1.Limitações às taxas de juros praticadas já nos acompanham desde há muito. [01]
A Lei nº 3.071/16 (CC/16, art. 1063) não estipulou propriamente um teto para a cobrança de juros, dissertando apenas sobre a taxa de juros a ser aplicada por força de lei – juros legais reais – e regras supletivas, a serem aplicadas no silêncio das partes. Já a Lei nº 10.406/02 (CC/02, art. 406) limitou-se a regular os juros de mora, nada mencionando quanto aos juros remuneratórios, os juros reais. [02]
O Decreto nº 22.626/33 (Lei de Usura) determinava que não poderiam ser cobrados juros, incluindo-se comissões (art. 2º), em taxas superiores ao dobro legal (art. 1º, caput). Inicialmente este artigo era completado por dois parágrafos (posteriormente revogados pelo Decreto-Lei nº 182/38), onde estabelecia-se um teto de 10% ao ano para os contratos garantidos com hipoteca urbana, de 8% se garantido por hipoteca rural ou penhor agrícola, e de 6% para financiamento de trabalhos agrícolas, ou para compra de equipamentos destinados à agricultura, desde que tenham garantia real. Um terceiro parágrafo previa que a taxa de juros deveria ser estipulada por escrito, prevalecendo no silêncio a taxa de 6% ao ano, a contar da data da propositura da respectiva ação ou do protesto cambial. [03] Porém, a realidade (hiper)inflacionária de anos passados levou ao seu desuso pelos tribunais, que reduziram seu âmbito de aplicabilidade a situações extremas, [04] sob pena de inviabilizar o exercício das atividades econômicas; a rigidez de suas disposições mostrou-se incompatível com a dinâmica realidade sócio-econômica.
As Constituições de 1934 [05], 1937 [06] e 1946 [07] previam proibição à prática de usura, remetendo limitações à legislação ordinária. Sobre esses textos, assim se manifestou Pontes de Miranda:
Não importa a forma sob que se estipulem os juros, nem só os juros são susceptíveis de serem proibidos. Ao §138, 2ª alínea, do Código Civil alemão, de onde se tiraram o art. 152, 2ª alínea, da Constituição alemã e o art. 117, par. ún., da nossa Constituição de 1934, as conseqüências que se atribuem são as seguintes, e hão de ser, necessàriamente, as nossas, a partir de 16 de julho de 1934: é nulo todo negócio jurídico que tenha caráter de usura, trata-se de empréstimo ou de outro acto jurídico, v.g., venda, aluguer; nula também a garantia real, ligada ao negócio jurídico eivado de usura; a própria promessa é nula se implica usura; ainda os negócios em que a prestação é in natura são nulos; todo o enriquecimento indevido, que resultar de negócio jurídico, é usura; o que se pagar por indemnização do dano acima dos juros legais é usura; é nulo o próprio contrato de sociedade cujo fim é a usura; a nulidade do negócio jurídico em que há usura pode ser alegada por terceiro; todo o negócio jurídico é nulo, e não só a parte em que há usura, no que a letra de 1934 permite que a penalidade se diferencie do que se aponta no Decreto do Governo provisório; o usurário não pode alegar usura – Turpitudinem suam allegans non auditur.
¿Pensariam todos os legisladores constituintes de 1934 em tais conseqüências dos textos? Não. Não pensaram eles concretamente, nisso; e por-certo pretendiam que esse parágrafo único, como tantos outros preceitos da Constituição, ficasse letra morta. Mas verdade é que está inscrito nela, deve ser aplicado, e as leis ordinárias teem de observar o art. 113, 1. Usura não é só percepção de juros; e temos assim, ressurecta, sob outra forma, a læsio enormis.
(...)
A Constituïção proïbiu, mediante o art. 17, par. ún., a usura. Não a proïbiu de acôrdo com a lei – proibïu-a. O que tem de ser fixado por lei é a taxa máxima, é penalidade. Tal lei sôbre usura tem de ser igual para todos. Os juros actuais de 3% e 4% ao mês que cobram as casas de penhores são abertamente inconstitucionais. Os empréstimos a funcionários públicos a 18% ao ano também o são. Lei pode admitir diferentes taxas quando a diferença resulta de pressuposto, v.g., imóveis rurais, imóveis urbanos, dívidas garantidas e dívidas não-garantidas.
É preciso atender-se a que o art. 117, par. ún., existe na Constituïção de 1934, e não existia na de 1891. O que antes era constitucional passou a ser inconstitucional. Ainda mais: o art. 117, par. ún., pois que já existe lei de usura, encontrou conceito de usura, que tem de ser observado até que outra lei o substitua. Mas o art. 117, par. ún., teria de ser aplicado ainda que tal lei não existisse, o Poder Judiciário ficaria com a faculdade de suprir a lei, conforme ordena o art. 113, 37, 2ª parte. Aliás, existindo ela, como é o caso, tal há de ser seu procedimento nos casos omissos. O aluguer acima de x pode ser reputado usurário e reduzido. Se a lei ainda não fixou o valor de x, pode a justiça usar do conceito de usura, apreciando as circunstâncias de lugar e de tempo, porque o art. 117, par. ún., é self-executing, self enforcing. A pena criminal depende de lei, de modo que a parte final do parágrafo único não é self-executing: a usura é proïbida (penalidade civil, sanções de redução e de nulidade, conforme os princípios); mas a pena (no sentido estrito, que é o de pena criminal) depende de lei. Aliás, no caso Davis versus Burke, a Côrte Suprema dos Estados Unidos da América cogitou da existência de regras executáveis por si-mesmas até onde realmente o sejam. O art. 117, par. ún., é um caso de regra self-executing, ‘so far as it is susceptible of execution’. [08]
Resta saber-se se, tendo a Constituição de 1946, à diferença da Constituição de 1934, dito que a usura será punida, sem dizer que é proibida, é possível punir-se sem se proibir. Seria contra os princípios interpretar-se o texto constitucional, que manda punir, como permissivo: A Constituição fez ilícita a usura; as sanções penais (verbis punidas) ficam à legislação ordinária. As sanções quanto ao ato jurídico resultam da lei, a que somente fica a alternativa: considerar nulo todo o ato, sem qualquer restituïção, ou considerá-lo nulo e regular-se o pagamento do que não constituiu usura, se separável. [09]
Inovando em matéria constitucional, o constituinte de 1987-1988 fez introduzir no texto do art. 192, §3º a infame limitação de cobrança de juros em 12% ao ano, repetindo a fórmula rígida da Lei de Usura, sendo fadada ao mesmo inevitável destino, o que se confirmou com a aprovação, por decreto (mais tarde contestado por meio de ADIn), pelo Governo Federal, do Parecer Normativo SR nº 70, de 06/10/88 (DOU de 7/10/1988, p. 19.675 e segs.), do Consultor-Geral da República, Dr. Saulo Ramos, onde se defendeu eficácia limitada do referido parágrafo, não-aplicável sem lei regulamentadora, e onde se buscou definir o conceito de juros reais de modo a esvaziar o comando constitucional. [10]
Com a edição da Emenda Constitucional nº 40/03 [11], suprimiram-se todos os incisos e parágrafos do art. 192, dando-se-lhe nova redação ao caput. [12] Assim, cessou a existência da limitação constitucional da taxa de juros cobrados, ficando superado o debate sobre a eficácia daquela norma, remetendo-se o assunto à legislação infraconstitucional.
2.No direito comparado temos notícia de que somente a Finlândia impõe limite constitucional à taxa de juros.
Já em nível infraconstitucional, a limitação das taxas de juros chega a ser lugar comum. Fazem-no Portugal, Itália, Suécia, Dinamarca, 39 estados dos Estados Unidos, alguns estados da Alemanha, bem como outros países europeus. [13]
3.Instituições financeiras, na definição de José Afonso [14], "são pessoas jurídicas públicas ou privadas que tenham como atividade principal ou acessória a coleta, intermediação ou aplicação de recursos financeiros próprios ou de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira, e a custódia de valores de propriedade de terceiros". Nos termos do art. 3º, §2º, do CDC, resta evidente que todas estas atividades se enquadram no conceito daquelas sujeitas à legislação de proteção do consumidor. [15]
A ordem econômica, "fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social" (CF 170, caput), e segundo prevê a norma constitucional, o sistema financeiro nacional, deve ser regulado (norma de organização, e não de conduta) por lei complementar, valendo como tal, pelo princípio da recepção, a Lei nº 4595/64 [16], devendo ter como escopo "promover o desenvolvimento equilibrado do País" e "servir aos interesses da coletividade" (CF 192, primeira parte).
Temos então como valores preponderantes a valorização do trabalho, a justiça social, o desenvolvimento, e a função social.
A noção de desenvolvimento envolve necessariamente uma idéia qualitativa, distinta de crescimento, que envolve noção quantitativa. Segundo Eros Grau, o desenvolvimento supõe não apenas crescimento econômico, mas sobretudo elevação do nível cultural-intelectual da sociedade e um processo ativo de mudança social. [17]
Já a justiça social está centrada na presunção de uma melhoria da repartição do produzido como conseqüência da sua realização, compreendendo bem-estar geral da comunidade. [18]
Tal como os demais institutos regulados pela Constituição Federal, também as instituições financeiras devem atender a uma função social. [19] Tal norma visa a reprimir o capitalismo oitocentista, onde se busca ilimitadamente o lucro máximo, sem maiores considerações éticas. [20]
Neste sentido, a redação original do art. 192, em seu §3º, estatuía que as taxas de juros reais, aí inclusas comissões e quaisquer outras remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão do crédito, não poderiam ser superiores a 12% ao ano, sendo seu desrespeito considerado crime de usura (lei 1521/51, art. 4º, a, que substituiu o Decreto-lei nº 869/38, art. 4º, a). [21]
Muito embora a redação do referido dispositivo ensejasse sua aplicação imediata [22], o STF pacificou o entendimento de que a limitação de juros dependia de edição da lei complementar prevista no caput do artigo (ADIn nº 4, julgada em 07/03/1991; Súmula 648, de 24/09/2003) [23]. Inobstante, enquanto esteve vigente o parágrafo, a doutrina de forma maciça, ainda que longe da unanimidade, defendeu a sua aplicabilidade imediata, visto se tratar de norma autônoma, não subordinada ao caput. [24]
(...) não se pode imaginar (...) que os princípios constitucionais sejam apenas princípios políticos. Há que se eliminar do vocabulário jurídico a expressão "carta política", porque suscita uma perigosa leitura que acaba por relegar a Constituição a um programa longínquo de ação (...). [25]
O STF compreendia que as instituições, públicas ou privadas, integrantes do Sistema Financeiro Nacional não estavam sujeitas às disposições do Decreto nº 22.626/33, mas sim à Lei nº 4595/64, que delegava ao Conselho Monetário Nacional o controle das taxas de juros (art. 4º, VI, IX e XVII) [26], o que passou a ser de constitucionalidade duvidosa sob a égide da Constituição de 1988 (ADCT 25, caput e I c.c CF 22, I e VI, e 48, XIII c.c 68, §1º c.c 192), sendo, no entanto, referendada pelo Judiciário (REsp 183229/MG e 178374/MG).
Nas palavras de Marçal Justen Fº. [27]: "A atividade econômica brasileira pode ser retratada como espécie de ‘fronteira sem lei’, onde prevalece a lei do (economicamente) mais forte. A pretexto de valer-se da autonomia contratual, as empresas dotadas de maior poder econômico impõem condições negociais que melhor lhes interessam". Na seqüência de sua crítica à omissão da legislação infraconstitucional, o insigne professor paranaense ainda lembra que desde a edição da Lei nº 4728/68 entende-se que as instituições financeiras e os contratos bancários não se sujeitam às regras gerais e às limitações estabelecidas para os contratos ditos "comuns", que todos os plano econômicos excepcionaram os contratos bancários, e que os juros reais praticados no Brasil não encontram paralelo no mundo.
Assim, na prática, as taxas de juros foram liberadas [28] conforme a vontade do "mercado", avalizada pelo próprio Governo Federal e as políticas econômicas adotadas ao longo dos anos. [29] Tal situação levava, invariavelmente, qualquer demanda reclamando os altos índices das taxas de juros a ser barrada pela falácia da liberdade de contratar e pela máxima liberalista do pacta sunt servanda. [30]
Além da prática livre de taxas de juros, tornou-se praxe a cumulação de diversos valores diversos, que, na prática, não passam de remuneração do capital cobradas de forma mal-disfarçada, o que levou os tribunais, de forma surpreendente (?!), a obstar práticas tais como anatocismo e cumulação de taxas de permanência com correção monetária, etc.. Uma luta inglória, pois inobstante as diversas derrotas judiciais, as instituições financeiras seguem cobrando esses valores ilegais.
Com a sedimentação da legislação consumerista alguns posicionamentos favoráveis ao consumidor foram adotados pelos tribunais, tais como a aplicação da teoria da imprevisão e da alteração da base contratual; verdadeiras vitórias de Pirro.
Mas, por mais que o Judiciário venha coibindo certos abusos por parte das instituições financeira, de pouco, ou nada, adianta enquanto pender sobre a cabeça do consumidor a espada pesada e afiada dos juros livres.
4.A leitura da Constituição que ainda se sobrepõe parece decorrer de uma visão que pode ser melhor compreendida através de uma abordagem sociológica do Direito. A Constituição não passava de um "protocolo de intenções". Por decênios (séculos, na verdade), a sociedade se viu refém de uma leitura tacanha dos preceitos legais e constitucionais feita pelos Poderes estatais. Buscava-se, e hoje em grande parte ainda se busca, tão somente a manutenção do status quo obtido pela elite econômica; valoriza-se de forma exacerbada a forma, os meios, em prejuízo do fim a ser alcançado. Essa situação levou o nosso país a sofrer atraso social de décadas em relação a outras partes do globo.
Por muito mais de uma vez foram necessárias duas, três, quatro reformas vultosas na legislação – quando muitas vezes nenhuma era necessária, bastando uma nova leitura dos dispositivos já existentes – para que se alcançasse na prática uma simples alteração de visão. A Constituição – e, bem da verdade, qualquer texto que visasse à garantia de direitos fundamentais e a exaltar valores sociais – não era vista pelos detentores do Poder como mais do que uma folha de papel em descompasso com seus interesses, para utilizar a expressão de Ferdinand Lassale.
Um esforço hercúleo ainda se faz necessário para expurgar o ranço individualista do liberalismo de nosso sistema, para que finalmente o bem público deixe de ser tratado como privado, e para que o bem privado deixe de visar tão somente à obtenção de objetivos egoísticos, passando a atender uma função social.
Encontramos um excelente histórico desse nosso passado constitucional na obra de Luís Roberto Barroso, O direito constitucional e a efetividade de suas normas. Lá ele relata de forma precisa os antecedentes históricos da efetividade constitucional, bem como a mudança de visão que paulatinamente vem se impondo após a edição do texto constitucional de 1988. No trecho que transcrevemos abaixo o autor assim resume a realidade a que nos referimos:
A experiência política e constitucional do Brasil, da independência até 1988, é a melancólica história do desencontro de um país com sua gente e com seu destino. Quase dois séculos de ilegitimidade renitente do poder, de falta de efetividade das múltiplas Constituições e de uma infindável sucessão de violações da legalidade constitucional. Um acúmulo de gerações perdidas.
A ilegitimidade ancestral materializou-se na dominação de uma elite de visão estreita, patrimonialista, que jamais teve um projeto de país para toda a gente. Viciada pelos privilégios e pela apropriação privada do espaço público, produziu uma sociedade com deficit de educação, de saúde, de saneamento, de habitação, de oportunidade de vida digna. Uma legião imensa de pessoas sem acesso à alimentação adequada, ao consumo e à civilização, em um país rico, uma das maiores economias do mundo.
A falta de efetividade das sucessivas Constituições brasileiras decorreu do não reconhecimento de força normativa aos seus textos e da falta de vontade política de dar-lhes aplicabilidade direta e imediata. Prevaleceu entre nós a tradição européia da primeira metade do século, que via a Lei Fundamental como mera ordenação de programas de ação, convocações ao legislador ordinário e aos poderes públicos em geral. Daí por que as Cartas brasileiras sempre se deixaram inflacionar por promessas de atuação e pretensos direitos que jamais se consumaram na prática. Uma história marcada pela insinceridade e pela frustração.
O desrespeito à legalidade constitucional acompanhou a evolução política brasileira como uma maldição, desde que D. Pedro I dissolveu a primeira Assembléia Constituinte. Das rebeliões ao longo da regência ao golpe republicano, tudo sempre prenunciou um enredo acidentado, onde a força bruta diversas vezes se impôs sobre o Direito. Foi assim com Floriano Peixoto, com o golpe do Estado Novo, com o golpe militar, com o impedimento de Pedro Aleixo, com os Atos Institucionais. Intolerância, imaturidade e insensibilidade social derrotando a Constituição.
Um país que não dava certo. [31]
Esta "efetividade efetiva" das normas constitucionais que se busca, cada vez mais evidente nos últimos anos, leva a uma nova leitura das normas infraconstitucionais, no que pode finalmente vir a ser uma aplicação plena da estrutura hierárquica das normas proposta por Kelsen, onde a norma inferior somente é válida na medida em que observa os limites formais e, principalmente, materiais estatuídos por aquela que lhe é superior.
5.O disposto no art. 5º, XXIII, da CF ("a propriedade atenderá a sua função social"), não pode ser lido como referente unicamente à propriedade imobiliária, mas a todo e qualquer tipo de propriedade, inclusive, e sobretudo, os bens de produção e o capital; [32] a leitura do art. 170, III, também da CF, só faz reforçar este posicionamento.
O Estado tem como papel dentro da ordem econômica (CF 170) a preservação e promoção dos princípios de funcionamento (soberania nacional, função social da propriedade, livre iniciativa, defesa do consumidor, defesa do meio ambiente), e a implementação de programas para a realização dos princípios-fins (redução das desigualdades regionais e sociais, busca do pleno emprego, tratamento favorecido às empresas de pequeno porte), aqueles endereçados sobretudo à atividade privada e estes determinantes da política econômica estatal [33]- [34] como instrumentos para a realização da existência digna da pessoa humana, objetivo último do Estado (art. 1º e 3º, da CF).
Nestes termos, é lícito concluir, como o faz José Afonso [35], que a liberdade de iniciativa só se legitima quando voltada à efetiva consecução desses fundamentos, fins e valores da ordem econômica.
A Constituição, ao estatuir os objetivos da República Federativa do Brasil, no art. 3º, I, estabelece, entre outros fins, a construção de uma sociedade livre justa e solidária. Ainda no mesmo art. 3º, no inciso III, há uma outra finalidade a ser atingida, que completa e melhor define a anterior: a erradicação da pobreza e da marginalização social e a redução das desigualdades sociais e regionais. Tais objetos foram destacados, no Texto Constitucional, no Título I, denominado "Dos Princípios fundamentais" e, como tal, a sua essencialidade – qualidade do que é essencial ou fundamental – faz com que desfrutem de preeminência, seja na realização pelos Poderes Públicos e demais destinatários do ditado constitucional, seja na tarefa de interpretá-los e, à luz, interpretar todo o ordenamento jurídico nacional.
Assim é que os incisos do art. 3º conclamam os Poderes a uma atuação promocional, através da concepção de justiça distributiva, voltada para a igualdade substancial (...). Não há espaço, no projeto constitucional, para a exclusão; mas também não há lugar para a resignação submissa, para a passiva aceitação da enorme massa de destituídos com que (mal) convivemos. De acordo com o que estabelece o texto da Lei Maior, a configuração do nosso Estado Democrático de Direito tem por fundamentos a dignidade humana, a igualdade substancial e a solidariedade social, e determina, como sua meta prioritária, a correção das desigualdades sociais e regionais, com o propósito de reduzir os desequilíbrios entre as regiões do País, buscando melhorar a qualidade de vida de todos os seus cidadãos. [36]
A ordem econômica delineada na Constituição prevê medidas e princípios que "poderão sistematizar o campo das atividades criadoras e lucrativas e reduzir desigualdades e anomalias diversas, na proporção em que as leis se converterem em instrumentos reais de correção das contradições de interesses privados" [37].
Neste sentido, é paradigmática a decisão do STJ, de onde se extrai trecho do voto a seguir transcrito:
(...). Não há como negar a importância do setor financeiro para o desenvolvimento de qualquer país. Contudo, algumas distorções e desvirtuamentos existentes no sistema contribuem em sentido contrário, ou seja, desestimulam os potenciais empreendedores do setor produtivo. Basta ver as agruras por que passam os micros e pequenos empresários, às voltas com os surreais encargos que oneram o financiamento de suas atividades. É sintomático o resultado do balanço geral que apurou o lucro líquido do setor no ano de 2001. O Itaú (R$ 2,38 bilhões), primeiro do ranking, sozinho, lucrou mais do que a AmBev (R$ 784,6 milhões), a Souza Cruz (R$ 634 milhões), a Gerdau (R$ 464 milhões) e a Votorantim (375 milhões) juntas. E estamos falando de quatro das maiores empresas não-financeiras que operam no Brasil (fonte: Bancos, ABM Consulting e Economática). O spread elevadíssimo, a flutuação dos juros e do câmbio garantiram os recordes de lucratividade verificados nos últimos anos. Um estudo feito com base nos balanços de 28 bancos mostra que, de 2000 para 2001 (dezembro a dezembro), o ganho dessas entidades passou de R$ 6,912 bilhões para R$ 9,485 bilhões, revelando um aumento de 37,2% (fonte: ABM Consulting). Não se trata de criticar o lucro em si, mas o desvirtuamento de um sistema que privilegia o capital em detrimento da produção, com a colaboração em certo momento, embora involuntária, é bom que se diga, do próprio Poder Judiciário. Nos idos da década de 70, o Poder Judiciário, sensível a uma conjuntura econômica caracterizada pelas altas taxas de inflação e pela impossibilidade de se aplicar um mecanismo de correção monetária, reconhecia que às instituições financeiras era facultado praticar taxas de juros superiores aos 12% anuais, previstos na legislação civil, entendimento que perdurou mesmo após a Constituição em vigor, que estipulou em 12% os juros máximos a serem cobrados pelas instituições financeiras. A realidade atual, porém, é bem diferente. Desde a implementação do chamado Plano Real, em julho de 1994, os indicadores revelam que a inflação tem permanecido sob relativo controle, variando pouco em torno dos 5% anuais, com tendência de redução. Esse contexto, aliado à legitimidade da utilização de índices de correção monetária, impõe uma maior ponderação quanto à aplicação da Súmula 596 do STF. Hoje, os bancos sentem-se muito à vontade para cobrar juros remuneratórios a taxas mensais que superam, em muitos casos, o dobro da inflação anual, sobre débitos corrigidos monetariamente, adotando, por inércia, procedimentos que lhes são altamente convenientes, vigentes na época da inflação exacerbada. Argumentam que praticam taxas de mercado. Mas que mercado? Nos Estados Unidos, existem cerca de 14 mil bancos e a taxa de juros média não chega a 6% ao ano. No Brasil, em 1997, tínhamos 206 bancos, em 2002 temos aproximadamente 180, com um predomínio quase absoluto dos 10 maiores, que detinham, em 2000, 76,70% dos depósitos, caminhando para 85% nos próximos anos (fonte: Austin Asis). O Código de Defesa do Consumidor, por meio dos arts. 6º, inc. V, 39, inc. V, 51, inc. IV e 52, possibilita que o Judiciário defina regras de eqüidade para implantar ou restabelecer o equilíbrio na relação dos bancos com os seus clientes quando estes se sintam em desvantagem exagerada. Não há lugar para o sofisma que as instituições costumam apresentar quando questionadas perante o Poder Judiciário, segundo o qual, se os juros não estão limitados é permitido cobrar qualquer taxa. No caso em tela, o documento de fls. 63-64, trazidos aos autos pelo recorrente, dá conta da cobrança de juros à taxa mensal que varia de 9,90% a 13,58%, incidente sobre os valores postos à disposição do cliente em sua conta corrente, a partir de agosto de 1996, quando já vigorava e surtia efeitos o plano de estabilização do Governo Federal. Não há, nesse caso, uma vantagem exagerada? Há. E contra tal fato é muito difícil divisar a plausibilidade de qualquer argumento.
Nula a cláusula relativa aos juros, à vista do art. 51, IV, do Código de Defesa do Consumidor, impunha-se a sua revisão com vistas a corrigir o desvio, diante do art. 6º, V, daquele mesmo Código, segundo o qual constitui direito básico do consumidor: "a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas". Se no passado coube ao Judiciário, diante de certas circunstâncias, dizer que os juros bancários não se sujeitavam ao limite imposto pela Lei de Usura, agora, diante de outra realidade, deve enfrentar novamente a questão para coibir os abusos que vêm sendo cometidos. E pode perfeitamente fazê-lo, valendo-se das disposições do Código de Defesa do Consumidor. Não se trata simplesmente de afastar a cláusula abusiva e deixar o contrato desfalcado. É o caso de restabelecer o equilíbrio do pacto com base em critérios e parâmetros os mais justos possíveis, reconhecendo que escapa à razoabilidade impor o limite anual de 12% para os juros remuneratórios, sem levar em conta os fatores que, de modo geral, inevitavelmente influenciam a economia. A busca dessa eqüidade recomenda que aquele limite dê lugar a outro, relacionado com as taxas de mercado, sem representar perda excessiva para o credor ou onerosidade para o devedor. Apresenta-se adequada para esse fim que se toma em consideração a taxa básica Selic, ditada pelo Banco Central do Brasil, fixada hoje em 18,50% ao ano, que garante ao banco a mesma remuneração dos títulos do Governo. Representa a menor taxa da economia, pois o governo, entre todos os agentes, é o que apresenta menos risco. Como referida taxa traduz risco mínimo, afigura-se-me razoável, salvo prova pericial em contrário do encargo da entidade financeira (que, no caso, não foi produzida), estipulá-la para hipóteses como a presente, no valor da Selic mais 6%, o que corresponde, hoje, a 24,5% ao ano. Não se pretende com esse entendimento que o Judiciário passe a fixar taxas de juros. Não. Isso é tarefa do mercado. Todavia, sendo aquelas taxas abusivas e, portanto, violadoras do direito da parte, não pode este Poder, diante do caso concreto, por força de lei, deixar de estipulá-las, pela aplicação da regra de eqüidade, a fim de coibir o abuso e fazer prevalecer aquilo que é de justiça. É o que, na espécie, se procura fazer, esperando-se que o legislador, as entidades governamentais fiscalizadoras e as instituições financeiras possam encontrar mecanismos mais transparentes e eficientes para evitar a cobrança de juros abusivos, especialmente no que se refere aos requisitos essenciais à formação da respectiva taxa (custo de captação espread). Ante o exposto, conheço do recurso especial e dou-lhe parcial provimento para afastar a limitação dos juros remuneratórios em 12% anuais, fixando-os, entretanto, com base no art. 6.º, V, do CDC, no percentual correspondente à taxa básica Selic, acrescido de 6% ao ano, e manter os juros moratórios em 1% ao mês, conforme o pactuado. (...). [38]
Oras, a Constituição Federal estabelece, no art. 170, que a Ordem Econômica é fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tendo por fim assegurar a todos uma existência digna, conforme os ditames da justiça social, definida, em apertada síntese, como a busca do bem comum; estas são condições que se impõem à atividade econômica, que deverá obrigatoriamente observá-los como norte. [39]
Por outro lado, as taxas de juros praticadas no País são extorsivas, servindo unicamente para aumentar os lucros daqueles que possuem poder econômico e empobrecendo a força do trabalho e do capital produtivo. "Juros elevados são ótima forma de permanecer o quadro de miséria, fome e desnutrição que assola o Brasil. Terça parte de nossa população integra a miséria nacional; dois milhões de meninas, de dez até quinze anos, estão entregues à prática da prostituição; ‘dos 66 milhões de menores brasileiros – dos que têm menos de dezoito anos – 45 milhões aniquilam-se em condições infra-humanas; 25 milhões vivem em condições de alto risco; 15 milhões são de estropiados pela desnutrição, enquanto 12 milhões vivem em total abandono’ (levantamento da UNICEF, notificado por Franklin de Oliveira, em revista Senhor, 11.8.87, p. 81)". [40] De lá para cá não houve sinais de melhor, pelo contrário, os números se mostram cada vez mais alarmantes.
Não se pode pensar em superar a crise econômica através de truculenta intensificação de sanções, através da prisão do devedor, de sua criminalização ou de cláusulas leoninas. É preciso assegurar o crédito e estimular a economia sem sacrifício do projeto constitucional, que tem na pessoa humana o seu valor mais elevado. Daí por que não ser facultado ao intérprete desdenhar princípios maiores do ordenamento em face de situações emergenciais.
O direito, nesse específico sentido, deve resistir, não arrefecendo em seu papel promocional e transformador, inscrito na Carta de 1988. Se fosse consentido enunciar um único princípio basilar, que possa servir de leitmotiv para os operadores do direito, poder-se-ia indicar a funcionalização da atividade econômica, regulada no art. 170 da CF, aos objetivos da República, situados em posto de destaque no texto maior, a permear todo o ordenamento constitucional e infraconstitucional com intensa força normativa. Dentre tais objetivos norteadores, situa-se o da dignidade da pessoa humana e o da erradicação das diferenças sociais, culturais e regionais (art. 3º, III, CF), enunciador de uma nova ordem sistematizante. [41]
Os que mais sofrem com as taxas de juros elevados não são os ricos, que, normalmente, têm posse para poupar, auferir juros elevados e depois consumir à vista. Já os mais pobres, que não têm renda suficiente para comprar à vista, sujeitando-se à obtenção de crédito, com juros reais extremamente elevados, que são então transferidos para os mais ricos que, na outra ponta, estão a emprestar dinheiro aos Bancos e demais entidades financeiras. [42]
Assim, se o entendimento do Judiciário, que, apesar dos pontos de resistência, não tende a se alterar tão cedo, é de que não há restrição legal à prática de juros pelas instituições financeiras, que costumam variar entre 5 e 20% ao mês na concessão de crédito para pessoa física (i.e., raramente menos de 100%, e freqüentemente mais de 150% ao ano – fonte: www.bcb.gov.br) – o que na prática chega a caracterizar verdadeiro abuso de direito – a conclusão necessária a que se chega é de que uma regulamentação deve ser criada urgentemente. [43] E por mais breve que venha, já chegará com atraso.
Os malefícios das taxas elevadas e descontroladas são há muito conhecidas. Trazemos aqui alguns dessas desvantagens enunciadas por Antonio Barros de Castro e Francisco Eduardo Pires de Souza:
1º) introduz clima de instabilidade que dificulta a retomada dos investimentos e a consolidação do crescimento’; 2º) ‘a elevada remuneração oferecida pelas aplicações financeiras atua como um fator de dissuasão de novas iniciativas e empreendimentos’; 3º) ‘a manutenção de uma elevada remuneração no mercado de dinheiro, ao oferecer um atraente refúgio para os capitais, torna mais provável a desistência diante de quaisquer dificuldades. Por outro lado, a existência de uma fácil e bem remunerada alternativa de aplicação dá aos proprietários de capital um grande poder de pressão sobre os trabalhadores e sobre o próprio Governo. Cria, em outras palavras, a possibilidade de um ‘fuga interna’ de capitais’; 4º) ‘a existência de uma elevadíssima taxa de juros faz com que os movimentos de valorização e desvalorização de ativos, associados a mudanças nas taxas de juros, promovam enormes ganhos e perdas. Frente a isto, a remuneração corrente do capital produtivo e das iniciativas empresariais perdem importância relativa. A conseqüência última deste fato é o reforço da componente especulativa nas decisões econômicas. Mais uma vez, estamos diante de um fenômeno prejudicial à consolidação do crescimento. O dano aqui se traduz no surgimento de um situação altamente instável’; 5º) ‘o encarecimento do capital de giro em conseqüência da elevação dos juros acarreta a necessidade de se operar com estoques mínimos. Este fenômeno, ao enrijecer a oferta a curto prazo, introduz mais um componente de instabilidade no sistema. Referimo-nos ao fato de que elevações não antecipadas da demanda tenderão a acarretar altas intempestivas de preços, em decorrência da quase inexistência do colchão amortecedor formado pelos estoques. Concluem os economistas que ‘é importante lembrar que os grandes surtos de investimento que permitiram autênticos saltos da economia brasileira tiveram por base condições de financiamento excepcionalmente favoráveis. Ainda quando este tipo de mutação da estrutura econômica não mais venha a ocorrer, há que sublinhar que o retorno a elevadas taxas de investimento requererá o restabelecimento dos juros baixos como parâmetro de uma economia em que o crescimento volte a ser a normalidade’. [44]
6.Por tudo exposto, temos que a regulamentação do tema, criando-se um marco legal para a cobrança de juros no sistema financeiro é imperiosa como meio de concreção dos princípios constitucionais dirigentes da atividade estatal, sobretudo a preservação da dignidade humana, a redução das desigualdades regionais e sociais, a busca do pleno emprego, e a defesa do consumidor; permitir-se-á, assim, o atendimento da tão exaltada função social do contrato. [45]
O primado do direito não significa mais um princípio estático da manutenção do ‘status quo’, mas sim a mola propulsora do bem-estar social, de caráter eminentemente dinâmico, visando estabelecer condições econômicas, sociais e culturais, que permitam ao indivíduo e ao Estado estabelecer condições econômicas, sociais e culturais, que permitam ao indivíduo e ao Estado a realização de suas mais legítimas aspirações e assegurem o respeito à dignidade humana. [46]
Destarte, entendemos ser necessária a elaboração de um marco legal para as taxas de juros cobradas no Sistema Financeiro Nacional, de forma a não restar dúvidas quanto à sua aplicabilidade.
Ainda, seria de cautela, ainda que desnecessário, ou até mesmo não recomendável, dar definição legal ao conceito de juros reais, sem deixar de fazer referência às remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão de crédito e às despesas correspondentes à sua administração, e sobre a simulação ou prática tendente a ocultar a verdadeira taxa dos juros, para o fim de sujeitar o devedor a maiores prestações ou encargos (art. 13, da Lei de Usura). Deverão também ser estabelecidos parâmetros para a fixação do limite máximo das taxas de juros, de modo a permitir sua flexibilidade conforme as necessidades da economia, sem que, do outro lado, penalize-se de forma indigna o consumidor, de forma a permitir o estabelecimento de um verdadeiro equilíbrio contratual entre as partes, um equilíbrio material, e não meramente formal. [47]
Como linha guia dos parâmetros a serem eventualmente adotados, temos a lição de Tércio Sampaio [48], que nos ensina que a intervenção estatal na ordem econômica – a limitação da taxa de juros é forma de intervenção por direção [49] –, deve ser pautada pelos princípios de "proibição de excesso", "proporcionalidade", e "exigibilidade"; por este último, o Poder Público assume determinadas finalidades como exigências maiores do interesse coletivo inerentes ao Estado Social e as estabelece como constantes, em função das quais variam os meios; isto é balanceado pela proporcionalidade, que nos obriga a ver fins e meios como variáveis mutuamente dependentes e adequadas umas à outras; ambos têm caráter meramente formal, que exige novo temperamento, dado pela proibição de excesso, caracterizado pela demonstração do interesse público e pelo equilíbrio na equação meio-fim, toda vez que uma medida venha a limitar uma liberdade constitucional, que é a livre iniciativa.
Abandonado o modelo liberal em favor do welfare state [50], o Estado não é mais responsável apenas pela realização de ordem, segurança e paz, passa também a cumprir papel de ordenador do processo econômico, devendo prover a realização da justiça social e desenvolvimento, condicionando e direcionando a atividade econômica. [51]
À guisa de conclusão, fazemos nossa a indagação de Jansen Fialho:
É justo, lícito, o consumidor pagar 10%, 12% ao mês, por empréstimo, enquanto o mesmo banco remunera seus aplicadores e poupadores, também consumidores, em média, em 1% ao mês? É justo ao consumidor pagar, por mês, taxas de juros acima da própria inflação anual do País, sob o argumento de manter o Sistema Financeiro Nacional, a governabilidade, ou cumprir metas do FMI?
É justo o trabalhador, ora consumidor, pagar juros estratosféricos para tais instituições, dentre elas, frisem-se as do próprio Governo, quando o Poder Executivo Federal fixa o salário mínimo em R$ 240,00 e o aumento linear do servidor público federal na ordem de 1%, bem como enquanto os juros internos chegam ao patamar de 200% ao ano, sem contar a correção monetária e demais "encargos financeiros"?. [52]