Em 16 de junho de 2011, o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas endossou, por meio do artigo 1º da resolução A/HRC/RES/17/4[2] adotada por consenso[3], os Princípios Orientadores das Nações Unidas sobre Empresas e Direitos Humanos (UNGPs, na sigla em inglês). De lá para cá, vêm acontecendo muitas mudanças na opinião pública da comunidade internacional[4], nas regulações de mercado e legislações especializadas, no comportamento dos atores financeiros e nos padrões de gestão das empresas transnacionais. Essas mudanças acumuladas até agora fazem parte do processo de transformação no mundo dos negócios e apontam para modificações ainda mais profundas e um novo cenário para os direitos humanos.
Os UNGPs têm se firmado como as principais balizas para as empresas. Seus 31 princípios orientadores se baseiam na definição clara das responsabilidades de governos e empresas e estabelecem guias para ambos. Estes princípios também acabam por fundamentar e equalizar muitas das expectativas e cobranças da sociedade civil e dos movimentos sociais em relação às empresas. Em suma os princípios se organizam em 3 pilares:
- Pilar Um: Proteger, é obrigação dos Estados/governos respeitar os direitos humanos, eles mesmos, garantir os meios materiais e formais para o exercício e vivência dos direitos humanos e protegê-los contra violações causadas por agentes do próprio Estado/governo, empresas ou pessoas e grupos privados em geral. Proteger também implica a criação de leis que punem violações e impactos negativos sobre os direitos humanos e mecanismos de fiscalização efetivos.
- Pillar Dois: Respeitar, é obrigação das empresas observar a legislação aplicável e os padrões internacionais para prevenir impactos negativos, respeitando todos os direitos humanos de todas as pessoas. Respeitar também implica a cooperação com as autoridades tanto na prevenção quanto na remediação de impactos negativos.
- Pilar Três: Remediar, é obrigação de quem gerar dano, seja Estado/governo, seja empresa. Cabendo à empresa, quando der causa, empregar o máximo de seus recursos financeiros, técnicos e humanos no processo. Remediar implica além da reparação integral dos danos, o acesso à informação e à justiça.
Temos um cenário atual de crescente mudança cultural impactando o ecossistema de negócios. São ondas diversas, muitas vezes de origens e fundamentos distintos, que interagem e demandam cada vez mais preparo e agilidade dos tomadores de decisões nas empresas.
Movimentos como o Me Too[5], que ganhou muita força nos últimos anos[6], voltaram olhares para questões anteriormente consideradas internas demais às corporações para serem discutidas no debate público. Uma sequência de graves tragédias ambientais e humanas causadas por empresas nas últimas décadas também convidaram o escrutínio mais próximo da opinião pública que passou a se perguntar algo como: “como pode uma corporação transnacional tão conhecida e poderosa ignorar riscos e causar (intencionalmente ou não) danos tão graves e tão visíveis ao meio ambiente e às pessoas?”.
Além disso, temos testemunhado nos últimos anos uma forte onda cultural e significativa repercussão das lutas políticas por diversidade e inclusão étnica-racial, de orientação sexual e identidade de gênero, de pessoas com deficiência, de direitos das crianças e adolescentes e das pessoas idosas, e outros recortes desde o identirarismo à interseccionalidade, de movimentos decolonialistas e antirracistas. Isso, junto com a profusão do uso político e comercialmente engajado das redes sociais e de outros caminhos de ativismo digital, acaba por criar múltiplas frentes de cobranças e desafios financeiros, sociais, jurídicos e reputacionais para as empresas, sobretudo as transnacionais. Esses desafios, não apenas externos, passam a ser apresentados também pelos próprios empregados nas fileiras destas empresas em relação a seus empregadores.
Em paralelo a este movimento cultural, desde o início deste século, acumulam-se inovações legislativas, começando com a lei de proteção a vítimas de tráfico de pessoas[7], dos Estados Unidos e a diretiva europeia para prevenção e combate ao tráfico humano[8]. Estas estão entre as primeiras medidas de relevância no campo direitos humanos e empresas que estabelecem obrigações concretas para as empresas com algumas implicações transnacionais. Também a lei britânica de combate à corrupção[9] e a lei californiana de transparência na cadeia de suprimentos[10] impõem obrigações de transparência nada tradicionais sobre as empresas, forçando-as a tomar crescente responsabilidade ativa por suas cadeias de fornecedores.
Com elementos claros de jurisdição extraterritorial, estas legislações determinaram o alcance normativo sobre atos cometidos por pessoas jurídicas, ou pessoas naturais em seu nome, fora de seus territórios, desde que tais pessoas jurídicas sejam sediadas, ou realizem determinadas atividades empresariais, no território de jurisdição natural e tenham tamanho econômico relevante. Estas estão entre as primeiras medidas que criam obrigações extraterritoriais direta ou indiretamente relacionadas com as empresas, impondo obrigações de transparência. Normas de transparência como estas muitas vezes não possuem significativa capacidade punitiva direta, mas abrem caminho para que outras normas e outros mecanismos para-judiciais e processos sociais gerem seus impactos. Uma inovação normativa brasileira também de transparência de grande impacto é o estabelecimento em 2003 da Lista Suja do Trabalho Escravo[11]. Temos aqui claros avanços no Pilar Um dos UNPGs: Proteger, uma responsabilidade primordialmente estatal.
Outra iniciativa no campo da autoridade dos Estados, mas também próxima dos gestores de recursos internacionais, é o papel desempenhado pela OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico) com suas Orientações para a Conduta Responsável das Empresas Multinacionais[12] e seus Pontos Nacionais de Contato, que ajudam a integrar os assuntos de Direitos Humanos e Empresas à gestão pública e a trazer soluções, ou ao menos visibilidade, para controvérsias.
Além desses esforços dos Estados, os agentes financeiros, por sua vez, têm se movimentado com crescente agressividade no sentido de tornar realidade as orientações do Pilar Dois: Respeitar. Padrões e requisitos de investimento do Banco Mundial têm aumentado em complexidade nas últimas décadas e os próprios Princípios do Equador da IFC (Comissão Financeira Internacional, na sigla em inglês) também registram passos concretos nesse caminho. Instituições financeiras privadas têm trazido à realidade estas orientações tanto pela sua observância direta, quanto por sua exigência frente seus entes e projetos financiados. Têm sido usados, cada vez mais, critérios como as Ferramentas-Guia de Direitos Humanos para o Setor Financeiro[13], criado pela Iniciativa Financeira do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente.
Talvez nenhuma outra onda de mudanças, entre estas, seja tão marcante e promissora quanto a dos investidores ESG. Trata-se de uma categoria de investidores, de todos os tamanhos e setores, que passaram a incorporar a análise de riscos não financeiros em suas tomadas de decisão sobre seus investimentos. O acrônimo ESG refere-se Meio Ambiente (Environment), Social (Social) e Governança (Governance). Os critérios ESG demandam crescente e inovadora transparência ativa das empresas e ações verdadeiramente efetivas, para além das maquiagens sociais e do greenwashing. Além disso, cada vez mais, investidores têm deliberadamente escolhido participar em projetos ou negócios de olho no seu retorno reputacional ou mesmo afetivo, priorizado sobre o financeiro. Este fenômeno é tão novo e tão complexo que demanda sua própria análise em outro artigo, mas não parece um exagero afirmar que aqui se encontram possíveis fundações de uma transformação muito rápida no comportamento das empresas transnacionais quanto ao respeito aos direitos humanos.
Todas essas pressões sobre as empresas, em especial as transacionais de capital aberto, acabam por colocar líderes e tomadores de decisão diante do complexo desafio: como gerar resultado financeiro crescente e sólido, num mundo em transformação geopolítica e tecnológica e ainda assim incorporar considerações de riscos não financeiros e atender às demandas de investidores ESG e acionistas ativistas. Após a dor de cabeça causada por essa pergunta, vem outra: Como e onde encontrar uma base que tenha técnica, equilíbrio e legitimidade para fundamentar as tomadas de decisão internas e os posicionamentos externos em matéria de direitos humanos?
Para algumas empresas essa chave parece já ter virado: a resposta está na integração dos Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos ao dia a dia da gestão da empresa.
Podemos olhar para um exemplo importante: Para lidar com as demandas de agentes de mercado, governos e da sociedade vindas da indisposição crescente com o comportamento flagrantemente irresponsável por parte de algumas e lamentavelmente despreparado para lidar com riscos não financeiros, por parte de outras, deve-se recorrer aos princípios 17, 18 e 19, dos UNGPs.[14] Eles apontam justamente para uma metodologia de Gestão de Riscos e Impactos em Direitos Humanos.
A incorporação de Gestão de Riscos e Impactos em Direitos Humanos permite às empresas atender suas responsabilidades previstas no Pilar Dois: Respeitar, na medida em que os controles preventivos afastem a materialização das violações aos direitos humanos. Mas não apenas isso, esta gestão também atende aos requisitos do Pilar Três: Remediar, por meio da gestão de impactos.
A Gestão de Riscos em Direitos Humanos demanda um olhar amplo e aprofundado para todas as atividades da empresa que possam gerar impactos negativos sobre os direitos humanos de toda e qualquer pessoa, desde empregados próprios e terceirizados, à cadeia de fornecedores, clientes, visitantes, passantes e comunidades vizinhas às unidades operacionais, sejam elas de produção, logística, pesquisa, descarte e manejo de rejeitos, etc. As metodologias para a adequada avaliação destes riscos variam significativamente entre setores, portes e jurisdições e precisam ser adaptadas para a realidade de cada negócio para concretamente serem capazes de predizer e evitar violações de direitos humanos.[15]
Por sua vez, a Gestão de Impactos depende de uma aprofundada e cuidadosa avaliação de fatos, dados e percepções das pessoas afetadas. Esta avaliação será o fundamento para o processo de remediação, que materializa a Gestão de Impactos em Direitos Humanos, para reparar danos causados e reestabelecer tanto condições adequadas de vida das pessoas impactadas e quanto as condições de relações saudáveis no ambiente de negócios. Estas avaliações de risco e impacto também são chamadas de Due Diligences em Direitos Humanos, e sua análise também merece um artigo em separado.
Estas e outras ferramentas têm sido, conforme comentado acima, o recurso mais sólido e confiável para as empresas, o lastro seguro para tomadores de decisão ao posicionarem-se tanto nas granulares escolhas do dia a dia, quanto nas grandes mudanças de direção e nos engajamentos em transformação institucional e cultural. Os Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos completam sua primeira década de existência cada vez mais como a resposta de padrão internacional tanto para as demandas de jurisdição transnacional das legislações pontuais dos países quanto para as cobranças de investidores, ativistas e opinião pública em geral. E para dar mais impulso nesta direção, o Alto Comissariado de Direitos Humanos das Nações Unidas lançará em 16 de junho de 2021 o Roadmap do Projeto UNPGs+10.
As tendências atuais apontam para os próximos dez anos como um forte período de efetivação destas ferramentas e da consolidação dos UNGPs como o caminho para as empresas e o critério definitivo para investidores e analistas.
[2] https://documents-dds-ny.un.org/doc/RESOLUTION/GEN/G11/144/71/PDF/G1114471.pdf?OpenElement
[3] https://www.ohchr.org/EN/HRBodies/HRC/RegularSessions/Session17/Pages/ResDecStat.aspx
[4] Os termos “opinião pública” e “comunidade internacional” como empregados na linguagem do cotidiano carecem de análise critica sobre a totalização que causariam caso de fato seu sindicado denotativo fosse real. Para provocações elicidatórias ver What is International Community de Noam Chomsky et al, disponível em https://ciaotest.cc.columbia.edu/olj/fp/fp_sepoct02_ank01.html
[5] https://www.forbes.com/sites/forbeshumanresourcescouncil/2017/12/20/sexual-harassment-in-the-workplace-in-a-metoo-world/?sh=774fe8135a42
[6] https://www.washingtonpost.com/news/the-intersect/wp/2017/10/19/the-woman-behind-me-too-knew-the-power-of-the-phrase-when-she-created-it-10-years-ago/
[7] 2000, US Victims of Trafiking and Violence Protection Act https://www.govinfo.gov/content/pkg/PLAW-106publ386/pdf/PLAW-106publ386.pdf
[8] 2011 https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=LEGISSUM%3Ajl0058
[9] 2010 UK Bribery Act
[10] 2010 California Transparency in Supply Chains Act
[11] 2003 Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores à condição análoga à de escravo, Portaria MTE nº 1.234/2003, atualmente regulada pela Portaria Interministerial MTPS/MMIRDH nº 4 de 2016.
[12] 2020 https://mneguidelines.oecd.org/MNEguidelines_RBCmatters.pdf
[13] https://www.unepfi.org/humanrightstoolkit/finance.php
[14] Princípio 17. Para identificar, prevenir, mitigar e responder aos impactos adversos nos direitos humanos, as empresas devem realizar um processo de devida diligência em direitos humanos. O processo deve incluir a avaliação dos impactos reais e potenciais de suas atividades e operações nos direitos humanos; a consideração desses impactos nas suas políticas, em seus programas, na sua gestão; a adoção de medidas de prevenção e mitigação; o monitoramento das ações adotadas; e a comunicação sobre como esses impactos são enfrentados. (...)
Princípio 18. Para aferir os riscos para os direitos humanos, as empresas devem identificar e avaliar quaisquer impactos adversos nos direitos humanos, reais ou potenciais, com os quais elas possam estar envolvidas por meio suas próprias atividades ou como resultado de suas operações comerciais. (...)
Princípio 19. Para prevenir e mitigar os impactos adversos nos direitos humanos, as empresas devem integrar os resultados das suas avaliações de impacto em todas as funções e processos internos relevantes e adotar medidas apropriadas. (...)
[15] LISBOA, Leonel. Questões iniciais sobre a avaliação de risco em direitos humanos em empresas transnacionais. In. ROLAND, Manoela Carneiro e ANDRADE, Pedro Gomes (org.). Direitos Humanos e Empresas: responsabilidade e jurisdição. 1 ed. Belo Horizonte: Editora D’Plácido. 2020.