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O julgamento do "meritum causæ" pelo juízo "ad quem"

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24/10/2006 às 00:00
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6. A CONSTITUCIONALIDADE DO §3º, DO ART. 515

Neste capítulo colocaremos em confronto o §3º, do art. 515, do CPC com diversas regras e princípios, detectando ou negando eventuais conflitos com garantias constitucionais do processo.

As garantias são meios destinados a fazer valer os direitos – bens e vantagens conferidos pela norma –, são instrumentos pelos quais se asseguram o exercício e gozo destes.[125]

Este caráter instrumental das garantias não implica que elas possuam natureza processual, pois têm como traço característico servir de instrumento, tanto de cunho material como processual. Em outras palavras, as garantias possuem índole assecuratória, numa relação de instrumentalidade dos direitos. Mais do que instrumentos de defesa dos direitos das partes de um processo, as garantias asseguram a fiel prestação da própria jurisdição ao garantir a regularidade do processo como um todo.[126]

Assim, temos que garantias constitucionais, tais como a imparcialidade do juiz e o devido processo legal, devem sempre pautar o trabalho do legislador ordinário.

Desde a edição da lei reformadora que introduziu o dispositivo objeto deste estudo, muito se foi falado e debatido quanto a uma pretensa inconstitucionalidade por desrespeito a dois desses princípios, quais sejam o do juiz natural e do duplo grau de jurisdição.

Passemos agora a um estudo mais aprofundado desses princípios e sua relação com o art. 515, §3º.

6.1 Duplo grau de jurisdição

O chamado princípio do duplo grau de jurisdição, ou princípio da recursividade, como preferem alguns[127], consiste, na possibilidade de revisão das decisões de um órgão por outro,[128] geralmente superior[129] e colegiado. Aplica-se, sobretudo, em relação às sentenças, de mérito ou não, sendo de cabimento mais restrito nas decisões interlocutórias, havendo mesmo situações em que não há previsão de manejo de qualquer instrumento recursal.

Apesar de ser uma crença bastante difundida[130], nunca em nosso sistema legal houve garantia constitucional da aplicação deste princípio. Esse mito chega a ser tão enraizado em nossa cultura jurídica, que não foram raros os autores que descartaram sumariamente a aplicação do art. 515, §3º, do CPC, por uma suposta inconstitucionalidade, sem ao menos se preocupar em buscar embasamentos para suas posições, provavelmente por considerarem óbvia demais a situação de inconstitucionalidade.[131]

Os textos constitucionais sempre se limitaram a, no máximo, ordenar a estrutura do Poder Judiciário e enumerar os recursos cabíveis em nosso sistema, deixando, porém, à legislação infraconstitucional a regulamentação destes, inclusive no que tange ao cabimento.[132]

Entendem alguns que a Constituição do Império dispunha expressamente em seu art. 158[133] sobre a garantia do duplo grau de jurisdição.[134] No entanto, uma análise do texto citado leva-nos a crer que esta não é a melhor interpretação, parecendo-nos que o texto se limita a dizer sobre a competência material das Relações e não garantindo que em todos os processos seria assegurado o acesso às mesmas.[135]

No texto constitucional vigente em momento algum se encontra qualquer tipo de referência, mesmo que indireta, a uma pretensa garantia do duplo grau de jurisdição.[136] Não se nega a existência de tal princípio; o que ocorre é que ele não tem garantia constitucional, mas sim infraconstitucional, e assim sendo, pode muito bem ser limitado por outra regra de igual estatura.

Neste mesmo sentido é a lição de Nery Júnior[137], que afirma haver mera previsão do duplo grau de jurisdição na Constituição Federal. Com isso, fica livre o legislador infraconstitucional para limitar o direito de recurso.[138]-[139]

Os defensores da existência de uma garantia implícita ao duplo grau de jurisdição na Constituição a constroem a partir da mera previsão de existência de recursos existentes no texto constitucional, alegando ainda que os casos lá previstos onde não se aplica este princípio não causariam nenhum dano à garantia, pois a Constituição pode prever exceções às suas próprias garantias; mas como esses autores são capazes de criar uma garantia implícita de um texto repleto de exceções fica além da compreensão.

Nem mesmo se encontra uma teoria única sobre a fundamentação desta pretensa garantia, não havendo qualquer tipo de consenso entre seus defensores. Uns dizem se tratar de decorrência automática do direito de ação, outros que seria inerente ao contraditório, e outros ainda que decorre da ampla defesa. Há até mesmo quem diga[140] que é conseqüência do princípio do juiz natural!

Marques de Lima invoca o art. 5º, LV, da Constituição Federal[141]. Diz que seu principal fundamento é a possibilidade de erro do juiz e a conseqüente insatisfação da parte, a qual terá chance de ver sua demanda reapreciada por um órgão superior colegiado, composto por magistrados mais experientes. Diz, ainda, que o princípio sugere dois aspectos: tornar recorrível a decisão de primeiro grau para uma instância superior revisora; assegurar a não supressão de instância, porquanto a superior somente pode julgar, dentro de seu poder revisional, se a inferior tiver emitido pronunciamento sobre a matéria (CPC 515, caput).[142]

Primeiramente, cabe ressaltar que aquele inciso constitucional se refere aos ‘recursos inerentes’ ao processo. Assim, se em determinado procedimento não há previsão de recurso, ou este é limitado, não há que se falar em inconstitucionalidade – desde que observados o princípio da legalidade e a aplicação temporal de lei inovadora – pois não haveria qualquer recurso inerente. A inconstitucionalidade somente ocorreria se fosse negado à parte o manejo de recurso existente, previsto e cabível no caso concreto.

Greco Filho apresenta entendimento de que o direito de recorrer das decisões desfavoráveis estaria compreendido na garantia da ampla defesa (CF 5º, LV). Tal compreensão parece estender demais a abrangência do princípio invocado, cuja interpretação mais razoável parece ser a de limitá-lo aos outros meios enumerados pelo próprio autor citado, quais sejam: ter conhecimento claro da imputação; poder apresentar alegações contra a acusação; poder acompanhar a produção de provas; fazer contraprova; ter defesa técnica por advogado.[143]

Há ainda quem argumente que nenhum ato estatal pode ficar sem controle, e que a revisão das decisões judiciárias seria postulado do Estado de Direito, havendo uma "necessária revisão dos atos estatais, como forma de controle da legalidade e da justiça das decisões de todos os órgãos do Poder Público".[144] Tal argumento é falacioso. Não é verdade que todo ato estatal esteja sujeito a revisão por órgão superior, nem que tal exame seja imanente ao Estado de Direito, e muito menos que exista uma revisão necessária dos atos estatais. Fartas são as hipóteses em que o agente estatal, desde que atuando dentro dos limites impostos pelo ordenamento jurídico, age sem que sua atuação sofra qualquer tipo de revisão por quem quer que seja. Além do que, adotar tal entendimento seria defender a aplicação do reexame necessário em todos os processos judiciais e a existência de graus de jurisdição ad infinitu, pois também o ato revisional estaria sujeito a revisão por um outro órgão a fim de se evitar abusos de qualquer natureza. Uma coisa é reexaminar uma decisão prolatada dentro dos limites de discricionariedade do julgador, outra coisa é controlar a atuação do órgão jurisdicional que por ventura extrapole os parâmetros estabelecidos pelo sistema normativo. Este controle, sim, é inerente ao Estado de Direito.

Ainda defendem que o princípio do duplo grau compreenderia também proibição do tribunal se pronunciar sobre questão que o juízo a quo não tenha se manifestado.[145] Tal entendimento nega aplicabilidade aos art. 515, §1º e 516, do CPC – sem mencionar o novel §3º, do art. 515 – o que seria por demais absurdo. Mais uma vez repete-se: não há dispositivo algum, seja em nível legal ou constitucional que dê sustentação a tal apego a interpretação tão restrita ao duplo grau de jurisdição.

Destarte, temos que a limitação ao juízo de segunda instância de atuar apenas como juízo revisional nas causas oriundas do juízo a quo é unicamente infraconstitucional. Com a inclusão do §3º ao artigo 515, do CPC, foi introduzida uma ampliação à aplicação do caput do mesmo artigo, que, salvo raras exceções, sempre foi interpretado de forma restritiva. Temos que com o advento da alteração legislativa foi explicitada a possibilidade de haver casos em que à instância superior caberá não apenas rever a questão impugnada, mas toda a lide.

Djanira Radamés de Sá defende que a garantia ao duplo grau de jurisdição seria elemento essencial ao devido processo legal. Considera que "a aspiração a uma sentença favorável é bem incorpóreo protegido pela cláusula due process of law" e que este princípio é ainda "condição essencial para a consecução do objetivo de pacificação social com justiça e segurança".[146] Afirma ainda que "é mais provável não estarem os critérios de justiça e segurança presentes numa decisão única".[147]-[148] A premissa adotada pela autora de que toda decisão de primeiro grau é potencialmente injusta e que a decisão de reexame apresenta um grau quase infalível de segurança, sendo "um raciocínio mais completo e, portanto, mais justo"[149], é, no mínimo, temerária. Como se pode assegurar isso com tanta certeza de um julgamento que invariavelmente estará mais distante dos fatos e onde se terá uma visão ‘pasteurizada’ das provas produzidas? Não se pode.

O acesso a uma ordem jurídica justa é defendido como sendo garantia que se sobreleva ao princípio do duplo grau (que não é garantia constitucional, nunca é demais repetir), atendidos os princípios processuais da celeridade e a economia, e sem desatender aos do devido processo legal e do contraditório. Antes da reforma era comum ocorrer de, ante a procedência do recurso, o juiz estar obrigado a novo julgamento, após vencido na preliminar, contrário ao próprio convencimento. Nada garantindo que, ao retorno, possa encontrar-se modificada a composição da câmara ou turma e, por absurdo, antepor-se com nova contradição preliminar entre os componentes.[150]

Dinamarco defende a alteração afirmando haver ênfase na instrumentalidade do processo, adiantando a decisão que seria proferida pelo Tribunal caso este remetesse o processo para ser julgado pelo juízo a quo, e depois fosse impetrado recurso.[151] Porém, há de se entender que, inobstante compartilharmos o posicionamento adotado pelo autor, sua fundamentação merece ressalvas. Sob tal argumento se poderia defender a extinção do julgamento em primeira instância; os juízes de primeiro grau seriam meros juízes de instrução, sendo a decisão dada pelo juízo de segundo grau, afinal, "é lá que será dada a palavra final, mesmo".

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Por fim, a Convenção Interamericana de Direitos Humanos (pacto de San José da Costa Rica), de 22 de Novembro de 1969[152], no que diz respeito à garantia ao duplo grau de jurisdição,[153] não se aplica no âmbito do Processo Civil, pois seu texto se refere expressamente a pessoas acusadas de ‘delitos’[154].

É assegurado pela Constituição o processo, envolvendo o direito à ação, o direito de defesa, o contraditório e a ampla defesa, a isonomia processual e a bilateralidade dos atos procedimentais.[155] Tais direitos, desde que devidamente observados, garantem que a decisão final esteja, pelo menos, bem próxima de algo que podemos chamar de justiça. Inobstante, não se pode ignorar como justificativas da existência de um juízo revisional a falibilidade do julgador e o senso de insatisfação (um sentimento que costuma acompanhar a percepção ou ameaça de uma carência[156]), que são inerentes ao homem, assim como outros de ordem política, tais como maior segurança quanto à ‘justiça’ da decisão; porém não são suficientes para elevar tal princípio ao patamar de dogma intocável do Direito Processual. Afinal, já dizia o romano que julgar por último não é o mesmo que julgar melhor.[157]

Resta evidente que a escolha pela adoção do juízo revisional é estritamente política, não tendo qualquer origem ou fundamentação oriunda dum estudo científico do direito; além de não garantir de forma alguma uma prestação jurisdicional justa, o que quer que se queira dizer por ‘justiça’.[158] A existência de tal princípio não é essência do Estado democrático de direito, como querem alguns; inobstante seja desejável sua presença, pode-se muito bem conceber um Estado democrático e justo que se paute pela irrecorribilidade das decisões, assim como se pode conceber um Estado autoritário que permita o manejo de recursos face toda e qualquer decisão.

Dinamarco chega mesmo a afirmar que a verdade e a certeza são dois conceitos absolutos e, por isso, jamais se tem a segurança de atingir a primeira e jamais se consegue a segunda, em qualquer processo.[159] O máximo que se poderia obter é um grau muito elevado de probabilidade, seja quanto ao conteúdo das normas, seja quanto aos fatos, seja quanto à subsunção destes nas categorias adequadas. Depois de efetuada a cognição, ao julgar, o juiz há de contentar-se com a probabilidade, renunciando à certeza, pois o contrário inviabilizaria os julgamentos. Diz ainda que a obsessão pela certeza constitui fator de injustiça, sendo tão injusto, por falta dela, julgar contra o autor quanto contra o réu. No processo executivo, o próprio legislador renuncia ao critério de certeza, satisfazendo-se com a probabilidade representada por certos atos jurídicos, aos quais confere a eficácia abstrata de título executivo. Para as medidas cautelares, a ordem jurídica é praticamente explícita na aceitação da probabilidade suficiente, pois está dito que elas são concedidas com base no fumus boni iuris e instrução sumária. O risco de que ocorram erros é inerente a esse sistema; mas ele próprio fornece o instrumental necessário à sua correção, tais como a prova contrária às presunções relativas, prova pelo revel, recursos, ação rescisória, embargos do executado, revocabilidade das medidas cautelares, etc..[160]

Não defendemos aqui a extinção de tal figura do direito processual; muito pelo contrário. Não há como contestar o fato de que o julgador julga melhor quando sua decisão é passível de revisão,[161] e o indivíduo aceita muito melhor uma decisão que lhe é desfavorável quando esta provém de um órgão superior, composto por julgadores mais experientes, e coberto por todo um aspecto ‘mágico’ e de autoridade que envolve as cortes que encabeçam o Poder Judiciário, permitindo que seja atingido o escopo da pacificação social que deve ser sempre objetivado na prestação jurisdicional. No entanto, reiteramos: a escolha entre se utilizar ou não o duplo grau de jurisdição como princípio orientador (ou mesmo garantia) do processo civil é uma decisão de cunho político do legislador (ou constituinte, conforme o caso). É sim um instrumento de grande utilidade prática, ainda mais se levarmos em conta seus escopos psicológico e sociológico, mas nada há de científico em tentar caracterizá-lo como garantia constitucional, ou mesmo supra-normativa, como insistem alguns[162]; um princípio é o télos[163] que se extrai das normas positivas e não algo que se encontre acima delas.

Ainda que se admitisse que o duplo grau de jurisdição fosse garantido constitucionalmente, em nada afetaria a aplicabilidade do dispositivo aqui analisado. O recebimento da apelação por si só já satisfaria a pretensa garantia, pois a causa estaria sendo analisada por um segundo órgão, pouco importando que o primeiro não o tenha feito de forma completa.[164]-[165] Neste sentido ensina Enrico Redenti ao defender que o princípio do duplo grau "não exige que cada questão seja examinada duas vezes: é a controvérsia em seu todo que deve poder passar (...) pelo duplo grau".[166] Seria demais querer extrair uma garantia implícita da extensão da aplicabilidade de uma garantia ela mesma implícita. Além do que, não existem garantias ou princípios absolutos que devam ser observados em toda e qualquer situação, tal obediência unilateral e irrestrita a uma determinada pauta valorativa termina por infringir outra. Daí se dizer que há uma necessidade lógica e axiológica de se postular um ‘princípio de proporcionalidade’ para que se possa respeitar normas tendentes a colidir, como os princípios. Temos que até mesmo as garantias constitucionais à liberdade, à vida[167], à liberdade de expressão, etc., são limitadas de alguma forma.[168]

Dinamarco propõe que nenhum princípio constitui um objetivo em si mesmo e todos eles, em seu conjunto, devem valer como meios de melhor proporcionar um sistema processual justo, capaz de efetivar a promessa constitucional de acesso à justiça.[169] Acrescenta ainda que "os princípios existem para servir à justiça e ao homem, não para serem servidos como fetiches da ordem processual".[170]

6.1.1 Supressão de instância

Ao tribunal é lícito alterar, aumentar ou reduzir o conteúdo da prestação jurisdicional oferecida pelo juízo de primeira instância. No entanto, haverá, sim, supressão de instância se o juízo ad quem oferecer a prestação jurisdicional em primeira mão, sem que antes o tenha feito (plano de existência) o juízo a quo. Veremos que também alguns casos de invalidade no processo culminam com a supressão da sentença do mundo jurídico, o que nos traz à mesma situação de sentença inexistente.

Se o processo foi extinto sem julgamento de mérito, por este simples fato não há que se falar em irregularidade do ato judicial que enseje sua nulidade, o ato formal é perfeito, sendo discutido apenas aspecto atinente ao seu conteúdo, à interpretação da situação fática; e não havendo nulidade tampouco há de se submeter o processo a nova apreciação pelo órgão a quo – repetição do ato – devendo o órgão ad quem prosseguir no julgamento da causa,[171] e mais ainda agora com a introdução do novel §3º ao art. 515, do CPC.

6.1.1.1 Sentença inexistente

Para identificar quando haverá supressão de instância, devemos, primeiro, estudar em que hipóteses a sentença será considerada inexistente. Segundo a lição de Pontes de Miranda, a sentença será inexistente (não-sentença) quando: a) faltar jurisdição ao julgador (ex.: não-juiz, juiz criminal, juiz de tribunal administrativo; juiz estrangeiro ou supra-estatal, inter-estatal ou paraestatal; tribunal sem número legal; ...); b) faltar de capacidade de ser parte (ex.: não ser pessoa, estar morto o autor, ou o réu, no momento do despacho da petição inicial, ou da citação, respectivamente); c) faltar a pretensão abstrata à tutela jurídica em geral; d) não-existência da parte, ou ‘parte fingida’ (na parte da condenação referente às custas); e) isenções; f) extraterritorialidade. Nos dois últimos casos, o autor diz que haveria insatisfazibilidade subjetiva, imperseguibilidade por ‘inatacabilidade’ do réu.[172]

Acrescentamos à lista do mestre um item: sentença que não possua todos os seus requisitos essenciais, quais sejam: relatório, fundamentação e dispositivo. Nestes casos, ainda que haja um ‘princípio de sentença’, ela não se completou – se ausente elemento essencial da coisa, coisa não há –, e constatada tal irregularidade deve o mesmo órgão regularizar o ato.

Se não há decisão de primeiro grau, é uma obviedade dizer que decisão eventualmente prolatada por órgão de segundo grau não tem o que substituir. Assim, constatada a inexistência de sentença não há como se permitir a permanência no mundo jurídico da decisão do órgão de revisão sobre o mérito.

6.1.1.2 Sentença inválida

Segundo o art. 104, do CC, o ato jurídico válido requer agente capaz, objeto lícito e forma prescrita ou não defesa em lei. Transportando tais conceitos para o campo processual, temos que a sentença será inválida quando houver: a) incompetência do juiz ratione materia; b) impedimento e suspeição do juiz; c) incapacidade processual das partes; d) falta de poderes dos representantes das partes, ou de seus procuradores, ou incapacidade processual deles; e) incapacidade postulacional (advogado não registrado ou suspenso de funções, ou falso advogado); f) perempção do direito de demandar; g) infração da regra jurídica que determina ao juiz proferir a sentença uma vez encerrado o debate; h) troca das pretensões à tutela jurídica, com infração do processo. O trânsito em julgado tem, via de regra, eficácia sanatória, exceto quanto ao primeiro caso.[173]

O sistema das nulidades no direito processual civil é peculiar, em muito diferindo daquele adotado pelo direito civil. Os atos nulos são privados de eficácia enquanto não convalidados, ou, por omissão, quando não argüida tempestivamente e eficazmente sua irregularidade, que somente será decretada quando estritamente necessário e imprescindível. São adotadas aqui regras muito mais brandas quanto à decretação da nulidade. Se temos que, em princípio, o ato nulo para ser convalidado deve ser repetido ou suprida sua falta no processo, no regramento do direito processual civil, tendo-se em vista seu caráter instrumental, privilegia-se sobretudo o fim do ato. Assim, mesmo que não observadas as regras legais quanto à forma, se o ato atingiu seu fim objetivado, não causando prejuízo ao processo ou à parte, convalidado está. Deve-se atentar que, apesar da semelhança fruto do tratamento legal, não se deve confundir nulidade com anulabilidade.[174]

A ordem jurídica, nos dizeres de José Alberto dos Reis, em lugar de verificar os vícios e desvios existentes na prática do ato processual e em seguida impor a sanção da nulidade, procura, ao contrário, corrigi-los, para impedir ou atenuar os prejuízos daí advindos.[175]

O preceito de que atos nulos devem ser repetidos também se dirige ao Estado, mas não da mesma forma que às partes. A jurisdição é una, e as divisões funcionais criadas em nada alteram tal fato; o Estado, em todas as suas funções, pauta-se pelo princípio da impessoalidade. Assim, temos que não há exigência de que o mesmo órgão estatal repita o ato inválido a fim de sanar a nulidade. Disto, concluímos que um órgão superior – que possui poderes mais largos, um potestas mais amplo[176] – pode muito bem suprir a invalidade do ato produzido pelo órgão inferior. O entendimento dominante de que deve o mesmo órgão retificar o ato invalido, nada mais é do que outro aspecto do já mencionado ‘fetiche processual’, que causa mais prejuízos e injustiças do que pretende evitar.[177]

Destarte, somente os atos que causem prejuízo serão decretados nulos. Tal decreto poderá ocorrer nos próprios autos, em grau de recurso, ou ainda, se já transitada em julgado a sentença, por meio de ação autônoma. A nulidade de ato processual implica na contaminação os atos posteriores que dele dependam (CPC 248), inclusive a sentença. Assim, a decretação da nulidade torna imperioso o retorno do processo ao estado de então, devendo que todos os atos posteriores sejam repetidos ou retificados.[178] Tal condição leva a incompatibilidades com a aplicação do art. 515, §3º, do CPC, pelo que haverá hipóteses em que inaplicável o dispositivo em estudo. A não ser que não haja prejuízo para as partes, eventual julgamento pelo órgão ad quem estaria eivado de nulidade, havendo aí flagrante desrespeito, não só ao devido processo legal, mas também ocorrendo supressão de instância, pois a sentença posterior ao ato nulo seria apagada do mundo jurídico, e se não há decisão em primeiro grau, não há se permitir que seja dada decisão em substituição a algo que não existe. Ressalte-se, somente se anula o ato inválido e os que dele dependerem se houver prejuízo à parte, caso contrário o próprio órgão ad quem pode sanar a invalidade e seguir no julgamento das demais questões, se houverem.

Forte doutrina[179] defende que a sentença infra petita é absolutamente nula em razão da violação à regra do art. 458, III, do CPC. No entanto, ante a exegese do art. 515, §1º, também do CPC, nos parece que tal sentença é apenas anulável. Tal vício pode ser sanado diretamente pelo órgão que vier a receber eventual recurso interposto. Além do que, a coisa julgada material somente acoberta os efeitos da sentença;[180] se determinada questão não foi decidida na sentença não há que se falar em coisa julgada em relação a esta questão. Cabe à parte que se achar prejudicada provocar a manifestação do órgão prolator da decisão por meio de embargos declaratórios, ou ainda buscar o saneamento junto ao órgão superior por meio de recurso cabível in casu. Operando-se a preclusão, é de se presumir a aquiescência das partes e conseqüente convalidação do ato.

Quanto à decisão ultra petita, entende-se, em nome do chamado princípio do aproveitamento, que deve simplesmente ser cancelada a parte que exceder o pedido pelo órgão que vier a apreciar a questão, satisfazendo assim, os limites traçados pelas partes para a atuação do Judiciário.[181]-[182] É absolutamente desnecessário remeter os autos ao juízo de origem, determinando que este exclua do dispositivo da sentença tal parte, se desde logo pode o juízo ad quem fazê-lo com a mesma qualidade e eficácia, não havendo qualquer impedimento legal para tanto.

Diz o adágio que il n’a pas de nulité sans grief. De qual modo haverá maior prejuízo: remetendo-se os autos de volta ao juízo a quo para que corrija seu ato?, que estará então sujeito a novo recurso, ou se o próprio órgão ad quem o fizer? A resposta parece ser óbvia demais.[183]

Peculiar é a situação da sentença extra petita. Preenchidos todos os aspectos formais, há sentença. No entanto, a prestação de tutela não relacionada com o que foi pedido se traduz em flagrante nulidade do ato jurisdicional, tão somente. Tendo em vista todos os argumentos já enumerados neste ponto, defendemos que a solução mais apropriada para este caso é a de o órgão ad quem, suprindo a nulidade profira julgamento, desta vez dentro dos limites da ação proposta. Diferente é o entendimento jurisprudencial, entendendo que, não esgotada a prestação jurisdicional pelo órgão a quo, por não ter se manifestado sobre a demanda proposta, a nulidade do ato não pode ser suprida pelo tribunal, devendo a causa retornar ao juízo de origem para novo julgamento.[184]

6.1.1.3 Sentença ineficaz

A sentença será ineficaz – incapaz de produzir seus efeitos programados, ou alguns deles[185] – nos casos de: a) aparência de processo; b) não seriedade do processo ou só da sentença; c) continuação do processo a despeito da abertura de concurso de credores; d) litispendência de outro processo; e) infração da coisa julgada material; f) impossibilidade lógica, gnosiológica ou jurídica, do pedido ou da sentença (p. ex.: o processo em que se pede ou se condena a serviço forçado).[186] Também temos os casos em que a resistência à eficácia da sentença deriva da impossibilidade de impor seus efeitos a quem não figurou como parte sequer na demanda inicial.[187]

A ineficácia, quando oriunda de vício no processo, é passível de retificação em grau de recurso, de onde resultará alguma das medidas já estudadas, conforme o caso concreto.

6.2 Princípio do juiz natural

O constituinte de 1988 adotou o princípio do juiz natural ao garantir que ninguém poderá ser processado nem sentenciado senão pela autoridade competente, além de também proscrever a existência de juízos ou tribunais de exceção, sendo que este é um complemento daquele.[188] Enquanto o juiz natural é aquele já previsto abstratamente antes da ocorrência do fato, o juízo de exceção é aquele designado, por deliberação legislativa ou não, para atuar no caso concreto ou individual.[189]

No entendimento de Nery Júnior[190] a garantia constitucional do juiz natural se desdobra em três, quais sejam: não haverá juízo ou tribunal ad hoc; todos têm o direito de submeter-se a julgamento por juiz competente, pré-constituído na forma da lei; o juiz competente há de ser imparcial.

Diz-se ainda que este princípio se traduz no seguinte conteúdo: exigência da determinabilidade (prévia individualização dos juízes por meio de leis gerais); garantia de justiça material (independência e imparcialidade dos juízes); fixação da competência (o estabelecimento de critérios objetivos para a determinação da competência dos juízes); observância das determinações de procedimento referentes à divisão funcional interna. Tudo isso visando obstar os chamados mecanismos de designação, substituição e convocação de juizes pelo Poder Executivo, tarefa que fica reservada ao Judiciário.[191]

Isto posto, entende-se que esta inovação na lei processual passou a ser aplicável mesmo nos processos já em curso, mas somente naqueles em que a decisão final foi prolatada após o início da vigência da lei 10.352/01 (publicada em 27 de dezembro de 2001), ou seja, em 28 de março de 2002; visto que, em regra, em matéria de lei processual se aplica a regra tempus regit actum, segundo a qual fatos ocorridos e consumados no passado não se regem pela lei nova que entra em vigor, mas continuam valorados segundo a lei do seu tempo.[192] Em termos mais específicos, temos ainda o princípio de que a recorribilidade se regula pela data da sentença[193], devendo o recurso ser definido senão pela lei então em vigor.[194]

A instituição ou atribuição de funções a órgão jurisdicional deve ser anterior aos fatos, de forma que quando ocorram já seja possível indicar o órgão que decidirá a questão.[195]

Com a publicação do decisum (CPC 463) passa a existir uma situação jurídica consumada, incidindo sobre tal suporte fático a regra jurídica então vigente, criando-se fato jurídico perfeito, protegido não só por dispositivo legal (LICC 6º), como também constitucional (CF 5º, XXXVI). Temos aqui o que podemos chamar de ‘direito adquirido de recorrer’ sob as regras vigentes à época em passou a existir o ato recorrível.[196]

Entender de modo contrário seria violar a ordem constitucional, ferindo os preceitos contidos no art. 5º, XXXVI, XXXVII e LII da Carta de 1988. Estaria havendo julgamento por autoridade não prevista na lei processual da época que ocorreu o fato que deu gênese ao direito de recorrer; e entender que uma lei nova passe a ter eficácia sobre o caso concreto durante o decurso de prazo processual seria por demais absurdo.

Assim, a lei nova não teria eficácia face as facta præterita, os fatos ou atos estabelecidos, porque aí ela seria retroativa, mas sob esta reserva, ela tem efeito imediato sobre os processos em curso. Os recursos não podem ser definidos senão pela lei em vigor quando do julgamento,[197] caso contrário, a lei nova estaria tocando um ato consumado em um momento em que ela ainda não existia, havendo, então, retroatividade da lei, o que não lhe é permitido.[198]

Interessante o ponto colocado por Paulo Afonso Brum Vaz em acórdão de sua lavra,[199] onde defende que a regra supra estudada somente se aplica aos casos de supressão ou alteração da figura recursal. Entende que no presente caso houve apenas "elastecimento do poder da jurisdição de segunda instância, com mitigação do princípio do duplo grau de jurisdição".

Por óbvio, em se entendendo que a inovação legislativa na verdade não é novidade alguma, mas mera explicitação de uma hipótese já existente – tratar-se-ia de regra meramente interpretativa –, torna-se bizantina a discussão quanto à aplicação da nova lei.

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Sobre o autor
Marcelo Azevedo Chamone

Advogado, Especialista e Mestre em Direito, professor em cursos de pós-graduação

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CHAMONE, Marcelo Azevedo. O julgamento do "meritum causæ" pelo juízo "ad quem". Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1210, 24 out. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9078. Acesso em: 26 abr. 2024.

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