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A boa-fé objetiva e seus institutos

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26/10/2006 às 00:00

Resumo:

Resumo sobre Boa-fé Objetiva


  • O texto discute a boa-fé objetiva no contexto do novo Código Civil, abordando os institutos relacionados como supressio, surrectio, venire contra factum proprium e tu quoque.

  • Explora as mudanças de paradigma no direito contratual, destacando a influência dos valores constitucionais e a inserção de uma dimensão ética nas relações contratuais.

  • Analisa a aplicação prática da boa-fé objetiva através de exemplos jurisprudenciais, destacando a importância de uma abordagem mais frequente e profunda desses institutos no meio jurídico.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Síntese: O texto trata da boa-fé objetiva e dos institutos a ela relacionados , como: supressio, a surrectio, venire contra factum proprium e tu quoque.

Sumário: 1-Introdução. 2- A Boa-fé Objetiva.. 3- Institutos Relacionados à Boa-fé Objetiva. 3-1) Supressio. 3-2) Surrectio. 3-3) Venire contra Factum Proprium. 3-4) Tu quoque. 4- Deveres Anexos ou Laterais. 5- Conclusões


1- INTRODUÇÃO

Embora o novo Código Civil tenha mantido em muitos aspectos a disciplina do revogado diploma, em outras searas inovou, seja de forma originária, seja pela incorporação de avanços já consagrados na doutrina e na jurisprudência.[1]

A exata compreensão e aplicação do novo código carece, no entanto, de uma premissa que perpassa pela constatação da mudança de paradigmas, que por vezes passa despercebida na análise de institutos levada a efeito de forma pontual.

Os ordenamentos jurídicos, desde suas formas mais rudimentares até suas expressões mais complexas, são caracterizados pelos fatores econômicos, sociais e culturais que marcam o tempo considerado. Esta influência somente passou a ser melhor compreendida a partir da estruturação científica e dogmática do Direito, que se corporificou sobretudo a partir do século XVIII, com o Iluminismo.

Grande parte desta estruturação ainda deita raízes em nossos dias, com maior ou menor intensidade, e traz em si a marca deste período histórico, cuja característica maior é uma matriz hermenêutica calcada no capitalismo e no indivíduo.

Estes reflexos são visíveis em todos os quadrantes do Direito. O constitucionalismo do período iluminista prima pela libertação do indivíduo dos grilhões do Estado, no exato contraponto do absolutismo monárquico que o precedeu. Daí decorrem os direitos fundamentais de primeira geração, de conteúdo primordialmente limitativo da ação estatal, mas cujos enunciados não estão comprometidos com uma ação transformadora do contexto social.

O direito processual civil, cujas bases encontram seu fundamento nos estudos que então começaram a ser desenvolvidos, volta-se a tratativa dos conflitos de direito privado, refletindo as feições de um direito material tisnado pelo mesmo matiz: o indivíduo e os atos negociais.

Este é o período das grandes codificações, alçando especial realce o código napoleônico, pioneiro ao qual seguem diplomas como o BGB alemão.

O código civil brasileiro de 1916 é obra de um reconhecido pandectista, Clóvis Beviláqua, e espelha esta visão romanista do direito, eqüivale dizer, visão privatista.

Lastimavelmente o Direito jamais consegue acompanhar a dinâmica social. Não é de causar surpresa, portanto, que muitas das matrizes que nortearam a formação das bases dogmáticas do Direito positivo do século XVIII começassem a apresentar defasagens crônicas, gerando pontos de tensão.

O paradigma constitucional do liberal–iluminismo, pouco mais de cem anos após as Constituições Francesa e Norte-americana, começou a ceder passo ao constitucionalismo social, com seus direitos de segunda geração, cujo conteúdo, antes de primar por meras limitações à ação estatal, passa a reconhecer obrigações positivas ao Estado.

O desenrolar deste processo evolutivo culminará, no decorrer do século XX, na concepção dos direitos de terceira, quarta e mesmo quinta geração, implicando na necessidade de conformação jurídica diferenciada para certas espécies de direitos e, em decorrência, em relação a mecanismos processuais aptos e ensejar-lhes concreta materialização.

Nesta esteira temos o direitos do consumidor, da infância e juventude, do idoso, ambiental etc...Não obstante, ainda restavam alguns bastiões de resistência à publicização do Direito, quais sejam o direito civil e o direito comercial.

No caso do vetusto Código Comercial, há parte dele ainda vigente, sendo que, até o advento do atual Código Civil, era o diploma básico do direito comercial, ainda que complementado por uma vasta gama de leis extravagantes. No âmago do direito comercial, marcante foi a modificação do direito empresarial, com sua base assentando-se na teoria da empresa e não mais nos atos de comércio.

Trata-se de um visível corolário da consideração da atividade produtiva organizada sob o prisma publicístico, ou seja, com amplas repercussões diante do objetivo de assegurar a dignidade da pessoa humana e a erradicação dos processos de marginalização social e econômica, o que caracteriza uma visão solidarista, de par com a inegável vantagem da superação da tormentosa teoria dos atos de comércio.

No campo do Direito Civil, em algumas áreas se observam avanços mais do que em outras. Exemplo significativo é o Direito de Família, onde grande parte das alterações legislativas operadas pelo novo Código Civil representam a consolidação legislativa de avanços introduzidos pela doutrina e, especialmente, pela jurisprudência. Outras áreas, por sua natureza, apresentaram maiores resistências a modificações, como o direito das coisas, o direito das obrigações e do direito contratual.

Interessa-nos abordar institutos relacionados a uma das significativas inovações relativas ao direito contratual, qual seja, a consagração da boa-fé objetiva, a qual doravante será objeto de enfoque.

Era mister, no entanto, tecer estas breves considerações acerca da mudança dos paradigmas nas matrizes hermenêuticas, premissa necessária para que compreendamos com maior clareza a mudança de postura que passa a ser requerida a partir de uma visão mais solidarista do Direito Civil, a qual não deve ser olvidada por quantos se coloquem a analisar a matéria, como conseqüência da "constitucionalização do direito civil".


2- A BOA-FÉ OBJETIVA

Como conseqüência do individualismo que marca a orientação do Direito no despontar de sua estruturação dogmática, a liberdade contratual foi alçada à condição de um dos fundamentos do direito contratual. Temos, portanto, um modelo que trabalha primordialmente com o indivíduo. Assim sendo, a boa-fé de cunho subjetivo é que prepondera, havendo algumas menções a ela no revogado código civil.

Isso não significa dizer que a boa-fé objetiva não grassasse alguma acolhida, em grau cada vez mais expressivo na doutrina e na jurisprudência. Em termos legislativos, o estabelecimento de padrões objetivos de atuação continuou a esbarrar na disciplina imposta ao código civil pela influência privatista de suas origens.

Alguns campos do direito contratual se mostraram mais permeáveis aos novos influxos da constitucionalização do direito privado, permitindo, inclusive, a formação de microssistemas. É o caso do Direito do Consumidor.

O artigo 5º, inciso XXXII, da CF/88, carreou ao Estado a obrigação de promover a defesa do consumidor. A defesa do consumidor também é um dos princípios da ordem econômica, conforme preconiza o artigo 170, inciso V, da Carta Política. Com o advento do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90), que dá concretude e materialização aos comandos constitucionais, foi a boa-fé objetiva consagrada. A propósito, lembra Nelson Nery Júnior que:

"Embora o CC de 1916 não contivesse preceito expresso sobre a boa-fé como regra geral que deve presidir as relações civis, essa circunstância decorria dos princípios gerais do direito. O princípio da boa-fé é, agora, positivado pelo CDC 4º, caput e III, bem como pelo CDC 51, IV, de modo que, para as relações de consumo, deixou de ser princípio geral de direito para consubstanciar-se em princípio geral das relações de consumo. Na verdade, existe um duplo regime jurídico para a boa-fé objetiva nas relações de consumo: a) cláusula geral de boa-fé objetiva (CDC 4º, caput e III); b) conceito legal indeterminado (CDC 51 IV)."[2]

Salienta o mencionado autor que "ainda que o contratantes nada disponham a respeito no instrumento do contrato, reputa-se como inscrita e ínsita a todo contrato de consumo a cláusula geral de boa-fé, segundo a qual ambos os contratantes tem de portar-se de acordo coma boa-fé."[3]

Mas faltava uma cláusula geral relativa a boa-fé objetiva, e esta somente adveio com o advento do novo Código Civil, que a prevê em seu artigo 422. A boa–fé objetiva estabelece um padrão objetivo de conduta a ser seguido pelos contratantes. Insere nos contratos um componente ético, caracterizado pela exigência de um comportamento probo, leal, verdadeiro, dos contratantes, repelindo a utilização de estratagemas, a reserva mental e a presença de desproporção iniqüa na avença, consideradas quaisquer fases do negócio. A respeito, afirma Jones Figueirêdo Alves que"o princípio a boa fé não apenas reflete uma regra de conduta. Consubstancia a eticidade orientadora da construção jurídica do novo Código Civil."[4]

Desta forma, a boa-fé objetiva apresenta um componente positivo, uma imposição que serve de parâmetro para aferição da atuação dos contratantes, enquanto que a boa-fé subjetiva, carecendo de perquirição acerca do componente anímico do agente, parte do pressuposto inverso, ou seja, o que a má-fé é que tem que ser caracterizada.

Em um regime de aplicação da boa-fé objetiva, passamos a ter um parâmetro objetivo, de forma que o comportamento que com ele não condiz, independentemente do aspecto anímico do agente, viola o dever de atuação imposto, e induz conseqüências práticas em favor do prejudicado. Em um regime iluminado pela boa-fé subjetiva, antes importa a intenção do agente do que a comparação de seu comportamento objetivamente considerado frente a um modelo de conduta.

Não prescindindo a boa-fé subjetiva da análise do elemento anímico, é ela, ou melhor, o seu contraponto, a má-fé, de constatação mais difícil, já que identificar a real intenção do contratante constituiu um tormentoso problema na medida em que a aparência externa (objetiva) de cada ato pode prestar-se a múltiplas interpretações no que concerne ao seu aspecto subjetivo.

A adoção da boa–fé objetiva como cláusula geral a ser aplicada a todos os contratos, representa a mudança de paradigma no direito contratual, a qual também pode ser constatada a partir da adoção da função social do contrato. Esta mudança de paradigma se marca pela consideração de que o contrato não é apenas instrumento a serviço de interesses individuais, apresentando uma dimensão que repercute frente a toda a sociedade e que apresenta fundamental importância na consecução de objetivos constitucionais, os quais representam, de seu turno, etapas necessárias para a materialização dos valores constitucionais fundamentais. Como lembra o Desembargador Rui Portanova, no julgamento do Agravo de Instrumento nº 70012352811, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS:

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"O Novo Código Civil muda o paradigma adotado pelo Código de 1916. Baseia-se não mais num modelo fechado como o anterior, com fulcro nas codificações oitocentistas, mas em modelos abertos, em conceitos jurídicos indeterminados, nas denominadas cláusulas gerais.

A cláusula geral da boa-fé objetiva é a técnica legislativa que se constitui em instrumento que possibilita o cotejo das relações jurídicas obrigacionais não mais sob o ângulo da descrição puramente legal ou da tutela do interesse individual, mas sob o influxo da finalidade social e ética da obrigação, tanto do objeto da relação, quanto daqueles que se obrigam"[5]

O contrato é uma das principais formas de movimentação de riqueza, envolvendo aspectos relativos a atividades laboral e ao meio ambiente. A circulação e a distribuição de riqueza são instrumentos imprescindíveis para assegurar-se a "dignidade da pessoa humana" (artigo 1º, inciso III, da CF/88), pois esta carece da presença de uma dimensão material que permita à pessoa desenvolver todas as suas potencialidades.

Esta mesma dimensão material é também intimamente relacionada com a busca de uma "sociedade livre, justa e solidária" (artigo 3º, inciso I, da CF/88). Uma sociedade nunca será efetivamente livre se aos seus indivíduos faltarem condições econômicas de subsistência e de aprimoramento individual. Por outro lado, a justiça (social) e o solidarismo perpassam por uma distribuição equilibrada das riquezas e recursos.

O desequilíbrio na distribuição das riquezas, que pode ser favorecido por uma disciplina contratual onde não esteja presente uma dimensão ética (boa-fé objetiva) também conspira contra a garantia do "desenvolvimento nacional" (artigo 3º, inciso II, da CF/88)

Da mesma forma, resta induvidoso que a erradicação da pobreza e da marginalização social e das desigualdades sociais e regionais (artigo 3º, inciso III, da CF/88) carece de instrumentos contratuais adequados, infensos a práticas predatórias e iníquas, ainda que revestidas de aparência de legalidade formal.

Percebe-se claramente que a boa fé objetiva concretiza a introdução de uma dimensão ética na relação contratual e espelha uma das mais visíveis facetas da "constitucionalização do direito civil".


3-INSTITUTOS RELACIONADOS À BOA FÉ OBJETIVA

A adoção da boa–fé objetiva repercute no contrato através de pelo menos duas ordens de conseqüências.

A primeira refere-se a sua utilização como critério de referência hermenêutica. A segunda diz respeito à ampliação ou retração do conteúdo obrigacional.

As cláusulas contratuais expressam a vontade do contratante através da linguagem. A linguagem, como cediço, não se limita ao idioma falado ou escrito e tampouco apresenta sentido unívoco, ainda que considerado um mesmo local e momento histórico. Aliás, como recentemente vem demonstrando a filosofia da linguagem, que se substitui à filosofia da consciência (aristotélico-platõnica), a linguagem, antes de ser mera forma de representação da realidade, em verdade condiciona e conforma a própria compreensão desta realidade.

Não é nosso objetivo adentrar nesta discussão acerca da natureza e da função da linguagem, tema, no entanto, que deve receber hoje cada vez maior atenção do operador jurídico e do jurista, pois, afinal de contas, trabalhamos com linguagem, trabalhamos a partir de um discurso de convencimento. Todavia, é importante ressaltar que a linguagem é um fenômeno complexo, não sendo incomum (pelo contrário), a criação de litígios a partir da interpretação da redação de cláusulas contratuais. Surge a necessidade de interpretação das cláusulas contratuais. Segundo Maria Helena Diniz[6], três modalidades de interpretação do ato negocial se apresentam, a saber: declaratória, integrativa e construtiva.

Na primeira, a declarativa ou declaratória, busca-se descortinar a real vontade das partes. Na integrativa, suprem-se lacunas na avença. Na construtiva, o objetivo é a reconstrução do negócio.

O anterior código previa, no artigo 85, que deveria preponderar a intenção das partes sobre a literalidade. O dispositivo foi mantido no artigo 112 do atual código. Mas além da vontade das partes, deverá ser tomada em linha de conta na interpretação das cláusulas contratuais a boa-fé objetiva (artigo 113 do CC). Então, além da vontade das partes, deverá ser tomado em linha de conta o paradigma de comportamento representado pela boa-fé, que pode até implicar no afastamento da vontade das partes.

Mas além de representar um novo componente hermenêutico, a boa-fé pode atingir diretamente o componente obrigacional, seja para ampliar-lhe o conteúdo, seja para minorá-lo. No caso da redução da amplitude obrigacional, temos quatro institutos: supressio, surrectio, venire contra factum proprium e tu quoque.

Serão adiante analisados.

3.1) Supressio

A supressio ou Verwirkung da doutrina alemã, consiste na redução do conteúdo obrigacional pela inércia de uma das partes em exercer direito ou faculdades, gerando na outra legítima expectativa.

A faculdade ou direito consta efetivamente do pacto, todavia, a inércia qualificada de uma das partes gera na outra a expectativa legítima (diante das circunstâncias) de que a faculdade ou direito não será exercido, ou, por outras palavras, "verifica-se a supressio quando, pelo modo como as partes vêm se comportando ao longo da vida contratual, certas atitudes que poderiam ser exigidas originalmente passam a não mais poderem ser exigidas na sua forma original (sofrem uma minoração), por ter se criado uma expectativa de que aquelas disposições iniciais não seriam exigidas daquela forma inicialmente prevista."[7]

Advém, daí a supressão de direito ou faculdade ou a redução de seu alcance. A respeito, apostila Judith Martins Costa:

"Por igual atua a boa-fé como limite ao exercício de direitos subjetivos nos casos indicados sob a denominação de ´supressio´. Segundo recente acórdão do Tribunal de Justiça do RS, esta ‘constitui-se em limitação ao exercício de direito subjetivo que paralisa a pretensão em razão da boa-fé objetiva’. Exige-se, para a sua configuração, "(I) o decurso de prazo sem exercício do direito com indícios objetivos de que o direito não mais seria exercido e (II) desequilíbrio, pela ação do tempo, entre o benefício do credor e o prejuízo do devedor".Diferentemente da ´supressio´, que indica o encobrimento de uma pretensão, coibindo-se o exercício do direito em razão do seu não exercício, por determinado período de tempo, com a conseqüente criação da legítima expectativa, à contraparte, de que o mesmo não seria utilizado, outra figura, a ´surrectio´, aponta para o nascimento de um direito como efeito, no tempo, da confiança legitimamente despertada na contraparte por determinada ação ou comportamento. Assim ocorreu ao examinar-se lide decorrente de contrato de locação, que previa a resilição unilateral, mediante prévio aviso de 60 (sessenta) dias à contraparte, por carta protocolada que expressasse o poder extintivo da denúncia contratual, contemplando, outrossim, a possibilidade de renovação do contrato, desde que, por meio de carta protocolada, a parte interessada assim expressasse sua vontade com antecedência mínima de 60 (sessenta) dias. Por um período superior a 12 (doze) anos, as partes vinham prorrogando a avença, sempre mediante o recurso à formalidade do envio de cartas. Em certa ocasião, contudo, em resposta ao pedido de prorrogação feita pelo locatário, respondeu a locadora que não pretendia renová-lo. O debate centrou-se na argumentação, do lado do locatário, do "direito à automaticidade" da prorrogação; de outro, por parte da locadora, da legitimidade de sua pretensão a resilir a avença.A decisão, embora considerando caber razão à locadora, no sentido da inocorrência da ‘automaticidade’ da prorrogação contratual, uma vez terem as partes sempre observado o requisito da forma contratualmente prevista, entendeu, porém, obstado o poder formativo extintivo de resilição (denúncia contratual), apontando, conseqüentemente, ao nascimento do direito à prorrogação pelo fato de, no período imediatamente anterior ao ´dies ad quem´ do prazo contratual, ter a locadora imposto ao locatário a realização de despesas com reformas no prédio, levando-o a acreditar que não romperia, inopinadamente, uma tradição de 12 (doze) anos no sentido da continuidade da relação contratual. Nos fundamentos do acórdão está o princípio da boa-fé objetiva, como proteção à confiança traída. Esses exemplos são suficientes, no meu entender, para demonstrar como vem a jurisprudência brasileira construindo a normatividade do princípio da boa-fé objetiva como norma reitora da proteção da confiança, da colaboração e da consideração com os interesses alheios que presidem a relação obrigacional."[8]

A aplicação da boa fé sob a forma da supressio tem recebido respaldo da jurisprudência, exigindo-se, contudo, para sua configuração, "decurso de prazo sem exercício do direito com indícios objetivos de que o direito não mais seria exercido e desequilíbrio, pela ação do tempo, entre o beneficio do credor e o prejuízo do devedor."[9] Também tem sido exigida a presença de desequilíbrio no contrato.[10]

3.2) Surrectio

A surrectio, ao contrário da supressio, representa uma ampliação do conteúdo obrigacional. Aqui, a atitude de uma das partes gera na outra a expectativa de direito ou faculdade não pactuada. Ordinaraimente, a doutrina tem apontado para a necessidade da presença de três requisitos, conforme lembram Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro:.

"Exige-se um certo lapso de tempo, por excelência variável, durante o qual se atua uma situação jurídica em tudo semelhante ao direito subjetivo que vai surgir; requer-se uma conjunção objectiva de factores que concitem, em nome do Direito, a constituição do novo direito; impõe-se a ausência de previsões negativas que impeçam a surrectio"[11]

A surrectio pode ou não vir acompanhada da supressio.

3.3) Venire contra factum proprium

Nesta hipótese, o contratante assume um determinado comportamento o qual é posteriormente contrariado por outro comportamento seu. A respeito assertoa Nelson Nery Junior:

"Venire contra factum proprium. A locução ‘venire contra factum proprium’ traduz o exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente pelo exercente (Menezes Cordeiro, Boa-fé, p. 743). ‘Venire contra factum proprium’ postula dois comportamentos da mesma pessoa, lícitos em si e diferidos no tempo. O primeiro - factum proprium - é, porém, contrariado pelo segundo. Esta fórmula provoca, à partida, reações afectivas que devem ser evitadas (Menezes Cordeiro, Boa-fé, p. 745). A proibição de venire contra factum proprium traduz a vocação ética, psicológica e social da regra ‘pacta sunt servanda’ para a juspositividade (Menezes Cordeiro, Boa-fé, p. 751)."[12]

O comportamento anterior gera expectativa na outra parte a qual é frustrada pela ação do contratante que antagoniza seu anterior posicionamento. A proibição relaciona-se á confiança recíproca,o que nos é lembrado por Judidth Martins Costa, in verbis:

"A proibição de toda e qualquer conduta contraditória seria, mais do que uma abstração, um castigo. Estar-se-ia a enrijecer todas as potencialidades da surpresa, do inesperado e do imprevisto na vida humana. Portanto, o princípio que o proíbe como contrário ao interesse digno da tutela jurídica é o comportamento contraditório que mine a relação de confiança recíproca minimamente necessária para o bom desenvolvimento do tráfego negocial"[13].

O princípio tem ganho aplicação jurisprudencial. No âmbito do TJRS, encontramos emblemático exemplo no julgamento da Apelação Cível nº 70014739346, Quinta Câmara Cível, Relator: Umberto Guaspari Sudbrackm, cuja ementa é a seguinte:

"SEGURO-SAÚDE. LIMITAÇÃO DE LOCAL DE INTERNAÇÃO. INTERPRETAÇÃO DA CLÁUSULA À LUZ DO PRINCÍPIO CONTRATUAL DO ¿VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM¿. COBERTURA INDENVIDAMENTE NEGADA. As cláusulas limitativas devem ser interpretadas restritivamente, não se configurando, por si só, como abusivas, desde que não desvirtuem o próprio objeto do contrato. Em que pese haja cláusula de exclusão expressa quanto à prestação do serviço hospitalar ocorrer em determinado nosocômio, ¿in casu¿ tal limitação mostra-se indevida, porquanto em outras duas oportunidades o paciente recebeu autorização da seguradora para internar-se no hospital objeto da controvérsia. Houve, assim, segundo reza o princípio do ¿venire contra factum proprium¿, modificação da cláusula restritiva, devido ao comportamento das partes. Após o prévio consentimento da ré em autorizar, por duas ocasiões, a internação do autor no nosocômio cujos serviços estavam expressamente excluídos do plano de saúde, revela-se ilegal a negativa de nova internação, pois restringe direitos ou obrigações fundamentais inerentes à natureza do contrato, de tal modo a ameaçar seu objeto ou o equilíbrio contratual, pois esta limitação está burlando as expectativas legítimas do consumidor. Apelo provido."[14]

Em outra oportunidade, no julgamento da Apelação Cível nº 70011833878, Décima Nona Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, relativa a resolução contratual em promessa de compra e venda, o relator, Desembargador Carlos Rafael dos Santos Júnior, em seu voto ressaltou:

"Tendo preferido levar a cabo, ele mesmo, tarefa que, pelo contrato, cabia à promitente-vendedora, não pode o autor exigir mais do que o ressarcimento das despesas em valores corrigidos. O que penso não ser admissível é que o autor tome a iniciativa de regularizar o imóvel para, posteriormente, pedir a rescisão contratual por culpa da parte adversa, caracterizada pela inércia em praticar aqueles atos que o próprio autor já se encarregou de solucionar. Atos inequívocos no sentido de aperfeiçoar o contrato foram praticados pelo próprio autor. Tal comportamento significaria venire contra factum proprium. Comentando o instituto, o doutrinador Fernando Noronha, em sua obra O direito dos contratos e seus princípios fundamentais, anota que "Nesta categoria, cabem diversos casos em que o titular de um direito adota atitudes digamos deslealmente contraditórias, criando primeiro na contraparte uma confiança justificada em que não exercerá o seu direito e depois fazendo valer este. (...) O dever de não agir contraditoriamente, de atuar de acordo com os padrões exigíveis de correção e lealdade, é infringido sempre que o desrespeito pela confiança legítima da contraparte possa ser imputado ao titular do direito (...)." (São Paulo: Saraiva, 1994. p. 183 e 185).

É a situação que se afigura nos autos"[15]

Ainda no mesmo diapasão, interessante excerto extrai-se do julgamento da Agravo nº 70013531694, Décima Nona Câmara Cível do TJRS, relator o Desembargador Mário José Gomes Pereira:

"Cuida-se, aqui, de aplicar-se a Teoria dos Atos Próprios, obviando que o processo colida com o que, na prática, e de fato, plasmou-se num certo sentido por força do comportamento regular da parte autora. Inadmissível a postura (aqui, com o aforamento em questão) incongruente com a antes adotada, rejeitada a atitude oscilante, surpreendente, a atentar contra a realidade de fato já consolidada.

Neste rumo, a lição de Aguiar Júnior, ao ministrar que ‘a teoria dos atos próprios, ou a proibição de venire contra factum proprium protege uma parte contra aquela que pretenda exercer uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente. Depois de criar uma certa expectativa, em razão de conduta seguramente indicativa de determinado comportamento futuro, há quebra dos princípios de lealdade e de confiança se vier a ser praticado ato contrário ao previsto, com a surpresa e prejuízo à contraparte.’ (Aguiar Júnior, Ruy Rosado de. A Extinção do Contratos por Incumprimento do Devedor, 1ª ed. Rio de Janeiro, Aide, 1991)

Segundo Renan Lotufo, ‘a locução venire contra factum proprium, significa o exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente pelo exercente, ou seja, dois comportamento da mesma pessoa, que são lícitos entre si, e diferidos no tempo. O primeiro comportamento, o factum proprium, é contrariado pelo segundo.

O princípio do venire contra factum proprium tem fundamento na confiança despertada na outra parte, que crê na veracidade da primeira manifestação, confiança que não pode ser desfeita por um comportamento contraditório. Pode-se dizer que a inadmissibilidade do venire contra factum proprium evidencia a boa-fé presente na confiança, que há de ser preservada. Daí o dizer de Franz Wieacker (El principio general de la buena fé, p. 62): "...el principio del venire es una aplicación del principio de la ‘confianza en el tráfico jurídico’ y no una específica prohibición de la mala fe y de la mentira’. (Código Civil Comentado, vol. I, Parte Geral, ed. Saraiva, 2003, pág. 501/502).

Para Anderson Schreiber ‘O nemo potest venire contra factum proprium representa, desta forma, instrumento de proteção a razoáveis expectativas alheias e de consideração dos interesses de todos aqueles sobre quem um comportamento de fato possa vir repercutir. Neste sentido, o princípio de proibição ao comportamento contraditório insere-se no núcleo de uma reformulação da autonomia privada e vincula-se diretamente ao princípio constitucional da solidariedade social, que consiste em seu fundamento normativo mais elevado.’ (A proibição de comportamento contraditório: tutela da confiança venire contra factum proprium, Rio de Janeiro: Renovar, 2005, pág. 269/270)

‘Nestes termos, como já decidiu o Colendo Superior Tribunal de Justiça, para se ter um comportamento por relevante, há de ser lembrada a importância da doutrina sobre os atos próprios. Assim, "o direito moderno não compactua com o venire contra factum proprium, que se traduz como o exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente (MENEZES CORDEIRO, Da Boa-fé no Direito Civil, 11/742). Havendo real contradição entre dois comportamentos, significando o segundo quebra injustificada da confiança gerada pela prática do primeiro, em prejuízo da contraparte, não é admissível dar eficácia à conduta posterior.’ (Resp n. 95539-SP), onde restou consignado pelo então relator, Min. RUY ROSADO que, o sistema jurídico nacional, "deve ser interpretado e aplicado da tal forma que através dele possa ser preservado o princípio da boa-fé, para permitir o reconhecimento da eficácia e validade de relações obrigacionais assumidas e lisamente cumpridas, não podendo ser a parte surpreendida com alegações formalmente corretas, mas que se chocam com os princípios éticos, inspiradores do sistema.’

Neste cenário, como a teoria dos atos próprios é um importante vetor interpretativo no combate ao abuso do direito, avigoro a sentença, desprovendo o presente recurso."[16]

Vale ressaltar que ambos os atos devem ser lícitos, pois se a mudança de posicionamento do contratante implicar em ato ilícito, o fundamento da revisão será outro, ou seja o abuso de direito, que se constitui em fato ilícito à luz do artigo 187 do Código Civil.

3-4) Tu quoque

A locução significa "tu também" e representa as situações nas quais a parte vem a exigir algo que também foi por ela descumprido ou negligenciado.

Em síntese, a parte não pode exigir de outrem comportamento que ela própria não observou. Exemplo do instituto está no artigo 150 do Código Civil.

Se a parte "a" descumpre determinada cláusula bilateral, está legitimando a parte "b" pressupor que tal cláusula não é essencial ou que seu descumprimento será tolerado. Gerada expectativa por fato próprio, não ressoa ético aquele que anteriormente não observou um comportamento exigi-lo de outrem.

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Sobre o autor
Marcelo Colombelli Mezzomo

Ex-Juiz de Direito no Rio Grande do Sul. Professor.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MEZZOMO, Marcelo Colombelli. A boa-fé objetiva e seus institutos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1212, 26 out. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9087. Acesso em: 26 dez. 2024.

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