A improbidade administrativa, em sede superior, é prevista no § 4º do art. 37. da Constituição Federal de 1988, estabelecendo a Lei Fundamental que “os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível”.
O § 4º do art. 37. da CF/1988, por ser norma de eficácia limitada, foi regulamentado pela Lei Federal n. 8.429/1992 (Lei de Improbidade Administrativa - LIA), conhecida como “Lei do Colarinho Branco”, estabelece quatro tipos de atos ímprobos: a) que importem enriquecimento ilícito (art. 9º); b) que causem prejuízo ao erário (art. 10); c) os decorrentes de concessão ou aplicação indevida de benefício financeiro ou tributário (art. 10-A); e d) que atentam contra os princípios da Administração Pública (art. 11).
Se analisados em detalhes o texto da LIA e a norma do § 4º do art. 37. da CF/1988, a conclusão é que o arcabouço jurídico brasileiro não possui um conceito de improbidade administrativa. Juridicamente, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) traz duas versões sobre a conceituação de ato de improbidade administrativa: uma restritiva (RESP. 1.558.039/PE) e outra elástica (RESP. 1.177.910/SE).
No julgamento do Resp. 1.558.039/PE, a Colenda Corte de Justiça Brasileira, adotando uma concepção restritiva e agasalhando somente as figuras ímprobas capituladas dos artigos 9º e 10 da LIA, assinala que ato improbo é aquele que causa lesão ao erário ou que gere enriquecimento ilícito do agente ou de terceiros. Em outra ocasião, o Tribunal de Cidadania, quando do julgamento do Resp. 1.177.910/SE, trouxe um conceito mais amplo de improbidade administrativa, sedimentando que ato improbo é todo aquele que, além de causar lesão ao erário (art. 10. da LIA) e enriquecimento ilícito (art. 9º da LIA), viole princípios basilares da Administração Pública (art. 11. da LIA).
O conceito ampliativo deve prevalecer, estendendo-se, contudo, a conceituação para agasalhar a conduta improba capitulada no art. 10-A LIA, ou seja, deve ser considerado também ato de improbidade administrativa quaisquer atos decorrentes de concessão ou aplicação indevida de benefício financeiro ou tributário.
Improbidade administrativa, portanto, deve ser entendida como toda conduta qualificada (comissiva ou omissiva) do agente (público, particular ou equiparado) que gere enriquecimento ilícito, cause lesão ao erário, viole princípios basilares da Administração e os decorrentes de concessão ou aplicação indevida de benefício financeiro ou tributário.
Apresentado o conceito e as espécies de atos de improbidade administrativa previstos na LIA, passa-se ao enfrentamento do tema proposto no presente artigo, ou seja, se acertado o entendimento do Superior Tribunal de Justiça (STJ) no sentido de que possível a responsabilização do agente, a título de culpa, nos atos de improbidade administrativa que causem prejuízos ao erário público (art. 10. LIA).
Visando uniformizar seus entendimentos, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) apresentou tese referente a responsabilidade objetiva do agente em ações de improbidade administrativa, sacramentado que “é inadmissível a responsabilidade objetiva na aplicação da Lei 8.429/1992, exigindo-se a presença de dolo nos casos dos artigos 9º e 11 (que coíbem o enriquecimento ilícito e o atentado aos princípios administrativos, respectivamente) e ao menos de culpa nos termos do artigo 10, que censura os atos de improbidade por dano ao Erário”.
Aqui, ainda que não mencionado na tese em evidência, de afirmar que os atos de improbidade administrativa decorrentes de concessão ou aplicação indevida de benefício financeiro ou tributário (art. 10-A da LIA), por força de entendimento jurisprudencial do próprio Tribunal de Cidadania, também somente restarão caracterizados se presente o elemento volitivo doloso do agente (STJ - RESP. 1.036.229/PR - MIN. DENISE ARRUDA - 1ªT - DJE 2/2/2010).
A tese em referência, quanto à indispensabilidade do elemento volitivo doloso para fins de configuração e responsabilização do agente por atos de improbidade administrativa previstos nos artigos 9º, 10-A e 11 todos da LIA é acertada. Contudo, a possibilidade de responsabilização culposa do agente por atos de improbidade administrativa que causem prejuízo ao erário público (art. 10. da LIA) deve ser revisto pelo Tribunal de Cidadania.
Explica-se.
Cediço que o objetivo da Lei Federal n. 8.429/1992 (LIA) não é penalizar o agente inábil, despreparado e incompetente, mas, sobremodos, aquele desonesto que afronta a moralidade administrativa causando danos ao erário, enriquecendo-se ilicitamente, concedendo ou aplicando indevidamente benefício financeiro ou tributário e atentando contra princípios administrativos (STJ - AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO NO RESP. N. 778.907-MT - REL. MIN. HERMAN BENJAMIN - 2ªT – DJE: 25/5/.2016 e TJMG - AC N. 1.0713.14.001418-2/001 - REL. DES. ÂNGELA DE LOURDES RODRIGUES - 8ªCC – DJMG: 16/3/2016).
Se a finalidade precípua da norma é punir agentes desonestos, não se pode, já num primeiro momento, conceber que uma pessoa seja penalizada, com sanções gravíssimas, por descuido, inabilidade ou desconhecimento que causem prejuízo ao erário: o conceito de improbidade administrativa está diretamente relacionado a qualquer ato do agente contrário à honestidade, à boa-fé, à honradez, à correção de atitude.
No âmbito das ações regidas pela LIA, o dolo deve ser entendido como a vontade consciente do agente de aderir, realizar ou anuir com o tipo vedado, produzindo resultados contrários ao Direito ou, ainda, a simples anuência aos resultados contrários à lei, sendo irrelevante a finalidade específica do ato (STJ - AGRG NO RESP. 1214254/MG - 2ªT – JULG.: 15/2/2011 – DJE: 22/2/2011).
A culpa capaz de configurar um ato de improbidade administrativa deve ser aquela considerada grave, ou seja, consciente, denotando indícios de conduta dolosa, não se prestando aquela caracterizadora de agente inábil (TJMG - AC 1.0267.05.930497-7/001 - REL. DES. BRANDÃO TEIXEIRA - DJE 11/11/2005).
A culpa grave, consagrada pela jurisprudência pátria e para fins de penalização do agente improbo, deve ser equiparada ao dolo, na medida em que a incursão de qualquer agente nas gravíssimas sanções previstas na LIA exige que a conduta se dê com a consciência da ilicitude (TJMG - AC 0499.06.001480-4/001 - REL. ALMEIDA MELO – JULG.: 4/10/2007), Dolo e culpa, em casos de improbidade administrativa, equivalem-se: o dolo e a culpa para fins de responsabilização do agente exigem que a conduta (comissiva ou omissiva), independentemente do fim almejado, tenha se dado com o objetivo de aderir, realizar ou anuir a uma prática improba.
E se o raciocínio anterior é correto, não se pode dizer que se mostra possível a configuração e punição de qualquer ato de improbidade por culpa, mas, tão somente, quando existente o elemento volitivo doloso do agente, ainda que seja um ato improbo que cause prejuízo ao erário (art. 10. da LIA).
Assim, ainda que fixado entendimento do Superior Tribunal de Justiça (STJ) em sentido contrário, o elemento volitivo doloso também deve ser estendido aos atos de improbidade administrativa que causem danos ao erário (art. 10. da LIA), pena de, em contradição ao próprio enunciado, restar consagrada responsabilidade objetiva repelida no ordenamento jurídico brasileiro.
Os atos de improbidade administrativa causadores de prejuízos ao erário (art. 10. da LIA) são aqueles provenientes de conduta (comissiva ou omissa, dolosa ou culposa) que enseje perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação de bens ou haveres da Administração pública ou outras entidades referidas no artigo 1º da Lei Federal n. 8.429/1992 (LIA).
Os verbos nucleares constantes nos incisos I (facilitar ou concorrer), II (permitir ou concorrer), III (doar), IV (permitir ou facilitar), V (permitir ou facilitar), VI (realizar), VII (conceder), VIII (frustrar), IX (ordenar ou permitir), XI (liberar), XII (permitir, facilitar e concorrer), XIII (permitir), XIV (celebrar), XV (celebrar), XVI (facilitar ou concorrer), XVII (permitir e concorrer), XVIII (celebrar), XX (liberar) e XXI (liberar) todos do artigo 10 da LIA são comissivos, ou seja, exige do agente uma atuação positiva, enfim, uma vontade livre e consciente.
Seria ilógico imaginar que um agente pudesse permitir, facilitar ou concorrer para que terceira pessoa enriqueça ilicitamente em razão de frustração de processo licitatório sem ter a intenção de produzir esse resultado vedado pela lei.
Com efeito, as condutas previstas nos incisos I, II, III, IV, V, VI, VII, VIII, IX, XI, XII, XIII, XIV, XV, XVI, XVII, XVIII, XX, XXI do art. 10. da LIA somente restarão configurados se o agente agir com vontade livre e consciente (dolo) de praticar o ato de improbidade proibido por lei.
Igual entendimento deve ser aplicado as figuras ímprobas previstas nos X e XIX do art. 10. da LIA que utilizam a expressão “agir negligentemente”, dando a impressão de que a conduta improba do agente se caracteriza pelo elemento volitivo culposo.
O “agir negligentemente” para fins de configuração de ato de improbidade administrativa, constante nos incisos X e XIX do art. 10. da LIA, não exige simplesmente que o agente aja com negligência, sendo imprescindível que, além de ser desleixado e desatento no exercício de suas funções, aja com fim especial de não arrecadar tributos e rendas e não preservar do patrimônio público e com fins específicos e dirigidos de não celebrar, fiscalizar e analisar prestações de contas de parcerias firmadas pela administração pública.
E se o agente age com fim especial de violar as regras dos incisos X e XIX do art. 10. da LIA, a toda evidência, não se está falando de culpa, mas, à notoriedade, de elemento volitivo doloso, ou seja, aquele em que o agente quer o resultado ou assume o risco de produzi-lo, donde ressai ser inimaginável que alguém possa ser desleal ou desonesto sem querer.
Os conceitos de probidade e improbidade exigem o querer, o agir, a vontade do agente (STJ - RESP. 765.212/AC – REL. MIN. MAURO CAMPBELL - PUBL.: 16/11/2015), em especial considerando-se que ilegalidade e improbidade não são situações ou conceitos intercambiáveis: nem toda ilegalidade deve ser considerada improba (STJ - AGRG NO ARESP 768.394/MG - REL. MIN. MAURO CAMPBELL MARQUES - 2ªT – JUL.: 5/11/2015 - DJE 13/11/2015).
A improbidade administrativa é ilegalidade tipificada e qualificada pelo elemento subjetivo da conduta do agente que tenha agido dolosamente e, ao menos, com culpa grave, esta equiparada ao dolo. Negligência, imprudência e imperícia, ainda que consideradas condutas irregulares, não são suficientes para ensejar a punição por improbidade administrativa (STJ - AGRG NO ARESP 21.662/SP - REL. MIN. NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO - 1ªT – JULG.: 7/2/2012 – DJE: 15/2/2012).
Parece, diante as ponderações e demonstrações anteriores, correto afirmar que os atos de improbidade administrativa que causem prejuízo ao erário (art. 10. da LIA) também só restarão configurados se o agente agir com dolo, ou seja, que tenha a intenção ou assuma o risco de causar prejuízo ao erário.
O Tribunal de Justiça do Estado do Paraná (TJPR - AC 0006105-70.2015.8.16.0058 - REL. DES. ASTRID MARANHÃO CARVALHO RUTHES - 4ªCC - JULG.: 11/6/2019), em constante evolução jurisprudencial, tem entendido ser vedada a responsabilização do agente por culpa no caso de cometimento de ato de improbidade administrativa do art. 10. da LIA ao fundamento de que a norma jurídica em menção restou alterada com a edição da Lei Federal n. 13.655/2018 que incluiu no Decreto-Lei n. 4.657/1942.
A decisão é de vanguarda e acertada.
O Decreto-lei n. 4.657. de 4/9/1942 (Lei de Introdução de Normas de Direito - LINDB), com as alterações dadas pela Lei Federal n. 13.655/2018, preceitua que o agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro.
Regulamentando a LINDB, o Decreto n. 9.830. de 10/6/2019 estabelece, em seu art. 12, que o agente público somente poderá ser responsabilizado por suas decisões ou opiniões técnicas se sua conduta (comissiva ou omissiva) se der com dolo (direito ou eventual) ou por erro grosseiro, conceituado este como sendo o praticado com culpa grave.
Além disso, a LINDB, precisamente em seu art. 22, estabelece as normas de gestão pública devem ser interpretadas levando-se em consideração, dentre outras circunstâncias, os obstáculos e as dificuldades reais do gestor, bem como as exigências de politicas públicas para fins de penalização do administrador.
Agir com má-fé, tendo em mira as considerações anteriores, significa agir maldosamente, ou seja, com fins de enganar ou iludir outra pessoa. Enfim, agir com má-fé é praticar ato intencional, ou seja, doloso.
Não se há, portanto, falar-se em improbidade administrativa culposa. O próprio Superior Tribunal de Justiça (STJ), em julgado recente e oposição a tese ora analisada, atesta que a conduta dolosa é indispensável para caracterização de qualquer proveito pessoal ilícito, lesão aos cofres públicos e ofensa aos princípios nucleares administrativos (STJ -AGINT NO ARESP 225.531/RJ - 1ªT - DJE 28/06/2019).
Todas as figuras ímprobas, preconizadas na Lei Federal n. 8.429/1992 (LIA) e ao contrário de tese do Tribunal de Cidadania, exigem para a sua configuração um agir ou uma omissão do agente com o fim específico de produzir o resultado tido como improbo, ou assumindo o risco de produzi-lo.