONA A LEGITIMIDADE E A VALIDADE DOS ATOS ESTATAIS. - A atividade estatal, qualquer que seja o domínio institucional de sua incidência, está necessariamente subordinada à observância de parâmetros ético-jurídicos que se refletem na consagração constitucional do princípio da moralidade administrativa. Esse postulado fundamental, que rege a atuação do Poder Público, confere substância e dá expressão a uma pauta de valores éticos sobre os quais se funda a ordem positiva do Estado. O princípio constitucional da moralidade administrativa, ao impor limitações ao exercício do poder estatal, legitima o controle jurisdicional de todos os atos do Poder Público que transgridam os valores éticos que devem pautar o comportamento dos agentes e órgãos governamentais. (STF, Relator Min. Celso de Mello, ADI 2661 / MA, Pleno, DJ 23 ago. 2002)

Outrossim, o Superior Tribunal de Justiça também reconhece a importância do princípio da moralidade no exercício do controle jurisdicional dos atos administrativos, inclusive dos atos administrativos discricionários como é o caso da desapropriação:

ADMINISTRATIVO - ATO ADMINISTRATIVO - MORALIDADE - EXAME PELO JUDICIARIO - ART. 37 DA CF - DESAPROPRIAÇÃO - ART. 20 DO DL 3365/41. É LICITO AO PODER JUDICIARIO EXAMINAR O ATO ADMINISTRATIVO, SOB O ASPECTO DA MORALIDADE E DO DESVIO DE PODER. COM O PRINCIPIO INSCRITO NO ART. 37, A CONSTITUIÇÃO FEDERAL COBRA DO ADMINISTRADOR, ALEM DE UMA CONDUTA LEGAL, COMPORTAMENTO ETICO. O ART. 20 DO DL N. 3365/41 PERMITE QUE, EM AÇÃO DIRETA O PODER JUDICIARIO EXAMINE "QUALQUER QUESTÃO" RELATIVA A DESAPROPRIAÇÃO. (STJ, Relator Min. Humberto Gomes de Barros, REsp 21923 / MG, 1ª Turma, DJ 13 out. 1992, p. 17662)

Dessume-se, portanto, das decisões colacionadas que, com a positivação do princípio da moralidade, elevado ao nível de norma constitucional, exige-se não mais somente uma conduta do gestor público pautada na legalidade, mas também em consonância com valores éticos, morais.

Tratando especificamente dos atos discricionários, pode-se afirmar que é no exercício destes que se praticam mais atos imorais. Sendo assim, o controle jurisdicional com base no princípio da moralidade, não se limitando somente a aspectos de legalidade, permite uma melhor análise do ato, sem que tal atitude do Judiciário importe em invasão da esfera do administrador. Os nossos Tribunais já vêm inclusive demonstrando repúdio aos atos contrários à moralidade administrativa, ainda que discricionários:

MANDADO DE SEGURANÇA. NEPOTISMO. CARGO EM COMISSÃO. IMPOSSIBILIDADE. PRINCÍPIO DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA. Servidora pública da Secretaria de Educação nomeada para cargo em comissão no Tribunal Regional do Trabalho da 16ª Região à época em que o vice-presidente do Tribunal era parente seu. Impossibilidade. A proibição do preenchimento de cargos em comissão por cônjuges e parentes de servidores públicos é medida que homenageia e concretiza o princípio da moralidade administrativa, o qual deve nortear toda a Administração Pública, em qualquer esfera do poder. Mandado de segurança denegado. (STF, Relator Min. Joaquim Barbosa, MS 23780/MA, Pleno, DJ 03 mar. 2006)

A possibilidade de preenchimento de cargo em comissão constitui decisão discricionária do Administrador Público. No entanto, sua utilização para fins de favorecimento pessoal de parentes e afins, caracterizando a figura do nepotismo, é considerado ato contrário à moral administrativa, bem como contrário ao princípio da impessoalidade, devendo este ser anulado pelo Judiciário posto que é tão inválido quanto o ato praticado em desconformidade com a lei.

4.5.4 Princípio da publicidade

O princípio da publicidade encontra seu fundamento no Estado Democrático de Direito. Como o gestor público não é titular dos bens e interesses que administra, deve ele sempre prestar contas de seus atos. O princípio da publicidade, como exige transparência na gestão pública, permite que tais ações possam ser fiscalizadas por toda a sociedade.

Verifica-se no artigo 5º, inciso XXXIII da Constituição Federal o direito à informação consagrado nos seguintes termos:

XXXIII - todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado. [126]

Dessa forma, depreende-se da citada norma constitucional que o direito à informação é a regra, podendo somente ser admitido o sigilo das atividades administrativas quando este seja necessário para garantir a segurança ou até mesmo para preservar a dignidade humana.

Como decorrência do princípio da publicidade dos atos administrativos está o dever do gestor público de motivar suas ações, bem como também se pode citar a necessidade de que as informações prestadas sejam verdadeiras. Nesse sentido, Germana de Oliveira Moraes salienta que: "O princípio da publicidade assegura ao administrado não apenas o direito à informação, à transparência da atuação administrativa, à visibilidade do poder, mas também o direito à informação verdadeira". [127]

Por fim, cabe ressaltar também que o princípio da publicidade, em se tratando de atos discricionários, assume importância ainda maior por permitir que se avalie se efetivamente houve atuação voltada para o atendimento de interesses coletivos.

4.5.5 Princípio da eficiência

O princípio da eficiência foi positivado a partir da Emenda Constitucional nº 19/98 denominada "Emenda da Reforma Administrativa". O conteúdo deste princípio está estritamente relacionado ao dever de "boa administração", à consecução dos resultados mais profícuos. Daí porque se afirmar que, muitas vezes, o campo da discricionariedade se torna reduzido ante o caso concreto, quando se verifica que determinado ato é o mais adequado a gerar os melhores resultados. Nesse sentido, não cabe escolha ao administrador: deverá ele praticar o ato que atenda da melhor forma os interesses da coletividade, sob pena de infringir o princípio da eficiência.

Alexandre de Morais define o princípio da eficiência da seguinte forma:

[...] o princípio da eficiência é o que impõe à administração pública direta e indireta e seus agentes a persecução do bem comum, por meio do exercício de suas competências de forma imparcial, neutra, transparente, participativa, eficaz, sem burocracia e sempre em busca da qualidade, primando pela adoção dos critérios legais e morais necessários para a melhor utilização possível dos recursos públicos, de maneira a evitarem-se desperdícios e garantir-se melhor rentabilidade social. [128]

O princípio da eficiência resulta, pois, de um processo de reforma administrativa, já citado anteriormente, em que se percebe uma mudança no modelo burocrático para o modelo gerencial em que se dá prioridade à busca de melhores resultados em detrimento de formalidades legais que só fazem obstruir a máquina administrativa.

O princípio da eficiência possui também uma face voltada para a economicidade, isto é, a obtenção dos melhores resultados com a redução máxima dos custos. Tal preceito atende às exigências do novo modelo de Estado, o neoliberal, que visa não só a diminuição do Estado, como também a redução dos seus custos.

4.5.6 Princípios da razoabilidade e da proporcionalidade

Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade não se encontram expressamente dispostos no texto constitucional embora tenha sido cogitada a inserção do primeiro quando da elaboração da Carta Magna de 1988. Parte da doutrina, tais como Eros Roberto Grau e Celso Antônio Bandeira de Mello, considera o princípio da razoabilidade como uma vertente do princípio da proporcionalidade.

Tais princípios realmente possuem uma relação muito estreita na medida em que complementam um ao outro. Ambos aduzem à idéia de justiça, apresentando conformidade com a nova realidade que surgiu com o pós-positivismo jurídico, isto é, a necessidade de que as decisões não mais busquem somente a legalidade estrita, mas que procurem atender a outros valores que levem a uma decisão justa e razoável.

Não obstante, é possível estabelecer uma distinção entre ambos princípios. Para Carmem Lúcia Antunes Rocha, uma conduta é razoável quando ela se apóia em razões suficientes, adequadas, justas, enfim, aptas a atingir as finalidades da norma jurídica que lhe dá suporte. [129] Já Odete Medauar concebe o princípio da razoabilidade como "a qualidade dos valores buscados na conduta administrativa para a concretização do interesse público específico" [130], distinguindo-a do princípio da proporcionalidade "que se relaciona com a conformidade entre os meios utilizados e o fim visado pela conduta administrativa". [131]

Infere-se das conceituações acima que o princípio da razoabilidade guarda conformidade com a maneira pela qual devem ser alcançados os fins da norma. Luís Roberto Barroso, a esse respeito, informa que "É razoável o que seja conforme à razão, supondo equilíbrio, moderação e harmonia; o que não seja arbitrário ou caprichoso; o que corresponda ao senso comum, aos valores vigentes em dado momento ou lugar." [132] Trata-se, como se pode perceber, de conceitos cujo conteúdo é bastante amplo, motivo pelo qual se deve avaliar perante o caso concreto a existência ou não de conformidade do ato com o princípio da razoabilidade.

No que diz respeito ao princípio da proporcionalidade há também uma dificuldade de conceituação devido à fluidez da expressão. No entanto, a Lei 9.784/99 no inciso VI do artigo 2º assim concebe o princípio da proporcionalidade: "VI - adequação entre meios e fins, vedada a imposição de obrigações, restrições e sanções em medida superior àquelas estritamente necessárias ao atendimento do interesse público". [133] Deduz-se, portanto, que o princípio da proporcionalidade consiste na adequação das medidas adotadas às finalidades contidas na norma.

Dessa forma, mesmo que a finalidade da norma seja atingida, se o meio utilizado não foi proporcional, o ato poderá ser anulado. O princípio da proporcionalidade é, pois, também meio de se efetuar o controle sobre os atos administrativos discricionários.

Os Tribunais brasileiros vêm reconhecendo a sua importância e aplicando-o às suas decisões:

PERDIMENTO. APREENSÃO DE MERCADORIA ESTRANGEIRA. VEÍCULO TRANSPORTADOR. PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. RECURSO DA FAZENDA NÃO CONHECIDO. Inadmissível a aplicação da pena de perdimento do veículo, quando evidente a desproporção entre o seu valor e o da mercadoria de procedência estrangeira apreendido. (STJ, Relator Min. Hélio Mosimenn, REsp 109.710/PR, 2ª Turma, DJ de 22 abr. 1997)

Tal decisão constitui uma dentre muitas encontradas na jurisprudência brasileira que se baseiam no princípio da proporcionalidade.

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Sobre a autora
Olivia Braz Vieira de Melo

bacharela em Direito em João Pessoa (PB)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MELO, Olivia Braz Vieira. O controle jurisdicional do ato administrativo discricionário à luz do princípio da juridicidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1179, 23 set. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8955. Acesso em: 22 nov. 2024.

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