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Racismo defensorial: perpetuação da violência pela instituição ombudsman

23/10/2021 às 18:38
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A raça preta é um marcador de diferença, elemento de desigualdade e inferioridade, fator de discriminação e dominação, circunstância que atrai opressão estatal e naturaliza a invisibilidade social, de modo que exige atuação da Defensoria Pública.

Em 1809 surgia na Suécia a figura político-jurídica do Ombudsman, cuja abertura conceitual permite indicá-lo como ouvidor, provedor ou representante do povo e do cidadão contra a arrogância autoritária do poder e o autoritarismo ou abuso público.

Essa invenção sueca buscava lidar com o desamparo do indivíduo diante de abusos e segredos das autoridades e excelências do reino, além de salvaguardar os direitos dos cidadãos diante dos excessos do poder, ouvindo as queixas e clamores do povo, supervisionando a aplicação da lei por juízes e servidores públicos, e realizando inspeções contínuas nos órgãos públicos (WALLIN, 2014, p. 184-185).

Nesse mesmo período do início do séc. XIX, agora no Brasil, a realidade histórica ainda era distante da criação vanguardista e disruptiva do Ombudsman, cuja característica constitucional e concorrente – não exclusivista – foi reconhecida à Defensoria Pública, após mutações e reformas constitucionais significativas (EC 45/2004, 69/2012, 74/2013 e 80/2014)[2].

De 1808 a 1889 o Brasil passou por intensas transformações em relação a escravização, tráfico negreiro e enfrentamento do racismo, com a abolição paulatina da escravatura.

A independência do Brasil, em 7 de setembro de 1822, não abarcou todos os cidadãos: libertou politicamente os brancos, mas não socialmente os negros, segundo o historiador Manuel de Oliveira Lima (GOMES, 2013, p. 227).

Ou seja, o Brasil se tornou independente enquanto nação, mas não enquanto sociedade livre, justa, igualitária e solidária, por isso posteriormente se tornou missão constitucional e objetivo republicano (arts. 3.°, I, e 5.°, I, da CRFB/1988).

Embora atribuída formalmente à Lei Áurea de 13 de maio de 1888, a abolição da escravização de negros passou por reformas legais, além de movimentos e resistências populares, como a primeira lei de combate ao comércio negreiro de 1831, chamada de “lei para inglês ver”, já que aprovada por pressão do governo britânico e sem efetiva transformação social; a Lei Eusébio de Queirós de 1851 sobre a proibição do tráfico negreiro com a África, o que aumentou o tráfico interprovincial.

Ademais, houve a Lei do Ventre Livre de 1871 – em que filhos (as) de cativas nasciam livres – e, por fim, a Lei dos Sexagenários de 1885, a qual libertou escravos a partir dos sessenta anos de idade num período de maior necessidade de proteção trabalhista, social e previdenciária, ou seja, os ex-cativos ficaram à margem da sociedade e do Estado.

A Lei Áurea foi capaz de abolir formalmente a escravidão (escravização humana enquanto atividade econômica), mas não de eliminar seu legado e o racismo que se estruturava e se enraizava na sociedade, agora com novas perspectivas e significados, de modo a marcar com ferro e fogo o inconsciente coletivo e o imaginário social, e criar um senso comum deletério e discriminatório.

Essa é uma marca histórica que jamais deveria fincar na parede da memória.

Os negros não foram incorporados à sociedade, senão marginalizados, excluídos, etiquetados e terminantemente ignorados pelo Poder Público, período tachado como holocausto do Império, à semelhança do holocausto alemão (período do nazismo na segunda grande guerra mundial) e do holocausto asiático (segunda guerra sino-japonesa).

Não apenas o séc. XIX, mas antes dele e infelizmente além dele a história revela a presença indisfarçável da escravização do ser humano, mais presentemente do negro, do preto, da raça subjugada.

A raça preta passa a ser (mais) um marcador de diferença[3], elemento de desigualdade e inferioridade, fator de discriminação e dominação, circunstância que atrai opressão estatal e naturaliza a invisibilidade social.

Na comemoração do centenário da abolição solene da escravização negra nasce a contemporânea Constituição do Brasil de 5 de outubro de 1988, a qual cria a instituição Defensoria Pública como essencial à justiça e à função jurisdicional do Estado (arts. 5.°, LXXIV, e 134) para orientação jurídica e defesa dos necessitados, além de tornar o racismo crime inafiançável, imprescritível e sujeito à pena de reclusão (art. 5.°, XLII), na forma de lei específica (n. 7.716/1989).

A instituição defensorial não nasce no texto constitucional como permanente, expressão e instrumento do regime democrático, com a incumbência fundamental (não restritiva) de defesa dos direitos humanos e dos direitos individuais e coletivos das pessoas em condição de vulnerabilidade, tais como as vítimas de racismo, diretas ou indiretas, com ou sem vitimização criminal (art. 4.°, inc. XVIII, da LC n. 80/1994 – LONDP).

Essa conotação ressignificada e ampliada teve seu registro constitucional após transformações institucionais sensíveis e mudanças da sociedade, de modo a exigir uma instituição autônoma e extrapoder, com missão de defesa e guarda dos vulnerabilizados, de forma não apenas individual, judicializante e contenciosa, burocrática e sem solução efetiva de conflitos e problemas sociais e estruturais.

Passa-se a exigir uma atuação institucional extrajudicial, educativa, transindividual, preventiva e proativa (ARRUDA, 2012), oficiosa e protagonista das soluções sociais estruturais, em cuja missão se encaixa o enfrentamento do racismo, uma vez que atinge diretamente as minorias negras (dado qualitativo), a raça vulnerável, etnias e grupos tradicionais historicamente excluídos e marcados pela violência estatal e condescendência e omissão do povo.

Negros, quilombolas e povos tradicionais são grupos sociais vulneráveis que merecem proteção especial do Estado e, portanto, exigem atuação efetiva, eficiente e oficiosa da Defensoria Pública (art. 4.°, incs. X e XI, da LONDP), uma vez que se caracteriza como instituição ombudsman e guardiã dos vulneráveis.

O racismo estrutural ainda passa por processos de negacionismo e revisionismo histórico, frutos de teorias de senso comum, dada a falta de educação em direitos e qualidade cultural do povo brasileiro.

O Brasil é o país fora do continente africano com maior número de pardos e negros, com percentual populacional superior a 56%, conforme estatística de 2020 do IBGE – PNAD Contínua.

Entretanto, dados estatísticos são reveladores ao evidenciar que a população negra não ocupa substancialmente espaços de poder e de decisão, elites econômicas, grupos políticos, meios acadêmicos, culturais e literários, cujo contexto racista coletivo ainda se mantém e sem soluções concretas para mudança do estado atual.

Dentro da própria Defensoria Pública – instituição com incumbência fundamental de defesa dos direitos humanos e promoção da diversidade étnico-racial –, já que se consubstancia como expressão e instrumento do regime democrático, com papéis iluminista e contramajoritário (ARRUDA, 2016), é possível identificar dados preocupantes, embora previsíveis, uma vez que apenas revela um micromundo de repetição de todo o contexto global, e sem ativismo prospectivo.

Em 21 de maio de 2021 foi publicada a Pesquisa Nacional da Defensoria Pública (2021)[4], fruto de parceria do Colégio Nacional de Defensores Públicos-Gerais (CONDEGE), do Conselho Nacional dos Corregedores-Gerais (CNCG) e da Defensoria Pública da União (DPU).

Os dados são estarrecedores nos critérios racial e socioeconômico, conquanto o critério gênero – outro marcador de diferença relevante – tenha sinalizado mudança pontual e positiva, com a maioria feminina ocupando espaço na instituição (51,0% na Defensoria Pública em comparação com 51,9% da população geral).

Foi feito comparação racial (brancos, pardos, pretos e outros) entre a população geral (dados do IBGE – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua Trimestral, primeiro trimestre de 2020) e nos membros da Defensoria Pública (Defensoras e Defensores Públicos), com margem de erro de 1,3%.

No resultado total da população geral, estes foram os resultados: brancos (42,7%); pardos (47,2%); pretos (9,2%); outros (0,9%). A Defensoria Pública apresentou os seguintes dados: brancos (74,0%); pardos (19,3%); pretos (3,0%); outros (3,7%).

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Os brancos tiveram aumento de 32,7%; os pardos, redução de 27,9%; já os negros representam menos de 1/3 em relação ao quadro populacional nacional.

Como o critério racial caminha paralelamente ao fator socioeconômico, a Pesquisa Nacional (2021) apresentou a seguinte estatística para a classe econômica dos membros anterior à entrada na carreira (margem de erro 1,3%): 29,6% com famílias de 4 a 10 salários mínimos; 27,5% de 10 a 20 salários mínimos; 26,4% de mais de 20 salários mínimos; 10,3% de 2 a 4 salários mínimos; 2,6% de até 2 salários mínimos; 3,6% não quiseram responder.

São dados gritantes de racismo estrutural encontrados dentro da própria instituição incumbida da diversidade racial e responsável por avanços sociais e civilizatórios na superação de obstáculos estruturais, de discriminações e fatores de desequilíbrio histórico-social.

É natural que essa realidade racial desigual seja encontrada em todo o Sistema de Justiça, como Ministério Público, Poder Judiciário e Advocacia Pública, além de Polícia, Advocacia e demais setores jurídicos, políticos e empresariais.

Sérgio Buarque de Holanda (2014, p. 92), demonstrando as verdadeiras raízes do Brasil, faz a seguinte indagação: como esperar transformações profundas em país onde eram mantidos os fundamentos tradicionais da situação que se pretendia ultrapassar?

Todos têm (temos) a missão e a responsabilidade de mudar a dinâmica incontestável, mas não inelutável, da violência racial silenciosa (nem sempre) e da mentalidade de casa-grande (HOLANDA, 2014, p. 103).

A transformação deve partir não apenas externamente, mas também internamente. Exige-se um olhar para si, com autocrítica e fomento à mudança estrutural a partir da realidade interna.

Dar o exemplo para construir e fomentar o progresso. Esse é o papel iluminista, contramajoritário e vanguardista da instituição.

O racismo defensorial representa a negação da expressão democrática e a contradição da proteção integral dos necessitados e vulnerabilizados, além da perpetuação da naturalização da violência racial e a permanência do quatro estrutural desigual, sem solidariedade estatal.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARRUDA, Ígor Araújo de. A Defensoria Pública no enfrentamento do autoritarismo estrutural. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-mar-03/tribuna-defensoria-defensoria-publica-enfrentamento-autoritarismo-estrutural. Acesso em 19 mai. 2021.

_________________________. Defensoria Pública na concretização de políticas públicas: controle da aparente discricionariedade administrativa governamental. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22066/defensoria-publica-na-concretizacao-de-politicas-publicas. Acesso em 19 mai. 2021.

_________________________. Autonomia pressuposta aos papéis iluminista e contramajoritário da Defensoria Pública. Disponível em: https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-constitucional/autonomia-pressuposta-aos-papeis-iluminista-e-contramajoritario-da-defensoria-publica/. Acesso em 23 mai. 2021.

GOMES, Laurentino. 1889: como um imperador cansado, um marechal vaidoso e um professor injustiçado contribuíram para o fim da monarquia e a proclamação da República no Brasil. 1. ed. São Paulo: Globo, 2013.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 27 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

OLIVEIRA, Alfredo Emanuel Farias de; ROCHA, Jorge Bheron; PITTARI, Mariella; MAIA, Maurilio Casas. Teoria Geral da Defensoria Pública. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2020. 

WALLIN, Claudia. Um país sem excelências e mordomias. São Paulo: Geração Editorial, 2014.


[1] Defensor Público em Pernambuco desde 2015, ex-defensor público no Maranhão (2012-2015), autor do livro “Defensor Público Estadual: guia completo como se preparar para a carreira” (JusPodivm, 2019, 2.a ed.), colaborador no livro “Teoria Geral da Defensoria Pública” (D’Plácido, 2020) e pós-graduado em Direito Público.

[2] “Sem embargo, a atuação da Defensoria Pública da União como ombudsman está delimitada pelo escopo de suas finalidades institucionais, que, nos termos do art. 134 da CF, se ligam especialmente à defesa dos hipossuficientes. Não se trata, portanto, de um ombudsman geral, para todo e qualquer assunto” (parecer do professor constitucionalista Daniel Sarmento solicitado pela ANADEF, em razão das EC n. 74/2013 e 80/2014, encontrado no livro Teoria Geral da Defensoria Pública, p. 124-127).

[3][3] “O passado do povo brasileiro o condena. Somos herança da escravização, do capitalismo selvagem, do patrimonialismo e da corrupção em suas múltiplas formas, do autoritarismo, mandonismo, patriarcalismo, paternalismo, favoritismo, racismo, sexismo e outras máculas” (ARRUDA, 2020).

[4] Disponível em: https://pesquisanacionaldefensoria.com.br/.

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Sobre o autor
Ígor Araújo de Arruda

Defensor público em Pernambuco desde 2015. Ex-defensor público no Maranhão entre 2012 e 2015. Autor do livro "Defensor Público Estadual: guia completo sobre como se preparar para a carreira" (JusPodivm, 2 edições). Coautor nos livros "Teoria Geral da Defensoria Pública" (D'Plácido, 2020) e “Defensoria Pública, Constituição e Ciência Política” (JusPodivm, 2021). Aprovado defensor público no I concurso público da Defensoria Pública da Paraíba. Nomeado analista judiciário do TJPB. Aprovado analista jurídico da SESCOOP/PB (2010). Ex-advogado privado na Paraíba. Ex-membro da Comissão de Direitos Difusos e Relações de Consumo da OAB/PB. Autor de artigos jurídicos, com especial citação no STJ (RHC 61.848-PA, T5, DJe 17.08.2016). Ex-professor e coordenador no curso Mege entre 2015 e 2021. Pós-graduado em Direito Público (2011-2012).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARRUDA, Ígor Araújo. Racismo defensorial: perpetuação da violência pela instituição ombudsman. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6688, 23 out. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/90822. Acesso em: 25 dez. 2024.

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