Capa da publicação O uso da força no direito internacional: da guerra justa à Sociedade das Nações
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O uso da força no direito internacional:

da doutrina da guerra justa à Sociedade das Nações

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06/05/2021 às 15:30
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Reflexões sobre a trajetória de limitação do uso da força nas relações internacionais, à luz da construção da doutrina de guerra justa até a criação da Sociedade das Nações, após a Primeira Guerra Mundial.

1. Introdução[1]

Neste artigo, o objetivo do autor é reconstituir a trajetória de limitação do uso da força nas relações internacionais. Analisar-se-á o processo de construção da doutrina de guerra justa até a criação da Sociedade das Nações, após a Primeira Guerra Mundial. Na percepção do autor, o largo período analisado contém os elementos centrais que constituem o direito internacional contemporâneo, inclusive no que concerne à criação de seu núcleo central de normas jus cogens.


2. Surgimento, ascensão e declínio da doutrina da guerra justa

O desenvolvimento do direito internacional, imprescindível para o funcionamento da sociedade internacional contemporânea, determinou, ao longo de vários séculos, a progressiva limitação do uso da força no relacionamento entre Estados. Nesse processo, a classificação das guerras, com base no conceito ocidental de justiça, consistiu na primeira forma clara de restrição jurídica do uso da força (bellum justum ou jus ad bellum)[2]. Com fulcro em taxonomia dual, doutrinadores - os quais foram, em grande parte, influenciados pelo direito canônico e pelos princípios do jusnaturalismo – determinaram as condições nas quais o conflito armado poderia ser considerado legítimo (justo) ou ilegítimo (injusto).

A doutrina da guerra justa que predominou no ocidente é diretamente derivada da tradição judaico-cristã, que, após o abandono de crenças politeístas pagãs pelo Império Romano, disseminou-se pela Europa. Durante a Idade Média, pensadores católicos, adeptos da Patrística e da Escolástica, cujos maiores representantes são, respectivamente, Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, influenciados pela filosofia neoplatônica e aristotélica, discorreram sobre o conceito de guerra justa em termos religiosos[3], baseados nas ideias de ordem divinamente estabelecida e de leis celestiais (lex aeterna), universalmente aplicáveis aos homens em sua manifestação temporal (lex naturalis). Para o cumprimento dessas leis e para manutenção dessa ordem, seria admissível o recurso à guerra, a qual seria caracterizada como sanção aplicável à ilicitude religiosamente definida[4]. Conforme os defensores dessa doutrina, principalmente de acordo com a filosofia de São Tomás, o elemento subjetivo (animus beligerandi) dos adversários era fundamental para que se pudesse discernir a presença ou a ausência da justiça no ato de guerra[5]. Nota-se que, nesse período, entre o fim do Império Romano e a ascensão do Estado moderno, momento caracterizado pela atomização do poder e pela proliferação de entidades políticas não soberanas, prevalecia entendimento de que o ato legal (conforme as leis divinas) era, ao mesmo tempo, legítimo e justo.[6]

O julgamento da possibilidade de uso da força com fundamento em preceitos espirituais é predominante até o advento das guerras religiosas, motivadas pela reforma protestante, que afetou violentamente a civilização europeia. O conflito no âmago da cristandade dificultava a legitimação religiosa da guerra, pois os valores cristãos, por serem compartilhados pelas partes em contenda, não forneciam critérios razoáveis para distinguir entre o ato de força justo daquele ato de agressão injusta. Embora essas dificuldades tivessem sido evidenciadas na obra de Francisco de Vitória e de Francisco Suarez[7], autores que problematizaram e que desenvolveram alguns aspectos sobre a noção de guerra justa, Hugo Grócio, no início do século XVII, é o principal jurista que antecipa essas alterações reais e ideacionais acerca do problema da guerra.

Grócio, a despeito de ser considerado autor que sistematizou o pensamento jurídico laico, expressa, na verdade, o momento de transição entre duas ordens internacionais e, por consequência, entre duas fases do regramento jurídico da força no âmbito internacional. Ele trabalha com aspectos temporais (consuetudinários), mas, não abandona, por completo, premissas religiosas na construção de sua doutrina jusnaturalista do direito internacional[8], uma vez que a razão, da qual derivaria o direito natural, seria, em última instância, criação divina[9]. Por exemplo, sob inspiração dos princípios do direito civil romano, mas sem negar influência do jusnaturalismo religioso precedente, o jurista holandês considerava legítima a guerra feita para enfrentar o esbulho ou a turbação de posse sob domínio de um Estado. Este, portanto, em virtude do direito natural (e, por isso, divino) à propriedade, estaria legalmente autorizado a retomar, por meios coercitivos, seu bem usurpado por outro Estado. Esse raciocínio, por sua vez, expressa ideias rudimentares acerca da soberania territorial,[10] cuja proteção seria o mais importante casus belli, bem como evidencia pensamento jurídico de transição entre fase religiosa e fase laica do direito das gentes.


3. A guerra como instrumento de equilíbrio de poder

Após a Paz de Vestefália, resultante da Guerra dos Trinta Anos, conflito em que se consolidou a ideia laica de soberania territorial, e principalmente durante os séculos 18 e 19, a guerra passa a ser entendida como um fenômeno natural nas relações entre Estados soberanos e, portanto, inerente à política internacional. O juízo moral e religioso do período anterior, que, de certa maneira, impunha restrições à prática da guerra, é atenuado nesse momento. Um dos ofícios precípuos do estadista, por sua vez, passa a ser planejar, preparar e executar a guerra como se fosse uma simples política pública, com a finalidade de consolidar e de expandir sua soberania territorial. Os interesses do Estado, no âmbito internacional, poderiam, dessa forma, ser satisfeitos, basicamente, de duas formas distintas: mediante a negociação ou por meio do uso da força, simbolizados, na obra de Aron, pelo diplomata e pelo soldado[11]. Embora subsistisse a noção de guerra justa, esta era, na maior parte dos casos, completamente encoberta por considerações políticas. A causa primária das Guerras Napoleônicas, por exemplo, foi constituída por aspectos eminentemente ideológicos, decorrentes da disseminação compulsória do pensamento liberal francês. As alianças militares formadas contra a França revolucionária e a nova ordem instaurada após o Congresso de Viena, por sua vez, foram determinadas pelas noções políticas de equilíbrio de poder e de legitimidade pré-revolucionária dos governos.

Essa concepção da guerra como instrumento da soberania estatal e como garantidora do equilíbrio de poder acarreta a expansão do conceito de jus ad bellum, que passa a conter aspectos pragmáticos relativos à manutenção da estabilidade do sistema internacional. Se, anteriormente, determinava-se o direito de guerrear por meio de juízos religiosos e morais, nos séculos XVIII e XIX, se identifica a prerrogativa estatal de ir à guerra diante do perigo de ascensão do Estado mais poderoso, que, potencialmente, tem capacidade de anular a soberania dos Estados menores. Dessa forma, a manutenção do sistema internacional multipolar, no qual nenhum dos Estados (e.g. França napoleônica), individualmente, é capaz de dominar o conjunto dos outros (desde que se aliassem), seria causa suficiente para o uso da força[12]. A guerra, por sua vez, torna-se, nesse período, instrumento aceitável de exercício da soberania[13] e de manutenção do sistema[14].

Nessa realidade internacional dos séculos 18 e 19, enquanto o jus ad bellum tornava-se mais amplo, o jus in bello, o direito aplicável durante os conflitos, era restrito àquelas normas direcionadas aos Estados (e.g. regras sobre neutralidade), sem preocupações diretas com o ser humano. As guerras do período eram feitas, em sua maior parte, sem a participação ativa da população (embora, no caso da França revolucionária, esse aspecto começasse a se alterar, em razão das políticas de massificação do exército[15]), o que limitava os males causados aos civis, se tomados como referência os padrões do século 20[16]. A proibição de conflitos armados interestatais, decorrente da valoração negativa atribuída consensualmente à guerra, por isso, ocorrerá, de forma clara, apenas no século 20[17].


4. A Primeira Guerra Mundial e as malogradas tentativas de limitação do uso da força

A Primeira Guerra Mundial, com quase vinte milhões de mortos, entre combatentes e civis, foi desfecho fatídico, decorrente, em grande medida, do jogo de equilíbrio entre as potências europeias. O período posterior ao evento catastrófico foi relativamente importante para desenvolvimento do direito internacional no que concerne à regulamentação da guerra. Apesar de ter sido precedida por conferências de paz e por convenções de direito humanitário[18], o conflito mundial seria o fato determinante para o surgimento de novo enfoque para a guerra na ordem jurídica internacional. A elevada quantidade de mortos e de feridos, a proporção inaudita de destruição e o sofrimento indescritível dos civis impeliram a sociedade internacional a criar, na forma segura de jus scriptum, limites mais rígidos ao uso internacional da força. Dois foram os instrumentos convencionais que resultaram dessa nova percepção acerca da guerra: o Pacto da Sociedade das Nações (1919) e o tratado de renúncia à guerra (Pacto Kellog-Briand ou Pacto de Paris, 1928).

O Pacto da Sociedade (ou Liga) das Nações[19], contido na parte inicial do Tratado de Versalhes[20] e inspirado no último dos catorze pontos propostos pelo presidente Woodrow Wilson[21], político influenciado pelo pensamento kantiano[22], objetivou a criação de organismo multilateral que promovesse a paz em sentido amplo (art. 11)[23], por meio do desarmamento (art. 8.º)[24] e da cooperação entre as nações na solução pacífica dos conflitos. Essa proposta, embora não implicasse a proscrição das guerras, facilitaria a abstenção do uso da força como forma de resolver conflitos internacionais. Previam-se, ao lado disso, etapas sequenciadas que deveriam preceder qualquer ato efetivo de hostilidade armada. Esta, no entanto, continuava ato juridicamente lícito (ainda que secundário)[25], desde que se seguisse o mencionado procedimento de solução amistosa e desde que observado o prazo de três meses para início das hostilidades, contados após decisão de órgão jurisdicional (judicial ou arbitral) ou de relatório do Conselho da Sociedade das Nações (art. 12)[26]. O projeto de cerceamento ao uso da força no âmbito internacional era, portanto, evidente no texto do Pacto, embora, em razão do frágil entendimento entre as nações[27] - evidenciado nos graves dissensos entre os vencedores, durante as reuniões plenárias da Conferência de Paris -, fosse iniciativa limitada e fadada ao fracasso em futuro próximo.

A despeito de seu insucesso, deve-se destacar os aspectos positivos do Pacto da Sociedade das Nações, uma vez que este constituía tentativa original de mitigar, de maneira justa e segura, a ausência de co-responsabilidade e de governança do sistema de Estados[28]. A Sociedade das Nações, organização concebida pelo Pacto, era expressão jurídica, ainda que precária, de ordem internacional fundada em previsibilidade legal e na mitigação das diferenças materiais entre os Estados, as quais haviam predominado, durante os séculos anteriores, nas políticas de equilíbrio de poder prevalecentes na Europa e, em razão do colonialismo, estendidas para todo o mundo. Havia, de fato, no início dos trabalhos em Paris, provavelmente como resultado da eficiência retórica pacifista do Presidente norte-americano[29], a incauta e disseminada expectativa de que os Estados, a partir de então, submeter-se-iam às regras e aos princípios fomentadores da paz, os quais eram previstos no Pacto e seriam fiscalizados pela vindoura Sociedade das Nações. Esta, por sua vez, na qualidade de organização pacifista, teria a imperfeita competência jurídica e o pleno poder moral para dirimir, de forma não violenta, as contendas mais graves entre os Estados, atributos que seriam supostamente suficientes para coibir eventos bélicos de proporções catastróficas.

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Na sistemática acordada no Pacto, havia previsão de órgãos e de instâncias que, por meio do concerto político (art. 15)[30], da arbitragem (art. 13)[31] e da aplicação imparcial das normas internacionais (art. 14)[32], resolveriam as disputas entre os países, antes da eclosão de conflitos armados. A longa e minuciosa processualística de solução amistosa e o decurso do prazo de três meses seriam, por sua vez, embora de natureza pro forma, recursos institucionais importantes para arrefecer os ânimos exaltados e para, ao cabo, dissuadir as partes de optarem pela guerra. O Conselho, órgão principal da Sociedade, deveria, em tese, agrupar as principais potências da época (art. 4.º)[33], a fim de, coletivamente, mediante entendimento político, impedir ou remediar as situações de possíveis rupturas da paz internacional. No Pacto, portanto, previa-se um sistema constituído de mecanismos legais e políticos que dissuadiria as partes a recorrerem à solução armada de suas diferenças[34].

O outro instrumento legal formulado após a Primeira Guerra Mundial foi Pacto de Paris ou Pacto Kellog-Briand[35], que era, concomitantemente, menos complexo e mais peremptório do que o Pacto da Sociedade das Nações, no que se refere à limitação da guerra, ainda que, na interpretação de alguns estadistas, sua aplicação fosse indefinida quanto às partes e obscura quanto à obrigatoriedade[36]. Esse tratado - cuja denominação decorre dos nomes de seus propositores, Aristide Briand e Frank B. Kellog, respectivamente, ministro das relações exteriores da França e Secretário de Estado dos EUA - foi concebido na fase áurea do interregno entre as guerras mundiais, mais especificamente em 1928, nos anos derradeiros, portanto, do decênio caracterizado por relativo crescimento econômico mundial e por algum otimismo, principalmente nos EUA. O momento histórico, que contrastaria, fortemente, com os anos seguintes, posteriores à crise de 1929, explica, em parte, a ingenuidade subjacente ao Pacto Kellog-Briand, cujos formuladores almejavam coibir o recurso à guerra mediante simples criação de regras proibitivas diretas.

A despeito da pueril credulidade de suas disposições, o Pacto Kellog-Briand deve ser considerado marco importante no direito internacional. Seu conteúdo, materializado em tratado multilateral composto por apenas três artigos, vedava, por completo, o recurso à guerra como forma de solução de controvérsias internacionais (art. 1.º e 2.º)[37]. No seu texto, embora excessivamente lacônico e simplista, vislumbra-se a consolidação de sensível mudança na mentalidade coletiva, acerca do fenômeno da guerra. Esta, diferentemente do que entendiam os estadistas do século 19, não deveria mais ser usada como instrumento legítimo de execução da política externa de um país, conforme consta no preâmbulo do Pacto: "persuadidos de que chegou o momento de proceder a uma franca renúncia à guerra como instrumento de política nacional"[38]. Em seguida, por meio de seus dois dispositivos, o texto do Pacto se encerra prematuramente, declarando a ilegalidade da guerra. A asserção preliminar e os artigos subsequentes indicam que, para certa parcela do imaginário coletivo, expressão do pensamento acusado, posteriormente, idealismo irresponsável [39], havia-se transcendido a concepção de guerra vigente até aquele momento, a qual foi sintetizada por Clawsevitz, sob influência das guerras napoleônicas: “a guerra como continuação da política por outros meios”. O Pacto de 1928, portanto, posto que evidentemente limitado, é indício do repúdio incipiente, pelo menos no âmbito das ideias, à normalidade da guerra nas relações entre os povos.

Ambos os instrumentos jurídicos - o tratado constitutivo da Sociedade das Nações e Pacto Kellog-Briand -, a despeito das louváveis intenções de seus idealizadores, não foram suficientes para evitar a eclosão da Segunda Guerra Mundial, conflito cujo grau de destruição, em termos absolutos, foi único na história da humanidade. O Tratado de Versalhes, que havia sido imposto aos alemães ao término do conflito, por conter disposições extremamente duras acerca de reparações de guerra[40], fomentou o revanchismo germânico, o desassossego francês e britânico e, por isso, impossibilitou a distensão das relações entre as potências europeias. A Sociedade das Nações e as disposições do Pacto de Paris, por sua vez, não foram suficientes para, respectivamente, atenuar as crescentes tensões entre os Estados e repelir o uso da força como medida de consecução de objetivos políticos. No caso específico da Liga das Nações, a historiografia é praticamente unânime no entendimento acerca do seu fracasso na realização de seu principal objetivo: manutenção da segurança e da paz internacionais[41]. A ausência dos Estados Unidos, que não ratificaram o documento, a necessidade de consenso em quaisquer situações de ação do Conselho (art. 5 do Pacto)[42], a inércia em relação à ruptura da paz em casos isolados (e.g. invasão da Abissínia pela Itália e da Manchúria pelo Japão), a expulsão da União Soviética (1939), após a invasão à Finlândia, foram alguns dos principais problemas enfrentados pela Sociedade[43]. Esta, no final da década de 1930, encontrava-se bastante desacreditada perante a opinião pública mundial e, considerados todos os fatos belicosos que caracterizaram a década de 1930 e o fortalecimento dos regimes totalitários em diversos países, o conflito generalizado era evento previsível, cuja eclosão escapava por completo ao controle da vacilante organização internacional.

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Sobre o autor
Mauro Kiithi Arima Junior

Bacharel em Direito e Relações Internacionais pela USP. Especialista em Direito Político, Administrativo e Financeiro pela FD USP. Especialista em Política Internacional pela FESPSP. Mestre em Direito Internacional pela USP. Doutor em Direito Internacional pela USP. Advogado, professor e consultor jurídico.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

KIITHI, Mauro Arima Junior. O uso da força no direito internacional:: da doutrina da guerra justa à Sociedade das Nações. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6518, 6 mai. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/90314. Acesso em: 18 abr. 2024.

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