O Superior Tribunal de Justiça tem aplicado cotidianamente o princípio da insignificância no delito de descaminho (art. 334, 2ª parte, do CP – que, simplificadamente, consiste no não pagamento de imposto devido em razão da entrada de determinada mercadoria no país). Mas com qual critério?
Inicialmente, já se considerou que se devia levar em conta, para a aferição do grau de ofensividade da conduta, se o valor do tributo incidente sobre as mercadorias apreendidas (e não, frise-se, o valor em si das mercadorias, cf. HC 41.700/RS, 5ª Turma, Rel. Min. Felix Fischer, DJ de 20/06/2005 e RHC 17930/TO, 6ª Turma, Rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa, DJ 28/11/2005 etc.) era igual ou inferior ao mínimo exigido para a propositura de uma execução fiscal. Vale dizer, seria hipótese de incidência do princípio da insignificância se o valor devido não fosse passível de despertar na Administração Pública o interesse em promover a ação fiscal para a sua cobrança. E qual é o valor mínimo exigido para a propositura de uma execução fiscal?
A Lei n° 9.469/97 dispensava a propositura de ação de cobrança de créditos pela Fazenda Pública no valor de até R$ 1.000,00 (mil reais). Dessa forma, se o valor devido em razão do descaminho (leia-se, valor do tributo incidente sobre o bem descaminhado) fosse igual ou inferior a R$ 1.000,00, o fato seria considerado bagatelar, ou, na expressão de Jorge de Figueiredo Dias, não haveria dignidade penal suficiente para atrair a incidência do Direito Penal. Nesse sentido os seguintes julgados: REsp 246602/PR, 5ª Turma, Rel. Min. Gilson Dipp, DJ 29/10/2001; REsp 236702/PR, 5ª Turma, Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, DJ 22/10/2001; REsp 221489/PR, 5ª Turma, Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, DJ 17/04/2000; REsp 229542/PR, 5ª Turma, Rel. Min. Felix Fischer, DJ 02/05/2000 etc. Ocorre que com o advento da Lei n° 10.522/02, tal patamar foi alterado para R$ 2.500,00 (dois mil e quinhentos reais). Eis a letra da lei: "Serão arquivados, sem baixa na distribuição, os autos das execuções fiscais de débitos inscritos como Dívida Ativa da União pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional ou por ela cobrados, de valor consolidado igual ou inferior a R$ 2.500,00 (dois mil e quinhentos reais)" (art. 20, da Lei n° 10.522/02). Conseqüentemente, passou a entender, o STJ, que sendo devido, em razão do descaminho de bens, o valor igual ou inferior a R$ 2.500,00, a conduta não teria magnitude para ofender o bem jurídico tutelado, tanto é que não haveria, por ora, interesse fiscal por parte da Administração Pública em reaver o débito. Os precedentes que seguem bem refletem esse entendimento: REsp 617049/RN, 5ª Turma, Rel. Min. Laurita Vaz, DJ 04/04/2005; HC 34281/RS, 5ª Turma, Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, DJ 09/08/2004; HC 34641/RS, 5ª Turma, Rel. Min. Felix Fischer, DJ 02/08/2004 etc. No entanto, o valor mínimo exigido para a propositura de uma execução fiscal foi novamente alterado. Com a Lei n° 11.033/04, o patamar foi elevado para R$ 10.000,00 (dez mil reais).
A partir dessa alteração, a jurisprudência do STJ deu uma guinada copérnica e modificou o critério para a incidência do princípio da insignificância no crime de descaminho. O leading case foi o Resp 685.135/PR, 5ª Turma, Rel. Min. Felix Fischer, DJ de 02/05/2005. Desde este julgado, que fez um paralelo com o âmbito de aplicação do princípio da bagatela nos crimes de apropriação indébita de contribuições previdenciárias, o valor tomado para a aplicação do princípio deixou de ser aquele previsto no art. 20, da Lei n° 10.522/02 (limite para o ajuizamento da execução fiscal) e passou a ser o preconizado no art. 18, § 1°, da mesma lei (valor para a extinção do crédito fiscal). Eis a redação do referido dispositivo legal, litteris: "Ficam cancelados os débitos inscritos em Dívida Ativa da União, de valor consolidado igual ou inferior a R$ 100,00 (cem reais)". Dessa forma, depreende-se que enquanto este artigo determina a extinção do crédito fiscal não superior a R$ 100,00, o art. 20 tão-somente prevê o não ajuizamento da ação de execução ou o arquivamento sem baixa na distribuição, não havendo, portanto, a extinção do crédito (i.e., o interesse fiscal ainda subsiste, quedando-se apenas postergado). Daí, como bem ressalta o Ministro Felix Fischer, "porque não se pode invocar este dispositivo normativo para regular o valor do débito caracterizador da matéria penalmente irrelevante. Com efeito, tal dispositivo apenas assevera que fica postergada a execução com vista a cobrança da dívida ativa enquanto o montante não alcançar os valores ali previstos, o que não se confunde com a extinção do crédito tributário" (cf. Resp 685.135/PR). Seguindo essa nova linha, tem-se os seguintes precedentes:HC 32576/RS, 6ª Turma, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, DJ 06/02/2006; REsp 704892/PR, 5ª Turma, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, DJ 10/10/2005; REsp 742895/PR, 5ª Turma, Rel. Min. Gilson Dipp, DJ 19/09/2005; HC 38965/RS, 5ª Turma, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, DJ 22/08/2005; HC 41700/RS, 5ª Turma, Rel. Min. Felix Fischer, DJ 20/06/2005 etc.
Por fim, impende salientar a existência de um tema ainda bastante polêmico no âmbito do STJ. Trata-se do fato de o réu, acusado de descaminho, responder a outros processos criminais referentes ao mesmo crime. Pergunta-se: esse fato impediria a aplicação do princípio da insignificância? Há decisões nos dois lados. No sentido de que a habitualidade criminosa impede a incidência do princípio, tem-se, dentre outras: HC 54.772/PR, 6ª Turma, Rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa, DJ de 26/06/2006; HC 44.986/RS, 6ª Turma, Rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa, DJ de 07/11/2005; HC 33655/ RS, 5ª Turma, Rel. Min. Laurita Vaz, DJ 09/08/2004 etc. Em sentido contrário, i.e., de que pouco importa para a aplicação do princípio da bagatela o fato de o acusado estar respondendo a processos pelo mesmo delito, tem-se: HC 34270/PR, 5ª Turma, Rel. p/ acórdão Min. Felix Fischer, DJ 17/12/2004; REsp 633657/ RJ, 5ª Turma, Rel. Min. Felix Fischer, DJ 06/12/2004; HC 34641/RS, 5ª Turma, Rel. Min. Felix Fischer, DJ 02/08/2004 etc. Esta última posição, a meu ver, é a correta. Afinal, modernamente se tem asseverado que o tipo penal não se esgota no mero juízo lógico-formal de subsunção de uma determinada conduta ao modelo descritivo legal (tipicidade formal ou legal). Para além desse juízo de sotoposição, faz-se mister que a conduta seja penalmente típica, é dizer, que afete o bem jurídico tutelado (desvalor do resultado). Assim, o princípio da insignificância tem o condão de levar à atipicidade material (ou conglobante, cf. nomenclatura de E. R. Zaffaroni). Decorrência lógica, é o fato de que "circunstâncias de caráter eminentemente subjetivo, tais como reincidência, maus antecedentes e, também, o fato de haver processos em curso visando a apuração da mesma prática delituosa, não interferem na aplicação do princípio da insignificância, pois este está estritamente relacionado com o bem jurídico tutelado e com o tipo de injusto" (cf. Ministro Felix Fischer, in HC 34641/RS, 5ª Turma, DJ 02/08/2004). Nesta mesma linha já se pronunciou o Supremo Tribunal Federal (AI-QO 559904/RS, 1ª Turma, Rel. Ministro Sepúlveda Pertence, DJ de 26/08/2005).
De tudo quanto foi dito, pode-se concluir: a.) o princípio da insignificância tem aplicação no delito de descaminho; b.) o grau de ofensividade da conduta deve ser considerada em relação ao valor do tributo incidente sobre as mercadorias apreendidas (leia-se: valor do imposto iludido e não o valor das mercadorias em si); c.) incide o princípio se o valor devido, por força do descaminho de bens, for igual ou inferior a R$ 100,00 (cem reais) – art. 18, §1º, da Lei nº 10.522/02; e d.) é indiferente que o acusado tenha maus antecedentes, seja reincidente ou esteja respondendo a processos pelo mesmo crime, pois para a aplicação do princípio da bagatela só se devem considerar aspectos objetivos, pouco importando, portanto, as circunstâncias de caráter eminentemente pessoal.