A decisão de liquidação no processo do trabalho é uma decisão interlocutória ou possui natureza de sentença? A resposta a essa pergunta é de extrema relevância e ganhou ainda mais destaque após a Lei 13.467/2017 (Reforma Trabalhista).
Como se sabe, predomina no processo trabalhista, via de regra, a irrecorribilidade de imediato das decisões interlocutórias, consoante art. 893, §1º da CLT e Súm. 214 do TST. Assim, se se entende que a decisão de liquidação tem natureza interlocutória, contra ela não seria possível interpor, de imediato, recurso. Por outro lado, se possui natureza de sentença, qual seria o recurso adequado para contra ela se insurgir?
O desfecho dessa temática afeta substancialmente o desenrolar do processo trabalhista, em especial a fase subsequente: a execução, por isso é tão importante adotar e consolidar o quanto antes um entendimento definitivo sobre este tema, a fim de uniformizar o procedimento de liquidação em todos os juízos do trabalho distribuídos pelo território brasileiro.
O juiz Otavio Torres Calvet em um brilhante artigo intitulado “Impugnação à liquidação por cálculos, recurso e revogação de artigo da CLT” e publicado no site Consultor Jurídico em 26/01/2021, defendeu que todas as decisões de liquidação proferidas após a Reforma Trabalhista possuem natureza de sentença.
Ele explica que, antes da Reforma, os juízes poderiam escolher dois caminhos na fase de liquidação. O caminho majoritariamente utilizado era aquele mais célere porque não permitia qualquer discussão sobre cálculos antes de iniciada a execução, utilizando-se o antigo art. 879, §2º da CLT que apenas FACULTAVA a abertura de prazo às partes.
O juízo homologava os cálculos apresentados por uma das partes e automaticamente determinava a citação do réu para dar início à fase de execução, só podendo haver impugnação pelas partes após a garantia do juízo; o devedor pelos embargos à execução e o credor pela impugnação, nos termos do art. 884, §3º da CLT. Neste caso, era notória a natureza interlocutória da decisão de liquidação.
No outro caminho, havia a abertura de prazo para manifestação das partes (10 dias sucessivos) sobre os cálculos antes de iniciar a execução, o que levaria a duas situações distintas: a primeira quando ninguém apresentava impugnação, acarretando a preclusão sobre o tema conforme estava expresso na norma, e a segunda, quando a impugnação era apresentada, o que determinava a elaboração de uma decisão judicial sobre impugnação aos cálculos, resolvendo a controvérsia.
Proferida esta decisão de liquidação, a jurisprudência dominante entendia ser possível a interposição de agravo de petição, situando a liquidação na fase de execução lato sensu, embora, a rigor, a liquidação contempla a fase de conhecimento.
Ao admitir discussão na fase de liquidação, o juiz impedia que houvesse nova possibilidade de impugnação aos cálculos após a iniciada a execução, já que decisão judicial, interposto ou não agravo de petição, levaria, ao final, à coisa julgada sobre os cálculos, vedada a rediscussão em execução. Neste segundo caminho, a decisão de liquidação tinha natureza de sentença, impugnável por recurso próprio da fase de execução, o agravo de petição, conforme Calvet.
A Reforma Trabalhista solucionou a indefinição do procedimento de liquidação trabalhista, fixando apenas um único caminho: o segundo, aquele que admite controvérsia sobre os cálculos, antes de iniciada a execução. A nova redação do art. 879, §2º da CLT, trocou a expressão “poderá” por “deverá” e passou a dispor sobre a OBRIGATORIEDADE de abertura de prazo para impugnação aos cálculos pelas partes, no prazo comum de 8 dias, sob pena de preclusão.
Importa dizer então que a decisão de liquidação, pós Reforma, tem natureza de sentença no processo do trabalho, como defendeu Calvet?
Malgrado a magistral tese do ilustre juiz, discorda-se dele apenas quanto à natureza da decisão de liquidação. Diferentemente do que ele sustentou, aqui se procurará demonstrar que a decisão de liquidação, mesmo após a Reforma Trabalhista, é uma decisão interlocutória e contra ela cabe recurso, não obstante as decisões interlocutórias sejam, em regra, irrecorríveis de imediato no processo do trabalho.
Para entender por que a decisão de liquidação é uma decisão interlocutória, em vez de sentença, é imprescindível que primeiro se saiba o que é sentença e o que é decisão interlocutória.
O CPC/15 regulamentou que são três os pronunciamentos do juiz: sentença, decisão interlocutória e despacho. Segundo o artigo 203, §1º do CPC/15, sentença “é o pronunciamento por meio do qual o juiz, com fundamento nos arts. 485 e 487, põe fim à fase cognitiva do procedimento comum, bem como extingue a execução”.
O professor e juiz Fernando Gajardoni leciona que o novo código de processo civil adotou um duplo critério para a definição de sentença. O primeiro é o conteúdo: pronunciamento judicial com fundamento nos arts. 485 e 487 do CPC. E o segundo é o efeito: põe fim à fase de cognição ou de execução.
A partir dessa definição, infere-se que a decisão de liquidação não se encaixa no conceito de sentença adotado pelo CPC/15, eis que não encerra nenhuma fase processual. Para a melhor doutrina, liquidação ainda não é compreendida como uma fase autônoma e distinta das fases de conhecimento e execução, mas corresponde a uma extensão da fase de cognição. Por isso se diz que ela compõe a fase de cognição lato sensu.
A decisão de liquidação não é, portanto, uma sentença, mas uma decisão que complementa a sentença de conhecimento, traduzindo-a em números e fixando um quantum debeatur.
Por outro lado, o artigo 203, §2º do CPC/15 dispõe que “Decisão interlocutória é todo pronunciamento judicial de natureza decisória que não se enquadre no § 1º”. Por exclusão, a decisão de liquidação encaixa-se exatamente nesta definição. Como já visto, ela não é sentença. Descartam-se também os despachos, pois estes não tem conteúdo decisório, são atos de mero expediente, conforme art. 203, §3º. Sobeja, então, a decisão interlocutória e é esta, repita-se, a natureza da decisão de liquidação.
As decisões interlocutórias são proferidas no percurso do processo (ou iter processual), por isso o termo interlocutória, e, como o próprio nome fala por si, carregam conteúdo decisório, pois impõe obrigação, direito, dever ou ônus às partes.
Em regra, elas são simples decisões que não julgam o mérito da causa (meritum causae), mas uma questão incidente e, por este motivo, são irrecorríveis de imediato. Por exemplo, a decisão que acolhe ou rejeita a contradita de testemunha, que defere ou indefere prova pericial, que acolhe ou rejeita suspeição/impedimento do juiz, etc.
Todavia, há decisões interlocutórias que julgam o mérito da causa. Elas possuem toda a aparência de sentença, porque é um pronunciamento judicial com fundamento nos arts. 485 e 487 do CPC/15, porém não são sentença, porque não põem fim a uma fase processual. Por exemplo, os julgamentos antecipados parciais de mérito previstos no art. 356 do CPC/2015.
Contra essas decisões interlocutórias é cabível recurso de imediato, porquanto elas não são simples decisões que julgam apenas uma questão incidente, mas efetivamente decisões de mérito. Pela lógica processual não faria o menor sentido que as partes não pudessem recorrer imediatamente dessas decisões interlocutórias se elas julgam o mérito da causa, ainda que parcial, e são capazes de fazer coisa julgada formal e material.
Esse entendimento foi positivado no art. 356, §5º e art. 1.015, caput e II, do CPC/15 na medida em que a decisão que julga antecipada e parcialmente o mérito é impugnável por agravo de instrumento.
Nesse contexto, decisão de liquidação também é uma decisão interlocutória de mérito, em vez de uma decisão interlocutória simples, posto que estabelece o que as partes mais querem saber, o valor devido pelo executado ao exequente. Embora não julgue propriamente o mérito da causa, a decisão de liquidação complementa-o, conferindo-lhe liquidez.
Prova disso é que o CPC/15 consignou que “Também caberá agravo de instrumento contra decisões interlocutórias proferidas na fase de liquidação de sentença”.
Igual raciocínio se aplica à decisão interlocutória que resolve o incidente de desconsideração da personalidade jurídica (IDPJ). Ela também não é uma decisão interlocutória simples, pois, embora não julgue o mérito da causa, com ele intimamente se relaciona, vez que estenderá ou não os efeitos de seu julgamento aos sócios da empresa ré.
Tanto é que o art. 1.015, IV, do CPC/15 também autorizou a interposição de agravo de instrumento contra as decisões interlocutórias que versarem sobre incidente de desconsideração da personalidade jurídica.
No que diz respeito ao processo do trabalho, as decisões de liquidação, tal qual no processo cível, são decisões interlocutórias de mérito recorríveis de imediato. Perceba que a CLT, conforme art. 855-A, aplica expressamente ao processo do trabalho o IDPJ previsto no CPC/15, reconhece que a decisão do IDPJ é interlocutória e, quando proferida na fase de execução, recorrível de imediato por agravo de petição.
Por óbvio, quando a parte postula a desconsideração da personalidade jurídica por ação, na petição inicial (fase de cognição), este pedido, pela sistemática trabalhista, será apreciado na sentença e contra ela caberá recurso ordinário. Entretanto, quando o exequente instaura o incidente em fase de execução, prescinde que o interessado aguarde sofrer alguma constrição em seu patrimônio para poder recorrer da decisão interlocutória que defere a desconsideração da personalidade jurídica; contra ela é possível opor, de imediato, agravo de petição.
Por sua vez, razão não há para entender, no processo do trabalho, a decisão de liquidação de forma diversa da decisão do IDPJ, se ambas são decisões interlocutórias que apresentam um “que” a mais em relação àquelas simples decisões e, apesar de não julgarem diretamente o mérito da causa, relacionam-se com ele.
Motivo razoável também não há para impedir as partes de recorrem imediatamente da decisão de liquidação, para só poderem se insurgir contra os cálculos após iniciada a execução em eventual impugnação. A marcha processual determina que se dê início ao cumprimento de sentença, após se obter um crédito líquido, certo e exigível, tal qual na execução de título executivo extrajudicial, ao invés de iniciar a fase de execução de sentença, cujo valor ainda está indefinido, para depois retroceder o passo e discutir novamente matéria relativa aos cálculos de liquidação.
Tal situação esbarra na lógica, celeridade, eficiência e duração razoável do processo, afinal, qual seria o propósito de abrir discussão na fase de liquidação, se as partes poderão discutir tudo novamente na fase de execução?
Assim, por uma interpretação sistêmica e teleológica da legislação processual, é possível chegar a ilação de que a decisão de liquidação no processo do trabalho possui natureza de decisão interlocutória de mérito e é recorrível de imediato.
Entendimento em sentido reverso está a provocar uma situação inusitada e esdrúxula na Justiça do Trabalho, aquilo que o ilustre Otavio Torres Calvet chamou de impugnação “antipreclusiva”, equivalente aos “protestos”, e dupla apreciação das mesmas matérias pelo mesmo juízo.
O atual art. 879, §2º da CLT regulamenta que o juízo deverá abrir às partes prazo comum de oito dias para impugnação fundamentada com a indicação dos itens e valores objeto da discordância, sob pena de preclusão. Nesses termos, as partes apresentam impugnação aos cálculos tão somente para afastar a preclusão. O juiz, por seu turno, aprecia as impugnações e profere uma decisão de liquidação, contra a qual as partes nada opõem por concluírem, equivocadamente, que é uma decisão interlocutória irrecorrível de imediato, por força do art. 893, §1º da CLT.
Somente em sede de embargos às execução, as partes repetem os argumentos de suas impugnações, para conduzir a decisão de liquidação a um duplo grau de jurisdição, obrigando, todavia, o mesmo juízo a decidir novamente as mesmas matérias anteriormente já decididas, o qual poderá inclusive alterar sua primeira decisão, causando extrema insegurança jurídica.
Frise-se, que é vedado ao juiz, por expressa previsão legislativa, ex vi do art. 505 do CPC, decidir matéria já decidida anteriormente, ressalvadas as hipóteses legais de erros materiais, embargos de declaração e juízo de retratação.
Desta forma, parece que a intenção do legislador trabalhista foi clara ao admitir, agora obrigatoriamente, a controvérsia sobre os cálculos antes de iniciar a fase de execução: resolver todas as questões de fato e de direito da fase de liquidação, para dar início a uma execução livre de pendências e concentrar todos os esforços na atividade satisfativa da tutela jurisdicional.
Superada a natureza da decisão de liquidação, resta analisar qual o recurso cabível contra ela no processo do trabalho.
Em sentido contrário à doutrina, o legislador trabalhista alocou a liquidação na fase de execução lato sensu (Título X, Capítulo V, Seção I). Esta opção em nada muda a natureza da decisão de liquidação e parece, de fato, ter sido a melhor opção para o processo do trabalho, pois se assim não fosse não haveria previsão legislativa de recurso que pudesse ser oposto contra a decisão de liquidação. É que o recurso da fase de cognição é o ordinário, interposto contra as sentenças.
Lado outro, inserindo a liquidação na fase de execução, é possível recorrer de imediato da decisão de liquidação, visto que há previsão legislativa de recurso contra decisões (sentido amplo) proferidas nas execuções. Este recurso o é o agravo de petição, nos moldes do art. 897, a, da CLT.
Ante a fundamentação supra, conclui-se que a decisão de liquidação no processo do trabalho é uma decisão interlocutória de mérito, recorrível de imediato por agravo de petição, compreendendo a fase de liquidação alocada dentro da execução lato sensu.
Quanto ao procedimento da liquidação, o legislador fixou apenas um após a Reforma Trabalhista. Nesse procedimento, há necessariamente abertura de prazo para as partes impugnarem os cálculos, sob pena de preclusão.
Apresentadas ou não impugnações pelas partes, o juízo prolatará uma decisão de liquidação, acolhendo ou rejeitando os cálculos das partes ou homologando os próprios cálculos elaborados pelo contador judicial.
Contra esta decisão de liquidação poderá ser interposto agravo de petição, a ser julgado pelo Tribunal, cuja decisão definitiva de liquidação fará coisa julgada, pois, como visto, é decisão de mérito.
Finda essa fase de liquidação com a fixação de um quantum debeatur líquido, certo e exigível, o processo encontra-se apto para iniciar a fase subsequente: a execução.