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Como agem os corruptos

13/06/2021 às 15:00
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O texto traz uma abordagem da corrupção que se repete no Brasil com uma metodologia conhecida. Independentemente de governos e em praticamente todos os entes e entidades públicas da Federação o modelo se repete, trocando apenas os atores.

Sumário: O texto traz uma abordagem da corrupção que se repete no Brasil com uma metodologia conhecida. Independentemente de governos e em praticamente todos os entes e entidades públicas da Federação, o modelo se repete, trocando apenas os atores. O conhecimento do método pelos órgãos de controle não inibe os agentes, porque agem às sombras, são pessoas geralmente acima de qualquer suspeita e, pela quantidade de casos, estatisticamente o número de ocorrências identificadas é desproporcional; quando há responsabilização, a efetividade é praticamente inócua. São longos e complexos processos que levam à prescrição, ou uma infinidade de recursos inviabiliza o cumprimento de pena. Ademais, a possibilidade de ressarcimento do erário, segundo dados do Tribunal de Contas da União, não passa de 2%.

Palavras-chave: Corrupção; fraude; licitações; contratos administrativos; política; democracia; pobreza.


1. INTRODUÇÃO

O Brasil ocupa 47% do território sul-americano. É praticamente a metade da América do Sul; e corresponde exatamente à parte continental mais favorecida pelas condições de topografia, clima, qualidade de solo, riquezas minerais, potencialidades turísticas e posição geográfica em relação aos principais centros do mundo. Dentro do espaço territorial brasileiro cabem toda a Europa ocidental e todos os países da América Central. Como se admitir, então, o quadro de miséria do qual é acometida a metade da população, tendo-se em conta aqui apenas os que vivem com o mínimo e os que se arrastam na pobreza extrema? Como explicar às inteligências esclarecidas que há disputas por terras para moradia ou plantio; que a produção mineral oficializada é inferior a 1% do PIB; que a exploração do turismo tem resultado irrisório; que a renda per capita, as condições sanitárias e as taxas de mortalidade infantil se equiparam a das mais miseráveis nações do mundo?

O país é privilegiado pelas forças da natureza, que não lhes devassam com terremotos, maremotos, ciclones e erupções vulcânicas. As catástrofes que vez e outra lhes desgraçam são, invariavelmente, resultantes da ação humana. De fato, a seca, a geada, as enchentes, a desertificação, a erosão, as queimadas e os deslizamentos de terras são consequências de omissões convenientes ou de ações deliberadas do poder público em favor de criminosos que agridem o ambiente sob a motivação do lucro; e são esses bandidos em associação com agentes do Estado que alimentam a política em todos os níveis com favores particulares em diversificas modalidades. Nessa conta podem-se creditar a desigualdade social e a precariedade de serviços públicos, vítimas do desvio de recursos de impostos; uma das mais altas cargas tributárias do mundo de alguma forma abastece os cofres do crime organizado, uma ação que entrelaça o coletivo de colarinho branco com prepostos dos três Poderes.

O atraso do Brasil nos indicadores internacionais que medem a qualidade de vida e o desenvolvimento nacional se deve à corrupção em diversos formatos. A posição do país no ranking das grandes economias não corresponde à realidade interna, tanto no que se refere à satisfação mínima das necessidades das pessoas quanto ao desacelerado progresso. Apontam-se como sequelas o desprestígio das próprias tecnologias, a subserviência ao poderio de indústrias multinacionais, as deficiências de infraestrutura em áreas sensíveis, como energia, comunicações e transportes, e a falta de quase tudo em substancial parcela dos seus mais de 5.500 municípios.

A corrupção é uma prática perversa, cruel e sem piedade. Ela não se resume à conhecida e folclórica propina para servidores desregrados, em troca de pequenas facilidades; ela tomou o rumo de bem orquestradas organizações nas altas estruturas do poder. O desvio de recursos dá-se atualmente por sofisticados esquemas envolvendo o superfaturamento de obras e serviços, a venda de leis ou favores e a proteção de criminosos, o uso indevido de cartões corporativos, os cargos comissionados para apadrinhados políticos sem que a necessidade de trabalho os exija, a tolerância com funcionários fantasmas e o nepotismo cruzado. Mas a criatividade dos bandidos é ilimitada. O Brasil seria um país altamente desenvolvido se os corruptos usassem a genialidade para o bem, assim como a usam para imaginar e executar golpes nos cofres públicos.

O corrupto tem a seu favor o fato de praticar as ações sem a mesma visibilidade dos crimes comuns que os cidadãos presenciam nas ruas, nos locais públicos e que se manifestam de forma grotesca. As infrações praticadas por agentes pobres, menos favorecidos, têm maior percepção. Os poderosos, de colarinho branco, concentram-se em lugares fechados; fazem os acertos a quatro paredes, nos próprios lares ou em bem instalados escritórios e gabinetes e, nesses lugares, obviamente, não são notados. Pode-se dizer, portanto, que esses bandidos de elite são protegidos pelos seus próprios ambientes. Não estão sob a vigilância ostensiva da polícia nem à vista do povo.

Ou seja, há um problema de transparência. Gustavo Di Angellis da Silva Alves fez um estudo criminológico sobre a relação entre corrupção e a burocracia a partir da teoria da oportunidade, onde concluiu que esta última é um fator relevante a contribuir para o delito, pois ela cria obstáculos que prejudicam a fluidez e, principalmente, a transparência dos processos, sendo este um fator essencial no combater à corrupção. Em razão disso, defende que na adoção de medidas com foco no combate a esse crime sejam priorizadas aquelas de natureza preventiva: [i]

En términos legales, abundan en Brasil herramientas para hacer frente a la corrupción. Hay una verdadera guerra contra los delitos de alto escalón. Sin embargo, el país tiene una cultura muy concentrada a la adopción de medidas que son, en su mayoría, de carácter represivo. Ese modelo actual, que está lleno de instrumentos para castigar penalmente al criminal (e incluso políticamente a los agentes corruptos), tiene poco éxito para prevenir el problema (VIEIRA, 2014); no ha resuelto la cuestión de las pérdidas amargadas por el Estado y por la sociedad, tampoco se ha buscado las causas de ese delito.

Dentro desse contexto, o autor sustenta que um modelo que prioriza as medidas repressivas não é o ideal já que não evita o dano e, como forma de contribuir para o combate à corrupção, propõe a adoção de medidas que reduzam a burocracia, como, por exemplo: “cambiar, siempre que sea posible, la estructura organizativa clásica (cascada) a modelos más horizontales, con menos niveles, menos burocracia, aumentando la transparencia interna y permitiendo al personal mayor conocimiento sobre los proyectos en curso, con una mayor integración entre los sectores”.

2. PRINCIPAIS FORMAS DE CORRUPÇÃO

Tipos/formas de corrupção

A se seguir o mapeamento dos fatos conhecidos pelos meios de controle, incluindo o social, pode-se didaticamente apresentar a seguinte classificação dos tipos de corrupção:[ii]

  • Corrupção ativa – marcada pelo ato de oferecer vantagens a alguém visando o próprio benefício.
  • Corrupção passiva – aquela que tecnicamente diz respeito ao funcionário público ou ao colaborador no âmbito empresarial — que aceita receber vantagens para si ou para outros indivíduos em troca de atitudes corruptas.
  • Corrupção necessária – é assim apontada nas situações em que um indivíduo recorre a atitudes corruptas com o intuito de agilizar processos e burlar o fluxo natural da burocracia, geralmente obtendo concessões ilegais. Diz-se que ela é “necessária” porque o fim é legal, ainda que os meios sejam ilícitos.
  • Corrupção preditiva – é uma modalidade que se sustenta na expectativa, na previsibilidade de que determinado candidato, uma vez eleito com o apoio ilícito, será subserviente quando efetivamente exercer o cargo para o qual foi conduzido.
  • Corrupção lateral – corresponde a um formato de largo emprego nas casas parlamentares. São constituídas bancadas (grupos de senadores ou deputados, por exemplo) com o objetivo único de votar em projetos de interesse de determinado segmento ao qual pertencem. O Congresso Nacional do Brasil é abundante nesse exemplar, com agrupamentos de eleitos que nos seus mandatos tratam exclusivamente de questões às quais estão vinculadas. São proeminentes as que concentram o agronegócio, de grande poderio econômico; e as bancadas de evangélicos, compostas por pastores que ingressam na política sob o patrocínio de igrejas e atuam a favor dessas instituições que são, na verdade, empresas geradoras de lucros e multiplicadoras de fortunas. Na atualidade o país vê o crescimento de bancadas do crime organizado: são figuras com debilidade de caráter que operam pela moderação de leis a favor da criminalidade, sendo elas próprias beneficiárias das benesses. Cerca de 30% dos membros do mais alto colégio parlamentar do país são condenados em primeira instância ou respondem a processos por crimes que vão do estupro ao tráfico de drogas, da pedofilia ao homicídio

Modus operandi

Dentro da administração pública há as práticas que podem ser consideradas ordinárias; obedecem a um padrão conhecido dos especialistas. Os Tribunais de Contas têm esses modelos claramente identificados, porque se repetem em escala geral seguindo uma rotina. Ainda assim, o controle dessas Cortes não arrefece os ânimos dos corruptos em face da pouca efetividade da resposta. O volume de ocorrências é de tal ordem que os processos de aferição e julgamento não atendem a ínfima parcela. Ademais, as consequências das condenações são insignificantes: estima-se que somente 2% dos valores desviados retornam aos cofres públicos.

Sem esgotar a identificação, apontam-se os seguintes meios de alcance do dinheiro público:

  • Superfaturamento – aqui há uma combinação de preços entre agentes públicos e empresas fornecedoras de obras, produtos e serviços. No cálculo os valores são superdimensionados, de forma a garantir ao corruptor maior lucro que o devido e ao corrompido, de dentro da administração oficial, a correspondente cota de vantagem. Como muitas operações somam cifras estratosféricas, quinhões de 3% a 5% são suficientes para um gestor desonesto constituir fortuna em seis meses de atuação.
  • Acréscimo no volume – representa o aumento na quantidade, superestimando o necessário para atender o serviço público. No período caótico da pandemia da COVID-19 esse expediente foi usado sem freio inibitório, facilitado pela autorização legal para contratações emergenciais, com dispensa de certames de busca da proposta mais vantajosa. E assim se tornaram usuais a compra de testes para exames em quantidades para muito além da demanda, bem como equipamentos de proteção individual para profissionais de saúde e medicamentos cujos estoques nunca serão aproveitados.
  • Contratação simplesmente desnecessária – a exemplo do modelo anterior, ela pode vir combinada com o superfaturamento. Torna-se uma ação ainda mais gravosa porque, diferentemente do aumento do volume, aqui o contrato é formalizado sem o pressuposto de qualquer necessidade. Até prédios públicos são construídos e jamais ocupados, porque desde o início o propósito não era a utilidade, mas as vantagens do negócio em si. Concluída a obra, jamais é equipada e se vê consumida pela depredação ou pelos efeitos do abandono ao tempo.
  • Direcionamento – trata-se de uma conduta que muitas vezes, para maior proveito ilícito, é compartilhada com as formas de superfaturamento e acréscimo de volume. Neste caso, o agente público, à margem do princípio da impessoalidade, escolhe por conveniência o detentor do contrato; ele direciona a licitação mediante fraude nos procedimentos. Os atos oficiais têm aparência de legalidade, mas trazem vícios de origem na medida em que uma empresa é favorecida; compromete-se a isonomia, afastando-se os demais concorrentes das oportunidades de contratação com o poder público; e, evidentemente, essa opção é expressivamente recompensada.
  • Inserção de dados falsos em sistemas de informação – acontece quando a habilitação de um fornecedor, por exemplo, depende da regularidade fiscal ou de apresentação de documentos que atestem a idoneidade. Essas exigências podem ser suprimidas, compensadas pela inclusão de dados falsos com o objetivo de ludibriar o controle.
  • Falsificação de notas fiscais – no meio probatório costuma-se dizer que um documento pode ser materialmente ou idoneamente falso. A falsidade material acontece quando o documento é fabricado para produzir uma verdade que não existe; ou é adulterado, para mascarar uma informação existente. A inidoneidade do documento ocorre, por sua vez, quando o conteúdo é inverídico. Nesse cenário, sem prejuízo de exemplos em outros documentos, estão as falsificações em notas de caráter fiscal, com base nas quais há o recolhimento dos respectivos tributos. A corrupção utiliza a fabricação da nota para “provar” um pagamento de algo que não foi efetivamente adquirido; a adulteração do conteúdo quando são alteradas as quantidades, os valores ou as datas; ou na descrição de um objeto contratado que não corresponde à realidade. Na quixotesca luta contra a corrupção, tem-se encontrado situações bizarras: nota fiscal que atesta aquisição de uniformes de serviço quando, na verdade, foram compradas vestimentas de grife para o exibicionismo de detentores de cargos públicos; documentos que registram a compra de equipamentos de informática com destino a estabelecimentos escolares podem disfarçar compras de joias para a luxúria de amantes.

Sem esgotar a criatividade dos criminosos que cercam o poder, essas ocorrências são as que se encontram na vitrine da corrupção administrativa, de aproveitamento habitual, ordinário, nos três níveis da federação: municipal, estadual e federal. Os corruptos formam uma rede de colaboração, que envolve políticos, gestores, funcionários da burocracia e empresários, todos despidos de pudor. Pode-se incluir nessa composição criminosa até agentes controladores. A denominada Operação Lava Jato, iniciada em 2014, desnudou o envolvimento de autoridades de todos os poderes nessa teia de aproveitamento ilícito dos recursos provindos dos pesados impostos pagos pela sociedade. Mas o interessante é que ela própria, a Operação em si, não escapou de ver alguns dos seus membros mais ativos com a biografia na lama, envolvidos em interesses escusos, fraudes e obtenção de vantagens ilícitas.

A essa fórmula de manipular contas, informações e documentos na administração da coisa pública tem-se a acrescentar a corrupção ampla que se manifesta em diversas operações; ela pode se dar na fraude de eleições, com abuso do poder econômico que desequilibra as disputas, assim como é possível que esteja na troca de favores que agentes públicos fazem entre si, subvertendo a ordem jurídica. O rompimento com os limites morais tem uma infinidade de versões e assim pode se compreender como corrupto até mesmo o cidadão cooptado, que entrega a sua consciência para os deuses do descaso.

3. CAUSAS DA CORRUPÇÃO

Está claro que as causas da corrupção estão associadas ao desenho das peculiaridades do Brasil, com a sua raiz histórica apodrecida. A corrupção é endêmica; a população nativa convive com o fato desde a formação do Império e, ao longo de décadas, acostumou com a extensão e naturalidade do crime perpetuado contra a sua própria dignidade. A habitualidade criou esse ambiente e a vida pública passou a ser vista como lugar de enriquecimento, para onde migram psicopatas institucionais e corporativos. E sendo esses tipos hábeis manipuladores, usam o povo como se os favorecessem; e parcela do povo, como as vítimas de estelionatos, acredita que, de alguma forma, está tendo vantagem quando abordada pela ação desses larápios.

É evidente que a corrupção tem a dimensão do mundo. A diferença é que em democracias sólidas o controle é presente, com substancial redução dos fatos e dos montantes; nas democracias débeis, o crime encontra maior proporção, mas não chega a apodrecer a todo tecido social. O Brasil tem o agravante histórico de tal forma que mesmo aqueles que são alcançados pela lei e levados a julgamento repetem os crimes de dentro dos presídios, no cumprimento de penas. Quando raramente condenados à restrição da liberdade física, usufruem tal ordem de privilégios que, entre as paredes desses estabelecimentos, continuam no gerenciamento de fraudes, alimentando com instruções os seus prepostos que permanecem em pontos sensíveis de órgãos governamentais.

Nesse espaço da sanção criminal é possível a seguinte constatação: i) as investigações são dificultadas pelo tráfico de influência e por prerrogativas funcionais, que limitam a coleta de provas; ii) os julgamentos são demorados; iii) os recursos favorecem os corruptos, sendo rapidamente conhecidos e decididos quando a favor; geralmente levam anos para serem apreciados quando desfavorecem o réu; iv) as penas, quando atribuídas, são desproporcionais à lesão; v) a execução penal brasileira privilegia os ricos, que encontram facilidade na progressão para os regimes semiaberto, aberto e domiciliar. Isso mantém a percepção de que o risco compensa; e a sociedade se habituou a ver na Presidência da República, no comando do Congresso Nacional e nos principais postos da administração federal pessoas com extensa folha de ocorrências criminais. Aquele que hoje é centro de um escândalo nacional, apanhado por vezes em flagrante ou com provas irrefutáveis dos delitos, terá a conduta abonada pelo curso do tempo, durante o qual outros episódios ganharão noticiários. Voltará nas eleições seguintes conduzido pelo voto para o exercício de cargo público; ou, pela inexplicável confiança de um governante, ocupará ministérios, diretorias, superintendências e lugares-chave na burocracia estatal, onde continuará na consecução dos crimes. Esse enredo se repete em todas as esferas da administração em território brasileiro.

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A causa inicial e estrutural, portanto, está aqui: o Brasil sempre esteve entregue a ocupantes de cargos públicos que têm os olhos voltados para o próprio umbigo; é gente que utiliza a administração geral como uma feira de negócios próprios ou que permite que terceiros o façam sem o razoável controle. Persistem aqueles que inexplicavelmente acumulam fortunas durante a gestão do erário, sem qualquer outra fonte de ganhos que suportem aferição; e praticamente todos fazem o discurso dos pobres, mantenho-os, todavia, em quantidade de milhões, aprisionados na miséria e na escuridão da ignorância.

Neste particular, aponte-se que na segunda década do século 21 mais da metade da população (52,6%) ainda não possui formação escolar média, conforme apuração do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE); é alarmante a quantidade de pessoas consideradas analfabetas funcionais, como são identificados os indivíduos maiores de 15 anos inaptos para a leitura e interpretação de texto básico – logo uma multidão sem capacidade de reflexão e discernimento.[iii] A miserabilidade, por seu turno, atinge 50 milhões de brasileiros. É uma situação conveniente para os aproveitadores da mentira. A falta de esclarecimento da maioria que decide pelo voto é parte da sustentação da perversidade; aqueles aos quais nunca foi dada a oportunidade de uma vida digna estão sempre suscetíveis a serem usados como combustível para a máquina de corrupção. O figurino dos corruptos não deixa que a nação se consolide como crítica, verdadeiramente cidadã, exigente de demandas legítimas. Acaba-se por constatar a existência de uma sociedade inconscientemente cúmplice com o crime, alimentando-o com votos em pleitos eleitorais; e substancial parcela dos eleitos, os que verdadeiramente exercem o poder, valendo-se dessa condição para desnutrir as instituições que poderiam se opor ao vandalismo oficial.

A debilidade dos controles internos, a fragilidade das leis, a demora nos julgamentos e a subserviência de uma massa pobre e inculta são, como se percebe, situações interligadas a esse pacote. Por isso, não prosperam as tentativas para o fim dessa modalidade criminosa, de ataque ao erário e uso, direto ou indireto, dos ofícios públicos. Pode-se dizer, enfim, que todos são contra a corrupção, desde que não seja a sua. Nesse tom, os discursos de enfrentamento ecoam por todo o país, leis novas são instituídas (propositalmente com brechas de larga interpretação) e, dessa forma, caminha um povo para o cadafalso, acreditando em cada eleição que os vagabundos oficiais os conduzem para o paraíso.

4. DESDOBRAMENTOS DA CORRUPÇÃO NA POLÍTICA NACIONAL

Está claro que a história administrativa e política é um percurso da perversão. Há uma cultura de tolerância com o uso indevido dos cargos públicos. É conveniente avançar nessa pontuação; é interessante que melhor se explique a cena na qual se posicionam os atores sem ética e sem reservas de compaixão. Eles adotam a democracia como um rótulo e dela se aproveitam como se pertencessem às oligarquias, nas quais o poder se concentra em um reduzido grupo de indivíduos. A linha que separa a democracia brasileira do formato oligárquico é praticamente inexistente. A República já nasceu com esse vício. Famílias, grupos econômicos e um ou outro partido comandaram regiões do Brasil e em alguns sítios ainda insistem em fazê-lo, colaborando enfaticamente para os efeitos do atraso. Essa oligarquia tradicional passou por mutações e hoje o Brasil está a reboque de uma configuração exótica, com a seguinte forma: o que seria uma democracia é uma oligarquia; mas o que seria uma oligarquia convencional é uma oligarquia excêntrica, constituída por agrupamento das mesmas pessoas que adotaram a política como profissão ou como um estranho sacerdócio, para o qual não há nem necessidade de fé, nem juramento de sacrifícios. Retirando-lhes o discurso e observando as atitudes, tem-se a certeza de que essa singular congregação não se nutre de ideologia e não se veste de interesse público.

É impressionante a repetição de nomes nas últimas quatro décadas, o que também ocorreu nas décadas precedentes. O político ora está na Câmara dos Deputados, ora no governo do Estado; ora no Senado Federal, ora em um Ministério; ora de volta ao Parlamento, passando nesses intermédios por prefeituras, agências reguladoras e diretorias de estatais para não perder o vínculo e manter as condições de retorno ao primeiro time.

Perceba-se com rigor o retrato dos atuais ocupantes dos mais elevados cargos e mandatos no Executivo e nas Casas congressuais. Eles são os mesmos artistas, a maioria no palco pelo menos desde os anos 1980, quando era desconhecida do público a telefonia celular e sequer se imaginavam os recursos da informática. Os que se afastaram dos cargos, compelidos pela enfermidade, velhice ou óbito tiveram a cautela de deixar os substitutos nos respectivos feudos. Portanto, têm-se praticamente quatro décadas perdidas com pessoas que não disseram aos eleitores e administrados a que vieram, visto que o Brasil continua com os três mais importantes pilares corroídos pela incompetência: saúde, educação e segurança pública. É evidente que nas décadas anteriores a política também era um repasse de pai para filhos e netos. Sem renovação, o país está afastado da trilha que poderia levar à qualidade de vida e ao desenvolvimento nacional, porque aqueles que deveriam trabalhar para tanto não vislumbram esse fim; é inimaginável pessoas circunspectas, nos altos escalões do governo, a planejar políticas públicas para, por exemplo, verdadeiramente erradicar a miséria; reúnem-se, todavia, para escolher a maneira como melhor tirar proveito da exploração da pobreza. Grandes obras não são escolhidas exatamente pela necessidade, mas pela possibilidade de gerarem grandes contratações e propinas, cujos resultados são de vantajoso uso dos próprios construtores e dos débeis morais alojados em gabinetes com a bandeira do Brasil.

5. EFEITOS DA CORRUPÇÃO

Não se poderia esperar que o Brasil recolhesse benefícios com esse modelo de prática política e de exercício do poder. Na medida em que parte dos recursos do Tesouro é desviada para interesses privados e enriquecimento ilícito, faltam verbas públicas para a realização de obras e serviços necessários à sociedade. Os brasileiros trabalham quatro meses por ano para o Estado; dele não recebem a contrapartida. Educação, saúde, transporte e até segurança tornaram-se serviços particulares, obviamente pagos pelos recursos pessoais de quem pode fazê-lo. A maioria pobre da população fica com as migalhas, como escolas desprovidas de biblioteca, energia elétrica, instalações sanitárias e, naturalmente, de proposta pedagógica e de professores com remuneração digna. A grande massa humana trabalhadora utiliza veículos do transporte público que, em alguns lugares, lembra a condução de animais para abate; 51,9% da população brasileira não tem acesso à coleta de esgoto, de acordo com dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento[iv]. O desfile de horrores é enorme.

Considere-se que a corrupção é o início, o meio e o fim do modelo político brasileiro. Os agentes corruptos, que ficam nos principais postos, não possuem em regra aptidão administrativa, cultura razoável, e conhecimento sustentado na ciência e no planejamento. O mesmo acontece com os seus prepostos. Todos que estão ali têm o mesmo propósito, que não é o de servir à pátria. Além dos vícios morais, eles carregam a incompetência gerencial; não mostram para os ofícios públicos a mesma habilidade enquanto estelionatários. Logo, não bastasse o ataque ao erário, esses indivíduos causam enorme lesão ao país pela inoperância ou pela incapacidade de aplicação adequada da parcela que não foi retirada do Tesouro. Uma vez que o Tribunal de Contas da União identificou mais de 14 mil obras públicas federais paralisadas em todo o país[v], aqui está a amostra da combinação entre desvio de recursos e incompetência administrativa.

6. CONCLUSÃO

Em conclusão, qualquer indicador de pesquisa aponta para elevadas cifras no desvio de recursos públicos por esquemas de corrupção, alguns montados com sofisticado nível de planejamento. Também resta evidente que a corrupção está assentada no modelo político e administrativo que o Brasil mantém desde a sua independência. O fim do Império não afastou os maus costumes nem implantou práticas republicanas. A história política brasileira não pode ser escrita sem nela incluir as bases da corrupção, pois foi ela quem pavimentou os acessos ao poder de praticamente todos os governantes, alguns com mais, outros com menos envolvimento pessoal.

Até mesmo golpes militares sucedidos nas décadas de 1930 e 1960 tiveram patrocínios que podem ser enquadrados em uma das modalidades de corrupção, no mínimo na expectativa de favorecimento dos conduzidos àqueles que financiaram as tramas e as execuções.

Não há solução fora da mudança do sistema político. E o sistema político não se deixa mudar. Pelo menos há 30 anos há movimentos de organizações sociais nesse sentido; a cada eleição nacional o tema é renovado e as promessas atualizadas. Mexem-se em direitos trabalhistas e previdenciários, alteram-se para cima as alíquotas tributárias, há reformas na estrutura profissional do Estado, relativa ao funcionamento das repartições, mas não se alteram as regras de efetividade que poderiam impedir o ingresso de corruptos nos principais nichos de decisão.

O pesquisador que não tiver familiaridade com os fatos, limitando-se aos informes legais e publicitários, terá a impressão de avanços. Experimentará boas sensações com a chamada Lei da Improbidade Administrativa, que traduz a pretensão de enfrentar com eficácia o enriquecimento ilícito; terá agradável surpresa com a Lei da Ficha Limpa, que teoricamente não permite a ocupação de cargo público por condenados em segunda instância na Justiça criminal; encherá os olhos com leis que remetem para a responsabilidade política dos principais governantes – e aqui estão leis em vigor desde a metade do século passado. Todas elas têm tubos de escape, de maneira que os corruptos de especial hierarquia conseguem sair sem dificuldade, se escondendo nos esgotos até a oportunidade seguinte.

Ações policiais cinematográficas e exposições midiáticas de autoridades presas entre 2014 e 2018 apresentaram ao mundo a perspectiva de um exemplo de enfrentamento dessa configuração de crime. No entanto, não foi preciso que os pesquisadores aguardassem décadas dos fatos para encontrar elementos que permitissem escrever com fidelidade a história desse período. A própria Operação Lava a Jato é um capítulo a ser inserido nos casos de corrupção, por fraudes processuais, violação do devido processo legal, vantagens ilícitas obtidas por protagonistas de dentro das instituições que a sociedade imaginava serem morais e moralizadoras. A promoção pessoal desses agentes estava no planejamento e disso se aproveitaram para vantagens indiretas, sendo as principais as palestras remuneradas, as receitas com livros de forte apelo e a ascensão a cargos públicos de confiança, emprestando a terceiros a imagem de suposta lisura. A Associação Brasileira de Juristas pela Democracia listou pelo menos quatro condutas que teriam sido praticadas pelo então magistrado, visto como símbolo da coragem e decência nacional: prevaricação, abuso de autoridade, improbidade administrativa e formação de quadrilha.[vi] O que parecia ser um expediente exemplar de atuação da Polícia Judiciária, do Ministério Público e da Magistratura está a se mostrar como um apêndice da podridão do processo político eleitoral, que se valeu da credibilidade do Poder Judiciário para lubrificar as correntes da corrupção.

Vê-se que corruptos lançam redes ao mar; invadem todas as estruturas do Estado e delas se aproveitam. Em essência, em 2018 o discurso da moralidade e da anticorrupção foi apropriado levar para governos e casas parlamentares figuras melancólicas, patéticas, para lá darem seguimento às práticas imorais e corruptas.

O lado figurativo dessa realidade é notado com o fato de os heróis nacionais até agora serem principalmente aqueles que cometeram alguma forma de atrocidade humana. Dos vultos da pátria, festejados oficialmente, poucas biografias resistem a uma análise pelo prisma da moralidade; e, nesse contorno, seguidas gerações se acostumaram a celebrar os corruptos como exemplos de prosperidade e de liderança.

São percentualmente insignificantes os logradouros aos quais são atribuídos nomes de personalidades das ciências, das artes e dos valores civilizatórios; em contrapartida as ruas, praças, bairros e prédios públicos ostentam como patronos as figuras que geralmente passaram para a história nacional, regional ou municipal sem o filtro da dignidade. Políticos na maioria, oportunistas quase todos, são as referências que ficaram e se amontoam como paradigmas de uma sociedade doente.


[i] Di Angellis da Silva Alves, G. (2020). La relación entre corrupción y burocracia: estudio criminológico desde la teoría de la oportunidad, El Criminalista Digital, 8, 30-50. Recuperado de: http://criminologia.ugr.es/crimdig/08angellis.pdf

[ii] https://blog.idwall.co/corrupcao-tipos-no-brasil/

[iii] https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2017-12/ibge-brasil-tem-14-de-sua-populacao-vivendo-na-linha-de-pobreza

[iv] https://www.eosconsultores.com.br/qual-a-realidade-do-saneamento-basico-no-brasil/

[v] https://www.camara.leg.br/noticias/599773-livro-aponta-14-mil-obras-publicas-paradas-custo-ate-agora-e-de-r-70-bi/

[vi] https://www.redebrasilatual.com.br/politica/2019/08/moro-cometeu-quatro-tipos-de-crimes-ao-atuar-na-lava-jato-afirma-juiza/

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Sobre o autor
Léo da Silva Alves

Jurista, autor de 58 livros. Advogado especializado em responsabilidade de agentes públicos e responsabilidades de pessoas físicas e jurídicas. Atuação em Tribunais de Contas, Tribunais Superiores e inquéritos perante a Polícia Federal. Preside grupo internacional de juristas, com trabalhos científicos na América do Sul, Europa e África. É professor convidado junto a Escolas de Governo, Escolas de Magistratura e Academias de Polícia em 21 Estados. O autor presta consultoria às mais importantes estruturas da Administração Pública do país desde os anos 1990. Conhece os riscos da gestão e as formas de prevenir responsabilidades, o que o tornou conferencista internacional sobre matérias relacionadas ao serviço público.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVES, Léo Silva. Como agem os corruptos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6556, 13 jun. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/91021. Acesso em: 20 nov. 2024.

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