SUMÁRIO: 1 introdução. 2 esboço histórico das contribuições especiais. 3 as contribuições especiais no contexto jurídico-pátrio. 3.1 a sua natureza jurídica: as várias classificações propostas pela doutrina. 3.2 o reconhecimento da sua natureza jurídica tributária. 3.3 as contribuições especiais como espécie tributária autônoma. 3.4 o seu conteúdo finalístico como fator essencial. 3.5 a referibilidade da atividade estatal ao contribuinte das contribuições especiais. 4 a competência constitucional das pessoas políticas para instituir contribuições. 5 as espécies de contribuições especiais. 5.1 as contribuições sociais. 5.1.1 as contribuições sociais gerais. 5.1.2 as contribuições sociais de seguridade social. 5.2 as contribuições de interesse de categorias profissionais ou econômicas. 5.3 as contribuições de intervenção no domínio econômico. 5.4 a contribuição para o custeio do serviço de iluminação pública. 6 princípios constitucionais aplicáveis à imposição das contribuições especiais. 7 conclusão. Bibliografia.
1 INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem por escopo a análise do regime jurídico das chamadas contribuições especiais no direito brasileiro. Em nossa abordagem, buscamos levantar, preliminarmente, o histórico dessas contribuições, bem como os motivos determinantes do seu surgimento, reportando-nos aos acontecimentos econômicos e sociais que tiveram lugar em meados do século passado, no pós-guerra, como decorrência do Estado social e interventor.
Buscamos, na seqüência, posicionar as contribuições especiais no contexto jurídico pátrio, enfrentando o problema da sua natureza jurídica, com a visita às várias classificações propostas pela doutrina, concluindo pela sua natureza indiscutivelmente tributária, com supedâneo no Texto Constitucional.
Explicitada a natureza jurídica tributária das contribuições especiais, partimos para a tarefa de situá-la no contexto tributário, enfrentando a questão da delimitação acerca da espécie tributária na qual deve ser a mesma classificada, ou se, ao contrário, deve ser ela catalogada como espécie tributária autônoma, diferente das figuras clássicas a que alude o artigo 5.° do Código Tributário Nacional.
Ao depois, destacamos o entendimento unânime da doutrina segundo o qual o conteúdo finalístico das contribuições é fator indissociável da natureza destas, circunstância que as diferencia dos impostos que, por expressa disposição constitucional, têm vedada a vinculação de suas receitas a órgão, fundo ou despesas específicos.
Foi enfrentada, ainda, a questão da necessidade da existência de referibilidade ao sujeito passivo das contribuições da atividade estatal que deu causa à sua instituição.
Feitas todas essas abordagens, voltamo-nos, finalmente, à análise das diversas espécies de contribuições especiais: as contribuições sociais gerais, as contribuições sociais de seguridade social, as contribuições de interesse de categorias profissionais e econômicas, as contribuições de intervenção no domínio econômico e, por fim, a contribuição para o custeio do serviço de iluminação pública, com a busca das peculiaridades de cada uma desses grupos de exações, bem como, com a identificação particular das várias imposições existentes, atinentes à cada grupo, com a indicação das normas de direito positivo que sobre elas versam.
No desenvolvimento desta tarefa socorremo-nos das lições da doutrina e da jurisprudência sobre o tema, trazendo à baila as diversas posições existentes sobre um mesmo tema, filiando-nos, em várias oportunidades, a esta ou aquela corrente de entendimento.
Nosso objetivo, como se vê, não foi, e nem poderia ser, tentar dizer, taxativamente, "o que é" ou "o que não é" a melhor forma do direito, encastelando-nos em verdades incontestáveis, eis que, como se sabe, em ciência, as perguntas são mais importantes que as respostas. Ou, se preferirmos, as respostas são importantes, sim, mas só na medida em que abrem espaços a novas perguntas.
2 ESBOÇO HISTÓRICO DAS CONTRIBUIÇÕES ESPECIAIS
No início do século XX percebeu-se a existência e relevância de algumas questões sociais, não conhecidas antes da Revolução Industrial, as quais se pode denominar de "efeitos colaterais" dos regimes capitalistas.
Problemas ligados ao conteúdo da relação de trabalho, à saúde e à educação pública passaram a chamar a atenção da sociedade e, por conseqüência, do próprio Estado.
As atribuições do Estado, até então guiadas pelo pensamento de cunho absenteísta liberal, alargaram-se, passando a merecer a atenção estatal além dos temas sociais, aqueles relacionados com a economia e o meio- ambiente.
Na segunda metade do século, no período do pós-guerra, houve uma intensificação da atividade legislativa estatal voltada para a disciplina da economia, por meio da intervenção estatal no domínio econômico, da criação de regras voltadas a conter a formação de trustes etc.
Consolidava-se a convicção de que não mais poderia prosperar a idéia liberal segundo a qual a sociedade civil seria suficiente para realizar todos os objetivos por ela pretendidos, sem a interferência do Estado, apenas com as regras auto-reguladoras do mercado. Ganhava corpo a percepção nítida de que o alcance de determinados objetivos só seria possível com a atuação positiva do Estado pautada na noção de solidariedade. Nasce, então, o denominado Estado Social (Welfare State).
Nesta perspectiva, as normas estatais deixam de representar veículos que continham somente limites dirigidos ao poder estatal, e passam a contemplar questões outras, em consonância com a noção de solidariedade típica do denominado Estado Social.
É neste contexto que surge a figura da contribuição, como exação cobrada pelo Estado.
As contribuições são, portanto, fruto do Estado social e interventor.
Para sua adequada compreensão impõe-se considerar as profundas alterações no papel do Estado e da Administração decorrentes da passagem de um Estado Liberal para um Estado Interventor nas ordens econômica e social.
No liberalismo, partia-se de uma separação entre sociedade e Estado para se defender a esfera jurídica individual dos cidadãos contra ingerências do Poder Público, tidas como agressivas. O Estado era considerado um "mal necessário", devendo cuidar estritamente das seguranças internas e externas, à Justiça e alguns outros poucos serviços públicos.
Com o advento do Estado Interventor restaram alteradas quantitativa e qualitativamente as formas de atuação do Poder Público. O Estado passa a intervir de forma mais freqüente na sociedade, tanto por meio da elaboração de normas como também mediante políticas públicas destinadas a por fim à miséria da classe operária, a fornecer prestações e utilidades materiais e a corrigir as disfunções do mercado. Passa a orientar e a regular a atividade econômica e mesmo a exercer atividades produtivas.
Os cidadãos, por sua vez, passam a se tornar dependentes da atuação dos poderes públicos. Aumenta a importância da atividade administrativa, uma vez que é por meio dela que o Estado passa a satisfazer as necessidades dos cidadãos. Os atos administrativos veiculam não mais apenas gravames, mas também vantagens para os particulares. Os indivíduos passam a desejar que o Estado atue em seu favor, concedendo-lhe uma licença, uma benefício previdenciário, uma subvenção. Estado e sociedade entrelaçam-se ainda mais e não de forma esporádica ou pontual.
Novos fins passaram a orientar a atuação estatal, dentre os quais se coloca a busca do bem-estar. Para atingir tais fins, o Estado teve de lançar mão também de novos meios.
A tributação, nessa perspectiva, como instrumento de obtenção de recursos para financiar as atividades do Poder Público, também sofreu modificações. As contribuições se revelam um instrumento de intervenção do Estado na economia e na ordem social.
Às espécies tributárias tradicionais se acrescentaram exações especiais, "sui generis", cuja inadequação aos esquemas tradicionais levou a que se cunhasse a expressão "parafiscalidade", como forma de enquadrar sua cobrança.
De se perceber, pois, que a noção de parafiscalidade mostra-se excessivamente marcada por componentes ideológicos típicos do Estado Liberal. A "fiscalidade" propriamente dita, a cobrança de impostos e taxas, destinava-se a atender necessidades e atividades típicas do Poder Público. As novas tarefas que este passou a exercer foram colocadas "ao lado" de referidas atividades tradicionais, como se não tivessem passado a constituir também atribuições estatais. Estar-se-ia, nesta linha de raciocínio, diante de necessidades "complementares", como a previdência social e os interesses de categorias econômicas e profissionais.
Seja como for, porém, resta clara a convicção de que o aparecimento das contribuições é decorrência direta do intervencionismo que caracteriza o Estado Moderno, particularmente como Welfare State, e a busca de um enquadramento jurídico da arrecadação vertida para a organização profissional, em moldes corporativistas, para a organização da economia e para a Seguridade Social.
3 AS CONTRIBUIÇÕES ESPECIAIS NO CONTEXTO JURÍDICO PÁTRIO
3.1 A SUA NATUREZA JURÍDICA : AS VÁRIAS CLASSIFICAÇÕES PROPOSTAS PELA DOUTRINA
A doutrina pátria não tem um posicionamento unânime quanto a natureza jurídica das contribuições especiais. Com efeito, embora a maior parte dos autores enxergue nessa espécie de exação a natureza jurídica de tributo, parte dela tem diversa opinião.
Leandro Paulsen é daqueles estudiosos que entendem ter as contribuições especiais a natureza jurídica tributária, afirmando ser possível vislumbrar na própria Constituição Federal quais as características muito bem definidas comuns a todas espécies tributárias:
a) obrigação pecuniária voltada ao custeio das atividades dos entes políticos ou outras atividades do interesse público; b) instituída por lei e independentemente da vontade do sujeito passivo; c) que não constitui sanção de ato ilícito. Tal decorre, segundo o autor, da circunstância de que em todas as normas existentes no Capítulo "Do Sistema Tributário Nacional" inserto na Constituição Federal, ser possível verificar-se que está a se cuidar de obrigações em dinheiro, tanto que há diversas referências à base de cálculo e alíquota. Ademais, tributa-se porque há a necessidade de recursos para manter as atividades a cargo do Poder Público, ou, ao menos, atividades que são do interesse público, ainda que desenvolvidas por outros entes. Também o caráter compulsório resta evidente na medida em que a Constituição coloca a lei, que a todos obriga, como fonte da obrigação tributária, tal como se vê do art. 150, I, do Texto Constitucional, o que, ao mesmo tempo, evidencia a sua natureza compulsória de obrigação "ex lege", marcada pela generalidade e cogência da lei, independente da concorrência da vontade do sujeito passivo, como para estabelecer o requisito formal para a instituição válida de tributos, qual seja, que se dê mediante lei em sentido estrito. Vê-se, ainda, que as diversas outorgas de competência se fazem em face de simples manifestações de riqueza do contribuinte (no caso dos impostos), de serviços específicos e divisíveis prestados pelos entes políticos, do exercício efetivo do poder de polícia, da realização de obra que implique riqueza para os proprietários de imóveis ou, ainda, em face da simples necessidade de buscar meios para custear determinadas atividades vinculadas a finalidades previstas no texto constitucional, com ou sem restituição. Em nenhum ponto, se tem a outorga de competência tributária em face de um ilícito; não guardam, as diversas espécies tributárias, nenhuma relação com o cometimento de ilícitos pelos contribuintes, decorrendo disso, pois, a noção de que tributo não constitui sanção de ato ilícito.Verificados tais traços, pondera Leandro Paulsen, estaremos, necessariamente, diante de um tributo, o que atrai a incidência do regime jurídico-tributário, a começar pelas limitações constitucionais ao poder de tributar e, no plano infra-constitucional, pelas normas gerais de direito tributário. [1]
Hugo de Brito Machado Segundo e Raquel Cavalcanti Ramos Machado, em escrito conjunto, asseveram que ao outorgar competência tributária às três esferas de poder político, a Constituição não define o que por tributo se deva entender, o mesmo acontecendo, por outro lado, com vários outros conceitos presentes em seu texto, a exemplo de soberania, Estado de Direito, povo, sociedade, entre muitos outros, pois presume alguma inteligência em seus intérpretes. Assim, o conceito de tributo pode ser extraído, dedutivamente, das demais disposições constitucionais.
Destacam citados autores, citando Geraldo Ataliba, que deparando-se o jurista com uma situação em que alguém esteja colocado na contingência de ter o comportamento específico de dar dinheiro ao estado (ou a entidade dele delegada por lei), deverá inicialmente verificar se se trata de: a) multa; b) obrigação convencional; c) indenização por dano; d) tributo. Assim, diante de ordenamentos jurídicos como o brasileiro, não haveria espaço para uma quinta classificação. Trata-se, destacam os autores nominados, de idéia já implícita na Constituição, em face da qual e dos conceitos extraídos do Código Tributário Nacional e do art. 9.° da Lei n.° 4.320/64, pode-se definir tributo como sendo toda prestação pecuniária compulsória, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei, cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada e cujo produto da arrecadação constitua receita pública derivada. [2]
Instaladas tais premissas e considerando que as contribuições se encaixam perfeitamente nesse conceito, concluem os autores referidos que sua natureza é inegavelmente tributária.
Hugo de Brito Machado compartilha desse entendimento majoritário na doutrina pátria, quando assevera:
É induvidosa, hoje, a natureza tributária dessas contribuições. Aliás, a identificação da natureza jurídica de qualquer imposição do Direito só tem sentido prático porque define o seu regime jurídico, vale dizer, define quais são as normas jurídicas aplicáveis. No caso de que se cuida, a Constituição afastou as divergências doutrinárias afirmando serem aplicáveis às contribuições em tela as normas gerais de Direito Tributário e os princípios da legalidade e da anterioridade tributárias, [...]. [3]
Também Paulo de Barros Carvalho não dissente deste entendimento, quando destaca que o legislador constituinte prescreve manifestamente que as contribuições são entidades tributárias, subordinando-se em tudo e por tudo às linhas definitórias do regime constitucional peculiar aos tributos. [4]
Roque Carrazza, se referindo ao artigo 149 da Constituição Federal, é categórico ao afirmar que basta a sua leitura para percebermos que todas as têm natureza nitidamente tributária, mesmo porque, com a expressa alusão aos arts. 146, III e 150, I e III, ambos da CF, fica óbvio que deverão obedecer ao regime jurídico tributário. [5]
Já Marco Aurélio Greco destoa dessa linha de pensamento, sustentando que o texto constitucional aponta para uma natureza não tributária das contribuições:
De fato, se o art. 149 determina seja aplicada a disciplina típica do Direito Tributário, se manda aplicar as normas gerais de Direito Tributário, se impõe limitações da legalidade, anterioridade e irretroatividade para as contribuições, é porque elas não estão dentro do âmbito tributário. Não pertencem a este gênero. Se estivessem, não precisaria mandar observar tais ou quais regras e critérios; se a intenção fosse dar-lhes a natureza tributária, bastaria incluir um item IV ao art. 145 e toda a sistemática e regime tributário seriam automaticamente de observância obrigatória. Ou então, bastaria determinar a aplicação integral do regime tributário e prever as exceções que julgasse pertinentes, como faz com os impostos. [6]
Trilhando um raciocínio algo parecido com o de Marco Aurélio Greco, Marçal Justen Filho, citado por José Eduardo Soares de Melo, afirma que ao prever, como regra geral, a submissão das contribuições ao regime tributário, a Constituição confirmou a inexistência de identidade total e rigorosa entre as duas figuras, eis que, se assim fosse, não teriam sentido as regras dos arts. 149 e 154, sendo suficientes a disciplina geral sobre tributos. Desta forma, conclui o autor, "as contribuições especiais sujeitam-se ao regime tributário, mas com determinados temperamentos, derivados de suas características". [7]
3.2. O RECONHECIMENTO DA SUA NATUREZA JURÍDICA TRIBUTÁRIA.
Não obstante as posições contrárias, que são minoritárias, não é possível deixar de concluir pela natureza eminentemente tributária das contribuições especiais no sistema constitucional brasileiro. As lições doutrinárias neste sentido, expostas no subitem anterior falam por si próprias.
Ora, afigura-se nos inescapável a conclusão de que tudo aquilo que está sujeito ao regime jurídico tributário é tributo. Neste particular, de extrema felicidade a conclusão de José Eduardo Soares de Melo:
De tudo resulta que as contribuições tipificam-se como tributos, por traduzirem receitas públicas derivadas, compulsórias, com afetação a órgão específico (destinação constitucional) e por observarem regime jurídico pertinente ao sistema tributário. [8]
Ademais, o próprio Supremo Tribunal Federal já reconheceu a natureza jurídica tributária das contribuições, quando, ao se manifestar sobre a Contribuição Social sobre o Lucro, dispôs que "Não é inconstitucional a instituição da contribuição social sobre o lucro das pessoas jurídicas, cuja natureza é tributária." [9]
3.3 AS CONTRIBUIÇÕES ESPECIAIS COMO ESPÉCIE TRIBUTÁRIA AUTÔNOMA
Explicitada a natureza jurídica tributária das contribuições especiais, resta ainda a delimitação acerca da espécie tributária na qual seria a mesma classificada ou se, ao contrário, estas devem ser catalogadas como espécie tributária autônoma, diferente das figuras clássicas a que alude o artigo 5.° do Código Tributário Nacional.
Sacha Calmon Navarro Coêlho é daqueles que afirma categoricamente que as contribuições são, em essência, impostos. Assevera que a Constituição de 1988 criou essas exações como "impostos afetados a finalidades específicas dando-lhes o nome de contribuições." [10]
Destoando desse entendimento, o notável Roque Antonio Carrazza ensina que as chamadas contribuições sociais são verdadeiros tributos, embora qualificados pela finalidade que devem alcançar, podendo, assim, revestir a natureza jurídica de imposto, de taxa ou de contribuição de melhoria, conforme as hipóteses de incidência e bases de cálculo que tiverem. Para explicitar essa afirmação, Carrazza assevera que a contribuição social para a seguridade social é, para o empregador, um imposto, cuja hipótese de incidência seria remunerar pessoa que paga previdência social, enquanto que para o empregado não passa de uma taxa de serviço, exigível porque os serviços previdenciários em geral lhe são postos a disposição. [11]
Já Luciano Amaro, após afirmar que o tratamento jurídico-constitucional diferenciado que é dado às contribuições especiais como um todo (destinação específica, a par de uma disciplina constitucional peculiar, no que respeita aos seus fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes) dificulta a afirmação singela de que essas contribuições são impostos, ou são taxas, ou ora são uma coisa, ora outra, termina por concluir :
Uma terceiro grupo de tributos é composto pelas exações cuja tônica não está nem no objetivo de custear as funções gerais e indivisíveis do Estado (como ocorre com os impostos) nem numa utilidade divisível produzida pelo Estado e fruível pelo indivíduo (como ocorre com os tributos conhecidos como taxa, pedágio e contribuição de melhoria, que reunimos no segundo grupo). A característica peculiar do regime jurídico deste terceiro grupo de exações está na destinação a determinada atividade, exercitável por entidade estatal ou paraestatal, ou por entidade não estatal reconhecida pelo Estado como necessária ou útil à realização de uma função de interesse público. Nesse grupo se incluem as exações previstas no art. 149 da Constituição, ou seja, as contribuições sociais, as contribuições de intervenção no domínio econômico e as contribuições de interesse de categorias profissionais ou econômicas, bem como a contribuição referida no art. 149-A da Constituição (acrescido pela EC n. 39/2002), destinada ao custeio do serviço de iluminação pública. [12]
Não obstante o indiscutível brilho das lições retro-expostas, temos para nós que quem melhor angularizou a questão foram Hugo de Brito Machado Segundo e Raquel Cavalcanti Ramos Machado, que asseveram que a única utilidade prática de se questionar a natureza jurídica específica de determinada exação é a de determinar quais normas jurídicas lhe são pertinentes. Assim, se considerado que a Constituição confere tratamento jurídico peculiar às contribuições e aos empréstimos compulsórios, pode-se dizer que a Constituição já os definiu como espécies distintas dos impostos, das taxas e das contribuições de melhoria, não tendo sentido dizer que são impostos na medida em que o seu disciplinamento jurídico é diferente. Terminam referidos juristas por concluir que uma explicação razoável para a posição das contribuições no quadro de espécies tributária é a oferecida por Hamilton Dias de Souza, que, na esteira de Geraldo Ataliba e A. D. Gianinni, as classifica como tributos vinculados a uma atividade estatal, situadas porém em posição intermediária entre impostos e taxas, mais próximas dos impostos (completa desvinculação) que das taxas (total vinculação), não pressupondo uma atuação estatal específica e divisível relativa ao contribuinte (taxas), mas também não incidindo sobre um fato desvinculado de qualquer atuação estatal relativa ao contribuinte (impostos). Existiria, assim, uma referibilidade indireta, de uma atuação estatal relacionada a um grupo determinado; o fato gerador pode até se assemelhar bastante ao dos impostos, mas só estará completo diante de uma atuação estatal relativa ao grupo no qual se situa o contribuinte, traço diferenciador das contribuições. [13]
3.4. O SEU CONTEÚDO FINALÍSTICO COMO FATOR ESSENCIAL
É praticamente unânime na doutrina o entendimento segundo o qual o conteúdo finalístico das contribuições é fator indissociável da natureza destas, diferenciando-as, por isso mesmo, dos impostos que, por expressa disposição constitucional (art. 167, IV), têm vedada a vinculação de suas receitas a órgão, fundo ou despesas específicos. São, portanto, as contribuições, tributo que se caracteriza pela respectiva finalidade. Representam, por isso mesmo, exceção ao art. 4.°, II, do Código Tributário Nacional, eis que o destino do produto de sua arrecadação é fundamental para caracterizá-la como tal e, sobretudo, emprestar juridicidade à sua exigência.
Para Zelmo Denari para a adequada identificação da natureza jurídica das contribuições especiais deve-se ter presente que somente podem estas ser instituídas "quando motivadas por qualquer forma de intervenção no domínio econômico, bem como no interesse das categorias profissionais ou econômicas, e mesmo no plano da seguridade dos trabalhadores urbanos e rurais". Assevera, ainda, que para distinguí-las das taxas e das contribuições de melhoria - também tributos vinculados -, basta considerar dois elementos fundamentais, se destacando entre estes o sentido finalístico, pelo que as contribuições da espécie vinculam o ente público a atuar, de uma forma interventiva, no domínio econômico, ou a prestar serviços de previdência ou assistência social aos trabalhadores e demais. [14]
Desta forma, a validade jurídica da norma instituidora da contribuição especial só pode ser reconhecida se efetivamente cumprida a finalidade prevista constitucionalmente, que determinou a sua criação. Assim, a correta destinação da respectiva receita assume relevância não só tributária como constitucional e legitimadora da competência. Se inexistente o órgão, a despesa ou a pessoa que fundamentou o exercício dessa competência, este será ilegítimo.
E nem se argumente que o art. 4.°, II, do Código Tributário Nacional baniu o critério da destinação do tributo como relevante juridicamente no cenário tributário pátrio. Luciano Amaro é contundente ao ensinar que nos dias atuais o critério do art. 4.°, II, do CTN não mais se mostra como parâmetro idôneo à determinação da natureza jurídica específica do tributo. Nesta linha, assevera Amaro, a propósito do tema:
Ou seja, nem se pode ignorar a destinação (como se se tratasse, sempre e apenas, de uma questão meramente financeira), nem se pode cercar o direito tributário com fronteiras tão estreitas que não permitem indagar do destino do tributo mesmo nos casos em que esse destino condiciona o próprio exercício da competência tributária. [15]
Sendo a contribuição um tributo que se identifica a partir da finalidade indicada na Constituição, a lei não pode criar uma contribuição e possibilitar que seus recursos sejam destinados para um fim distinto daquele que justificou essa exigência, sob pena de inconstitucionalidade.
Neste sentido o escólio do Ministro Carlos Velloso, do Supremo Tribunal Federal, citado por Hugo de Brito Machado:
Uma ressalva é preciso ser feita. É que caso há, no sistema tributário brasileiro, em que a destinação do tributo diz com a legitimidade deste e, por isso, não ocorrendo a destinação constitucional do mesmo, surge para o contribuinte o direito de não pagá-lo. Refiro-me às contribuições parafiscais - sociais, de intervenção no domínio econômico e de interesse de categorias profissionais ou econômicas, CF, art. 149 - e aos empréstimos compulsórios (CF, art. 148). Leciona Misabel Abreu Derzi que a ‘Constituição de 1988, pela primeira vez, cria tributos finalisticamente afetados, que são as contribuições e os empréstimos compulsórios, dando à destinação que lhe é própria relevância não apenas do ponto de vista do Direito Financeiro e Administrativo, mas igualmente de Direito Tributário’. E acrescenta a ilustre professora da UFMG, que ‘o contribuinte pode opor-se à cobrança de contribuição que não esteja afetada aos fins, constitucionalmente admitidos; igualmente poderá reclamar a repetição do tributo pago, se, apesar da lei, houver desvio quanto à aplicação dos recursos arrecadados. É que, diferentemente da solidariedade difusa ao pagamento de impostos, a Constituição prevê a solidariedade do contribuinte no pagamento de contribuições e empréstimos compulsórios e a conseqüente faculdade outorgada à União de instituí-los, de forma direcionada e vinculada a certos gastos. Inexistente o gasto ou desviado o produto arrecadado para outras finalidades não autorizadas na Constituição, cai a competência do ente tributante para legislar e arrecadar. (Misabel Abreu Machado Derzi, notas atualizadoras de Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar, 7.ª edição, de Aliomar Baleeiro, Forense, 1977, pp. 598-599) [16]
Parece induvidosa, pois, a conclusão de que segundo se extrai do regime constitucional das contribuições, existem dois elementos condicionantes fundamentais que devem ser atendidos na instituição dessa espécie tributária: 1.) o atendimento às finalidades fixadas previamente no texto constitucional (sociais, interventivas e corporativas) e, 2) a destinação do produto da arrecadação à realização dos citados fins constitucionais. Faltando algum dos requisitos citados haverá vício que poderá determinar a inconstitucionalidade da exigência e, por conseqüência, o correlato direito à restituição das quantias pagas indevidamente.
A doutrina brasileira parece trilhar firmemente esse caminho, Na obra coletiva "As contribuições no Sistema Tributário Brasileiro", apresentada a indagação de qual seria a conseqüência de eventual desvio na destinação de contribuições, a maioria dos autores distinguiu o desvio jurídico, assim entendido aquele autorizado ou determinado em lei, do desvio de fato, que se dá em contrariedade ao dispositivo de lei que determina a destinação. Comentando especificamente essa questão na sua apresentação da obra, Hugo de Brito Machado, seu coordenador, destaca uma súmula das diversas posições expostas no livro, não se furtando de, ao final, expor o seu pensamento:
No desvio jurídico, a própria contribuição seria inconstitucional, porquanto transformada em imposto. Já no desvio simplesmente de fato não haveria mácula na relação jurídica, cabendo ao Ministério Público, aos cidadãos através da ação popular, etc., obter a correção do destino dos recursos.
Um dos autores escreveu:
"Não há, neste último caso (de desvio de fato), como pretender invalidar as relações tributárias e dizer da inconstitucionalidade das leis em razão de ilícito administrativo posterior e cuja correção pode ser buscada.
Entendêssemos de modo diverso, teríamos, ainda, dificuldades importantes. Senão vejamos: supondo eventual desvio, quais as contribuições inválidas e sujeitas à devolução? Qual o montante desviado? Quais as competências passíveis de restituição? Como estabelecer a relação entre as competências e os desvios. Pagamentos posteriores à correção dos desvios, mas relativos a competências entendidas como afetadas, seriam ainda devidos? Como ficaria, neste caso, o tratamento isonômico aos contribuintes? A repetição dependeria do insucesso das tentativas do Ministério Público de reverter a aplicação equivocada dos recursos e destiná-los à sua finalidade legal? A recuperação e correta destinação de eventual montante desviado tornaria novamente exigível o tributo? Tais questões bem revelam que não se pode confundir o plano do exercício da competência tributária com o da execução do orçamento."
Alguns autores distinguiram ainda, dentro do desvio de direito, o desvio quantificável (que invalida o montante cujo desvio é autorizado), do desvio de impossível quantificação (que invalida a contribuição como um todo).
Outros, finalmente, invocaram a "autonomia da relação tributária", afirmando ser a questão da destinação um "problema de direito financeiro" que não invalida a obrigação tributária...
A nosso ver a tese destes últimos não é procedente, porque em se tratando de contribuições a destinação é essencial. Às contribuições não se aplica a norma do art. 4.° do Código Tributário Nacional.
Realmente, as contribuições sociais de que trata o art. 149, bem como os empréstimos compulsórios, têm destinação constitucionalmente determinada. [17]
3.5. A REFERIBILIDADE DA ATIVIDADE ESTATAL AO CONTRIBUINTE DAS CONTRIBUIÇÕES ESPECIAIS
Sempre se constituiu em matéria de intensas discussões a relativa à determinação da necessidade da existência de referibilidade ao contribuinte da atividade estatal que deu causa à instituição da contribuição especial.
Ou seja, objetivamente, a questão que se coloca é se a atividade a cuja execução se destina a receita arrecadada com as contribuições especiais é ou não necessariamente referível ao contribuinte, atualmente ou no futuro, efetiva ou eventualmente. A resposta à essa questão é de fundamental importância, na medida em que vai se definir, através dela, quais as pessoas que podem ser colocadas, pela lei, na condição de sujeitos passivos dessa espécie tributária.
Para Luciano Amaro, a atividade estatal a cuja execução se destina a receita arrecadada nas contribuições não é necessariamente referível ao contribuinte, embora possa sê-lo, em maior ou menor grau, atualmente ou no futuro, efetiva ou eventualmente. Segundo Amaro, a existência ou não dessa referibilidade é um dado meramente acidental (que pode ou não estar presente) e não essencial. [18]
Já Sacha Calmon Navarro Coelho é daqueles juristas que tem entendimento contrário. Para ele, para que haja uma contribuição especial verdadeira, é necessário que a atuação estatal eleita como fato gerador seja um atuar mediato ou imediato do Poder Público, específico e relativo à pessoa do contribuinte, alertando, ainda, que essa atuação não pode ser obra pública (pressuposto da contribuição de melhoria), nem serviço de utilidade pública (pressuposto da taxa de serviço), nem ato do poder de polícia (pressuposto da taxa de polícia). [19]
No mesmo sentido a doutrina de Geraldo Ataliba, que ensina que se o imposto é informado pelo princípio da capacidade contributiva e a taxa informada pelo princípio da remuneração, as contribuições são informadas por princípio diverso, qual seja, os seus sujeitos passivos serão pessoas cuja situação jurídica tenha relação, direta ou indireta, com uma despesa especial, a elas respeitante, ou alguém que receba da ação estatal um reflexo que possa ser qualificado como "especial". [20]
Já Leandro Paulsen afirma que nas contribuições, onde a autorização constitucional é para que sejam instituídos tributos voltados a atuações em áreas específicas, o pressuposto é que sejam chamados a contribuir pessoas relacionadas a tal atuação, advertindo, entretanto, nos seguintes termos:
Cabe destacar, aqui, que não se trata, necessariamente, de pessoas propriamente beneficiadas pela atuação do poder público, podendo, e.g., ser um grupo cuja existência provoque determinada atuação do Estado, ainda que, eventualmente, de controle, como no caso da contribuição cobrada das entidades potencialmente poluidoras destinada a financiar o controle e monitoramento das condições ambientais, de que trata a Lei 10.165/2000 [...].
Tal aspecto, de pertinência a um grupo, distingue as contribuições inclusive dos impostos de escopo (extraordinários de guerra ou calamidade – art. 154,II) e dos empréstimos compulsórios (art.148).
A imprescindibilidade da delimitação dos contribuintes pela identificação do grupo precisa ser destacada, bem como o fato de que a solidariedade que se destaca como traço das contribuições diz respeito aos integrantes do grupo, não justificando a sujeição passiva de terceiros. [21]
Entretanto, ressalva Leandro Paulsen que, diferentemente das demais contribuições especiais, as contribuições sociais destinadas à Seguridade Social, por força do "caput" do art. 195 do texto constitucional - que prescreve que a Seguridade Social será financiada por toda a sociedade - ostentam uma característica peculiar, qual seja, a de que todos poderão ser chamados a contribuir, independentemente de pertencerem a determinado grupo diretamente relacionado com a atuação estatal, o que positivaria o princípio da Solidariedade Social em matéria de custeio da Seguridade Social. [22]
Parece-nos que a doutrina citada de Leandro Paulsen, notadamente com a ressalva última no concernente às contribuições à Seguridade Social, melhor angularizou, sob o prima jurídico-científico, a questão da necessidade ou não da referibilidade da atividade estatal ao contribuinte das contribuições especiais, razão pela qual entendemos deva ser adotada em detrimento das demais citadas.