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Manifestação do abuso do poder econômico nos pleitos eleitorais brasileiros

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2 O ABUSO DO PODER

SUMÁRIO: 2.1 O ABUSO DE DIREITO NA ESFERA PRIVADA 2.2 O ABUSO DO PODER NA ESFERA PÚBLICA 2.2.1 ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA 2.2.2 O USO E ABUSO DO PODER 2.2.3 DO EXCESSO DE PODER. 2.2.4 DO DESVIO DE FINALIDADE 2.3 O ABUSO DO PODER NAS ELEIÇÕES 2.3.1 ABUSOS DO PODER POLÍTICO 2.3.2 ABUSO DO PODER ECONÔMICO.

2.1 O ABUSO DE DIREITO NA ESFERA PRIVADA

Como ponto de partida, temos que o Direito Privado é o ramo do direito que regula as relações entre os particulares, regido fundamentalmente pelo princípio da autonomia da vontade, significa dizer que cabe às partes elegerem as finalidades que desejam alcançar em suas relações intersubjetivas [48]. Tendo em vista que foi na esfera privada a nascente jurídica do "abuso do poder" [49], iniciaremos nossa análise pelo estudo do "abuso do direito" no âmbito privado.

O abuso de direito tem seus primeiros registros entre os romanos, no período em que vigorava o princípio "nemine laedit qui jure suo utitut" (aquele que age dentro de seu direito a ninguém prejudica), princípio, este, de caráter essencialmente individualista e justificador de excessos e abusos por parte do titular do direito. Entretanto, em razão das injustiças provocadas em casos em que era evidente a intenção de lesar a direito de outrem, passou-se a adotar outros princípios, tais como: o "neminem laedere" (não lesar a ninguém) e o "summum jus, summa injuria" (supremo direito, suprema injustiça), e isto em virtude de que, em qualquer sociedade civilizada, é norma essencial o dever de não prejudicar outrem. [50]

Verifica-se, com isto, o desfalecimento do caráter absoluto do exercício dos direitos, bem como um fundamento de cunho ético e moral para a coibição de tais abusos, na medida em que a configuração do "abuso de direito" como limitação ao exercício destes, é oriundo do sentimento de reprovabilidade das condutas daqueles que exerciam seu direito exclusivamente para causar dano a outrem, sem o objetivo de auferir qualquer benefício com o ato. [51]

Neste contexto, vejamos o que dispõe os artigos 187 e 188 do Código Civil vigente:

Art. 187 - Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

Art. 188 - Não constituem atos ilícitos:

I - os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido;

II - a deterioração ou destruição da coisa alheia, ou lesão a pessoa, a fim de remover perigo iminente.

Parágrafo único - No caso do II, o ato será legítimo somente quando as circunstâncias o tornarem absolutamente necessário, não excedendo os limites do indispensável para a remoção do perigo. [grifo nosso]

Pode-se observar no artigo 187, que a própria lei estabelece limites ao exercício do direito, e isto sob pena de considerá-los atos ilícitos. As limitações são: a) os fins econômicos: corresponde à busca pelo equilíbrio na satisfação dos interesses em uma relação de natureza patrimonial, em outras palavras, uma parte não pode objetivar vantagem econômica exacerbada que prejudique a outra; b) fins sociais: é a finalidade para a qual o ordenamento jurídico criou a regra que assegura o direito subjetivo, em toda relação privada exige-se que o comportamento seja informado de um fim social; c) a boa-fé: padrão de comportamento ou como técnica que permite adaptar uma regra de direito ao comportamento médio em uso em uma dada sociedade e; d) os bons costumes: constituem um conjunto de regras e princípios impostos pela moral, que traduz a norma de conduta dos indivíduos em suas relações sociais e contratuais, a fim de que se articulem segundo a finalidade das próprias pessoas vivendo em sociedade e aceitando as normas materializadas em lei. [52]

Já o inciso I, do artigo 188, traz duas hipóteses em que o ato praticado não será considerado ilícito, um deles é aquele praticado no "exercício regular de um direito reconhecido". Logo, em uma interpretação (mesmo literal) do dispositivo, o ato praticado de maneira irregular será considerado ilícito. Da mesma forma será considerado o ato disposto no parágrafo único do mesmo dispositivo legal (aquele praticado com excesso na remoção de perigo iminente).

Sílvio de Salvo Venosa [53] ensina que "juridicamente, abuso de direito pode ser entendido como o fato de se usar de um poder, de uma faculdade, de um direito ou mesmo de uma coisa, além do que razoavelmente o Direito e a sociedade permitem". O autor ressalta ainda que o exercício de um direito não pode jamais afastar-se da finalidade para a qual esse direito foi criado, uma vez que no exercício abusivo do direito, sob a máscara de ato legítimo, esconde uma ilegalidade. Trata-se, portanto, "de um ato jurídico aparentemente lícito, mas que, levado a efeito sem a devida regularidade, ocasiona resultado tido como ilícito. (...) Nessa situação, o ato é contrário ao direito e ocasiona a responsabilidade do agente pelos danos causados". Ademais, esta responsabilização deve ser feita de modo objetivo, afastando a noção de culpa na análise da responsabilidade do causador do dano.

No mesmo sentido, Emerson Garcia afirma:

Qualquer que seja o meio de exercício de um direito, deve o mesmo ater-se ao ideal de harmonia social, fonte mediata e razão de ser do próprio ordenamento jurídico; o que restringe a legalidade de seu exercício à satisfação de um interesse legítimo e dissociado da vontade de impedir que outrem exerça um direito que o ordenamento lhe confere. (...) Como se vê, o fundamento da coibição do abuso de direito é eminentemente teológico e social, sendo despicienda à sua configuração a vontade deliberada do agente em causar dano a outrem; haverá de ser objetivamente pesquisada a intenção, isto em conformidade com o normal proceder do ‘homo medius’, com a conseqüente verificação da adequação do obrar do agente à média social. Verificada a anormalidade do comportamento e sua dissonância com os fins da norma, consubstanciado estará o abuso de poder, quer tenha contornos de dolo ou culpa[54] [grifo nosso]

Na precisa e esclarecedora lição de Carlos Fernández Sessarego, temos que:

El denominado ‘abuso del derecho’, según la generalidade de los juristas, opera como un límite impuesto al ejercicio del derecho subjetivo. La convicción de establecer un límite a los derechos subjetivos nace de la necesidad de proteger a los ‘otros’, con quienes entra en relación el titular de tales derechos, de actitudes egoístas y antisociales, descriptas como ‘anormales’ o ‘irregurales’. Se trata de evitar que el titular de un derecho subjetivo cometa excesos al actuar sus diretos, o al no usarlos, que agravien intereses ajenos dignos de tutela jurídica. [55] [grifo nosso]

Para concluir, Carlos Roberto Gonçalves traz a visão jurisprudencial pátria quanto ao assunto:

Dentre as várias fórmulas mencionadas pelos autores, observa-se que a jurisprudência, em regra, considera como abuso de direito o ato que constitui o exercício egoístico, anormal do direito, sem motivos legítimos, com excessos intencionais ou involuntários, dolosos ou culposos, nocivos a outrem, contrários ao destino econômico e social do direito em geral, e, por isso, reprovados pela consciência pública. [56] [grifo nosso]

Conclui-se, então, que o "abuso do direito" (na esfera privada) pode ser entendido como uma modalidade de "abuso de poder", na medida em que os poderes que a lei confere ao titular de determinando direito devem ser exercidos de forma legítima, isto é, em conformidade com os limites impostos pelos fins econômicos e sociais, pela boa-fé e pelos bons costumes, de forma que seu exercício não prejudique a direito de outrem, sob pena de, agindo contrariamente a estes ditames, o seu titular proceder de forma abusiva, excedendo os poderes que lhe foram conferidos pela norma legal, respondendo, independentemente de dolo ou culpa, pelos danos causados.

2.2 O ABUSO DE PODER NA ESFERA PÚBLICA

Inversamente ao Direito Privado, o Direito Público ocupa-se com os interesses da sociedade como um todo, prevalecendo sempre o interesse público perante o privado [57]. Em que pese haver tal diferença, foi a partir das ideias oriundas do "abuso do direito" na esfera privada, que se projetaram singulares características no âmbito publicista do direito, encontrado-se definidas limitação com o advento do constitucionalismo. [58]

Com efeito, para que fosse possível a desconcentração dos poderes do Estado e a defesa da liberdade dos indivíduos, a maioria das Constituições dos Estados Modernos consagrou o sistema da "divisão de poderes", encerrada por Montesquieu, em 1748, na obra "De L’Esprit des Lois".

Para Montesquieu, era necessária a existência de um órgão próprio para cada função estatal, considerando indispensáveis que o Estado fosse organizado em três poderes: um poder legislativo, um executivo e um judiciário, todos harmônicos e independentes entre si.

Dessa forma, segundo este sistema, o poder legislativo só poderia praticar atos gerais, consistentes na emissão de regras gerais e abstratas, não se sabendo, no momento de serem emitidas, a quem irão atingir; o poder executivo seria responsável pelos atos especiais, aplicando as normas gerais e abstratas nos limites em que fossem editadas e; o poder judiciário teria a função fiscalizar abusos por parte dos outros poderes, obrigando cada um deles a permanecer nos limites de suas respectivas esferas de competência. [59]

Inspirados neste sistema, os Estados Modernos são caracterizados por terem institucionalizado o poder, normalizando-o, definindo atribuições e esferas de competência, implicando na elaboração e promulgação de uma Constituição, em nome do povo, pelos representantes da soberania popular, com o objetivo de limitar os poderes dos governantes, de modo a evitar excessos e abusos, e a buscar sempre a realização do bem comum.

Jandira Alvares lembra que nos regimes absolutos, "a administração era apenas uma técnica a serviço do príncipe, porém no Estado de Direito, o poder é submetido ao domínio da lei. Esta, como expressão de vontade coletiva, vincula a tanto os indivíduos como também as autoridades públicas." [60] Segundo Diogo de Figueiredo Moreira Neto, esta sujeição da ação do Estado ao Direito foi uma das conquistas mais significativas e notáveis do espírito humano [61].

Desta feita, a Constituição da República Federativa do Brasil ora vigente dispõe em seu artigo 2º que: "São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário". A cada um dos Poderes são atribuídas funções preponderantes (típicas): a do Legislativo, criação de leis novas (função normativa); a do Judiciário, na composição de litígios (função judicial) e; do Executivo, a gestão dos interesses coletivos fundados debaixo de uma estrutura jurídica ordenada (função administrativa). [62]

Não obstante a definição de funções típicas, aos Poderes do Estado também cabem desempenhar funções atípicas, como por exemplo, cabe ao Poder Legislativo (Senado Federal) processar e julgar o Presidente e o Vice-Presidente da República nos crimes de responsabilidade [63], ou no do Judiciário que, embora sua função típica seja processar e julgar conflitos de interesses, ao próprio cabe a administração de sua estrutura, e elaboração de seus regimentos internos. [64] Assim, a teoria de "tripartição dos Poderes" não enseja uma separação absoluta de funções, estando dispostas na Constituição Federal as competências e limites de atuação de cada Poder Estatal.

Há que se ressaltar também que a nossa Carta Magna vigente, já no preâmbulo, destaca a opção pela democracia como regime político, instituído como um dos fundamentos a cidadania (art. 1º, inciso II), e dispondo (no parágrafo único do art. 1º) que "todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição". No art. 14, estabelece que "a soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos", e no art. 60, § 4º, inciso II, dispõe que "não será objeto de deliberação a proposta de emenda constitucional tendente a abolir o voto direto, secreto, universal e periódico". Com isso, apresenta-se notória a preocupação do constituinte com a consolidação do Estado brasileiro como nação democrática, a qual tem, por conseguinte, como valores essenciais, a liberdade e a igualdade [65].

Ademias, a Constituição utilizou-se da expressão "República Federativa" (art. 1º), e isto para indicar que o Estado brasileiro não é governado por um Monarca que teve acesso ao poder por direito hereditário, mas por uma pessoa ou um colégio de várias pessoas eleitas pelo povo, seja direta ou indiretamente [66], fundado na pluralidade de centros de poder soberanos coordenados entre si, de modo tal que ao Governo federal (que tem competência sobre o inteiro território da federação) seja conferido uma quantidade mínima de poderes indispensável para garantir a unidade política e econômica, e aos Estados federais (que têm competência cada um sobre o próprio território) sejam assinalados os demais poderes [67].

Com efeito, leciona José Afonso da Silva que o princípio Republicano (presente nas Constituições brasileiras desde 1891) refere-se a uma determinada forma de Governo, mas é, de fato, um princípio especificamente designativo de uma coletividade política que remete às características da res publica em seu sentido originário: coisa do povo e para o povo, opondo-se, assim, a toda forma de tirania. Já a forma Federativa de Estadosignifica a divisão espacial de poderes, a repartição do poder no espaço territorial, gerando uma multiplicidade de organizações governamentais, distribuídas regionalmente. [68]

Assim, a organização político-administrativa do Estado Federal brasileiro compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios todos com autonomia política, administrativa e financeira, sendo, porém, submetidos ao que dispõe a Constituição Federal [69].

2.2.1 Administração pública

Após a organização soberana do Estado, com a instituição constitucional dos três poderes e da divisão político-territorial, segue-se a organização da Administração, ou seja, a estruturação legal das entidades e órgãos incumbidos de desempenhas as funções, através de agentes públicos. [70]

De início, vale esclarecer que a doutrina menciona alguns sentidos quando se remete à Administração Pública. Maria Sylvia Di Pietro [71] explica que Administração Pública em sentido subjetivo, formal ou orgânico, designa os entes que exercem a atividade administrativa; pessoas, órgãos e agentes públicos incumbidos de exercer uma das funções administrativa do Estado. Já o sentido objetivo, material ou funcional, é a designação da natureza da atividade exercida pelos referidos entes, ou seja, trata-se da própria função administrativa que incumbe, predominantemente, ao Poder Executivo.

Diogo de Figueiredo Moreira Neto [72] ensina quando a expressão Administração Pública, ou apenas a palavra Administração, for grafada com letra maiúscula, estar-se-á designando não a atividade, mas o ente que exerce a gestão, na acepção subjetiva de Estado-administrador, ou, apenas, de Governo, aqui, excluindo-se as atividades legislativas e jurisdicionais.

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Diante disto, constituem a Administração Pública no seu sentido instrumental amplo (centralizada e descentralizada), os entes estatais com ampla autonomia (União, os Estados-membros, o Distrito Federal e os Municípios), e as pessoas de direito público instituídas ou autorizadas por lei (autarquias, fundações, empresas governamentais e entidades paraestatais). [73] Estes são os órgãos incumbidos de executar as atividades do Estado para a realização dos seus fins, sempre debaixo da ordem jurídica vigente [74].

2.2.2 O uso e o abuso de poder

No Brasil, o "uso do poder" pelos agentes públicos (poder, este, conferido pelo povo) é mais que uma prerrogativa, é uma obrigação, um dever, cujo objetivo é sempre a realização do bem comum. A utilização desta prerrogativa em desconformidade com o interesse público ou de forma desproporcional configura o "abuso de poder".

Neste sentido, Hely Lopes Meirelles, ensina que:

O uso do poder é prerrogativa da autoridade. Mas o poder há que ser usado normalmente, sem abuso. Usar normalmente do poder é empregá-lo segundo as normas legais, a moral da instituição, a finalidade do ato e as exigências do interesse público. Abusar do poder é empregá-lo fora da lei, sem utilidade pública. O poder é confiado ao administrador público para ser usado em benefício da coletividade administrada, mas usado nos justos limites que o bem-estar social exigir. A utilização desproporcional do poder, o emprego arbitrário da força, a violência contra o administrado, constituem formas abusivas do uso do poder estatal, não toleradas pelo direito e justificadores dos atos que as encerram. O uso do poder é lícito; o abuso, sempre ilícito. Daí por que todo ato abusivo é nulo, por excesso ou desvio de poder. [75] [grifo nosso]

Desta forma, sob a égide dos princípios do Estado Democrático de Direito, o governante deve agir (obrigatoriamente) conforme o estabelecido na Constituição e demais leis vigentes no ordenamento jurídico. Assim, lhe são conferidos poderes para agir, gerir a coisa pública, buscar os objetivos da coletividade. Estes ditos poderes-deveres são meros instrumentos para o alcance do bem comum, sendo que, ultrapassados os limites estabelecidos pela lei, ou desviando-se da finalidade imposta por ela, atua, necessariamente, com "abuso de poder" [76].

Para o exercício da atividade administrativa, a Administração (ou de quem exerça em seu nome atividade pública), agindo com supremacia do interesse público, no uso de suas prerrogativas, e sob um regime jurídico de Direito Público, edita atos que produzem efeitos jurídicos, tais atos são denominados atos administrativos. [77] Di Pietro os conceitua como sendo a "declaração do Estado ou de quem o represente, que produz efeitos jurídicos imediatos, com observância da lei, sob regime jurídico de direito público e sujeita a controle pelo Poder Judiciário." [78]

Os atos administrativos podem ser de duas categorias: atos vinculados e discricionários. Atos vinculados são aqueles para os quais a lei estabelece previamente os requisitos e condições de sua realização. Nessa categoria de atos, as imposições legais absorvem, quase que por completo, a liberdade do administrador, uma vez que sua ação fica adstrita aos pressupostos fixados pela norma legal. Já os atos discricionários, por sua vez, são os que a Administração pode praticar com liberdade de escolha de seu conteúdo, de seu destinatário, de sua conveniência, de sua oportunidade e do modo de sua realização. [79] Vale ressaltar que ato discricionário não se confunde com ato arbitrário, apesar de a lei permitir a formulação de juízo de valor acerca da sua realização, o ato deve ser balizado sempre pela finalidade coletiva. [80]

Jandira Teixeira Alvares afirma que para conter os abusos na atuação da Administração e verificar a validade de determinado ato ou existência de algum vício, deve-se inicialmente investigar se foram ou não respeitados os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, proporcionalidade e publicidade. Princípios estes que norteiam a atuação do bom administrador; depois, verificar se houve danos a terceiros, caso positivo, deve-se repará-lo aferindo objetivamente a responsabilidade estatal; e por fim, deve-se analisar se foi cumprido, pelo agente, o dever de motivação do ato perpetrado. [81]

Como mencionado anteriormente, se o agente público, no exercício da atividade pública, praticar atos administrativos que ultrapassem os limites estabelecidos pela lei, ou que desviem da finalidade imposta por ela, atuará com "abuso de poder", configurando: "excesso de poder" ou com "desvio de finalidade".

2.2.3 Do excesso de poder

Os atos praticados com "excesso de poder" ocorrem quando um agente público, embora competente para a prática de determinado ato, atua fora do alvo circunscrito pela legalidade, exorbitando da faculdade que lhe foi atribuída. [82]

Exceder, aqui, corresponde a ultrapassar o uso normal da competência, empregando-a com arbítrio e violência. Temos, portanto, que é um vício caracterizado por um critério quantitativo. [83]

Hely Lopes ensina que:

O excesso de poder ocorre quando a autoridade, embora competente para praticar o ato, vai além do permitido e exorbita no uso de suas faculdades administrativas. Excede, portanto, sua competência legal e, com isso, invalida o ato, porque ninguém poderá agir em nome da Administração fora do que a lei lhe permite. O excesso de poder torna o ato arbitrário, ilícito e nulo. (...) Essa conduta abusiva, através do excesso de poder, tanto se caracteriza pelo descumprimento frontal da lei, quando a autoridade age claramente além de sua competência, como, também, quando ela contorna dissimuladamente as limitações da lei, para arrogar-se poderes que não lhe são atribuídos legalmente. Em qualquer dos casos há excesso de poder, exercido com culpa ou dolo, mas sempre com violação da regra de competência, o que é bastante para invalidar o ato assim praticado. [84] [grifo nosso]

Em síntese, o "excesso de poder" ocorre quando a autoridade pública age em desconformidade com a lei, ultrapassando os limites legais impostos ou quando dissimuladamente arroga-se de competências que não lhes são conferidas.

2.2.4 Do desvio de poder (ou finalidade)

Como visto anteriormente, a Administração Pública além de pautar-se de acordo com princípio da legalidade, deve aplicar a lei em conformidade com o objetivo para que foi criada, não bastando que a sua atuação coincida com a letra da lei, sendo imperioso sua adesão ao espírito dela, à finalidade que a anima.

Jandira Alvares afirma que a função administrativa pressupõe sempre que o sujeito que a exerce, recebeu da ordem jurídica um dever de alcançar certa finalidade preestabelecida, de forma que os poderes que lhe foram atribuídos sejam exercidos como meios reputados como aptos para atender a finalidade legal, que lhes justificou a outorga dos mesmos. [85]

Quando o agente público, competente para prática de determinado ato, manifesta sua vontade, e esta se afasta do fim colimado para perseguir finalidade diversa da visada: incide desvio de finalidade. [86]

Desviar corresponderá à distorção do ato administrativo, orientando-o para alvo diverso daquele que deveria atingir. Trata-se aqui de vício de índole ou qualidade do ato. [87]

De maneira simples ensina Di Pietro que:

Se a lei dá à Administração os poderes de desapropriar, de requisitar, de intervir, de policiar, de punir, é porque tem em vista atender ao interesse geral, que não pode ceder diante do interesse individual. Em conseqüência, se, ao usar de tais poderes, a autoridade administrativa objetiva prejudicar um inimigo político, beneficiar um amigo, conseguir vantagens pessoais para si ou para terceiros, estará fazendo prevalecer o interesse individual sobre o interesse público e, em conseqüência, estará se desviando da finalidade pública prevista na lei. Daí o vício do desvio de poder ou desvio de finalidade, que torna o ato ilegal. [88]

Hely Lopes leciona no seguinte sentido:

O desvio de finalidade ou de poder se verifica quando a autoridade, embora atuando nos limites de sua competência, pratica o ato por motivos ou por fins diversos dos objetivados na lei ou exigidos pelo interesse público. O desvio de finalidade ou de poder é, assim, a violação ideológica da lei, ou, por outras palavras, a violação moral da leicolimando o administrador público fins não queridos pelo legislador, ou utilizando de motivos ou meios imorais para a prática de um ato aparentemente legal. [...] Dentre os elementos indiciários do desvio de finalidade está a falta de motivo ou a discordância dos motivos com o ato praticado[89]

Bandeira de Mello entende no mesmo sentido. Para este autor, há "desvio de poder" quando um agente exerce uma competência que possuía (em abstrato) para alcançar uma finalidade diversa daquela em função da qual lhe foi atribuída a competência exercida, podendo manifestar-se de dois modos: a) quando o agente busca uma finalidade alheia ao interesse público (no caso de um superior que remove um funcionário para local afastado sem nenhum fundamento de fato que requeresse o ato, mas apenas para prejudicá-lo em razão de inimizade) e, b) quando o agente busca uma finalidade - ainda que de interesse público - alheia à "categoria" do ato que utilizou (quando o agente remove um funcionário - que merecia punição - a fim de castigá-lo, todavia, a remoção não é ato de categoria de punição) [90].

Vale mencionar, por fim, os ensinamentos de Cretella Júnior, o qual entende que para ocorrer "desvio de poder", deve-se observar a quatro elementos: 1º) autoridade administrativa; 2º) competência; 3º) uso do poder discricionário e; 4º) fim diverso do fixado na lei. Sendo assim, conceitua-se desvio de poder como "uso indevido que a autoridade administrativa competente faz do poder discricionário que lhe é conferido, para atingir finalidade diversa daquela que a lei explícita ou implicitamente preceitua" [91].

Em suma, o "desvio de poder" ou "desvio de finalidade" são caracterizados pelo uso indevido, pela autoridade pública, de competência que lhe foi atribuída para consecução do interesse público, ultrapassando os limites ou desvirtuando a finalidade da lei.

2.3 O ABUSO DE PODER NAS ELEIÇÕES

A partir daqui começamos a vislumbrar mais de perto nosso objeto de estudo, qual seja, a manifestação e o controle do abuso do poder econômico nas eleições brasileiras. Antes, porém, é necessária uma visão geral do assunto.

De fato, os abusos praticados com o escopo de afetar os resultados dos pleitos eleitorais não são novidades na história política do nosso país. O que diferencia as práticas modernas das antigas formas de desigualar o certame eleitoral, é que, hoje, elas não são primárias (ou seja, dificilmente ocorrem na votação ou na contagem), quiçá baratas como a conhecida "fraude do fósforo", na qual um bom fósforo votava várias vezes em freguesias diversas - dizia a história do Doquinha, retratada por Mário Palmério, em Vila dos Confins:

[...] Votou, a primeira vez, barbudo, representando o velho Didico, morto havia mais de ano; fez a barba, deixando o bigode, e foi para outra seção votar em nome de um tal de Carmelita, sumido desde meses; tirou o bigode e, com a cara mais limpa e lavada deste mundo, preencheu a falta de outro eleitor; e dizem ainda que votou mais uma vez, de cabelo oxigenado e cortado à escovinha, substituindo um rapazinho alemoado. [92]

Tampouco se parecem como as fraudes que ocorriam no tempo da República Velha, período em que eram generalizadas e ocorriam em todas as fases do processo eleitoral, sendo típica a falsificação pela "degola" e a denominada "reunião das cinco horas", hora esta em que se encerravam as eleições, e nos dizeres de Vitor Nunes Leal, "inventavam-se nomes, eram ressuscitados mortos e os ausentes compareciam; na feitura das atas, a pena todo-poderosa dos mesários realizava milagres poderosos" [93].

Passaram-se os anos, desenvolveram-se as instituições, editou-se um "novo" Código Eleitoral (em 1965), sobrepuseram-se leis para regular os pleitos, e o nosso país ainda não conseguiu livrar-se de todas as enfermidades que enfraquecem a nossa democracia, problemas que se perpetuam com práticas reiteradas de atitudes imorais (e ilegais), passando a fazer parte da nossa cultura práticas que estão atreladas ao modo de fazer política no Brasil. Cito, por exemplo, o problema da "compra de voto", que nada mais é que a moderna forma da prática conhecida antigamente como "voto de cabresto", na qual o candidato amarra o eleitor a si mediante a entrega de algum benefício, fazendo do voto um objeto de troca, "quem faz do voto uma mercadoria é o candidato (que compra) e não o eleitor (que vende), a subversão do processo vem de cima" [94].

Com a promulgação da atual Carta Constitucional, foram tomadas diversas medidas a fim de combater as fraudes e consolidar o processo democrático, das quais as mais importantes foram: o recadastramento em 1986, que informatizou e unificou nacionalmente o registro de eleitores com o Tribunal Superior Eleitoral evitando as fraude no cadastramento, e a utilização da urna eletrônica que apura automaticamente os votos, dificultando fraude no momento da votação e da contagem. [95]

A preocupação do constituinte com o processo de escolha dos representantes mostra-se evidente quando dispõe, no art. 14, § 9º, que Lei Complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade [96] e de cassação de mandato a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada a vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta. Além disso, dispõe no § 10, do mesmo artigo, sobre a possibilidade de impugnação do mandato do candidato eleito se houver prova de abuso do poder econômico.

Não é de outra forma que o Código Eleitoral, no seu art. 237, dispõe que: "a interferência do poder econômico e o desvio ou abuso do poder de autoridade, em desfavor da liberdade do voto, serão coibidos e punidos". A Lei Complementar 64/90 traz as sanções nos casos de abuso de inelegibilidade (art. 1, inciso I, alínea "d"), e o procedimento a ser adotado no caso de abuso do poder econômico (art. 19 e 22).

Por fim, a Lei n.º 9.504/97, conhecida como Lei das Eleições, que pôs fim a um tormentoso costume de legislações casuísticas, em que a cada pleito editava-se uma lei específica para regê-lo, de forma que estipulou regras definitivas para as eleições, trazendo dentre outros dispositivos normas relativas a arrecadação e aplicação dos fundos de campanha, prestação de contas à Justiça Eleitoral, propaganda partidária, condutas vedadas aos agentes públicos em campanha eleitoral, etc. [97]

Neste contexto, o que se pretende proteger é a efetividade do regime democrático, o respeito à legitimidade e a normalidade dos pleitos eleitorais, garantindo-se os direitos fundamentais de livre acesso às funções públicas, e de livre escolha dos representantes. Neste sentido, Caramuru Afonso Francisco leciona:

Uma eleição, para ser considerada legítima e normal, não pode ostentar quaisquer das hipóteses trazidas pelo constituinte, sob pena de não se poder considerar seus resultados, pois aí, então, ter-se-á como não efetivado direito fundamental do homem, qual seja, o de livremente acessar funções públicas ou de livremente poder escolher seus governantes[98] [grifo nosso]

Emerson Garcia acrescenta, "aqueles que se elevarem ao poder utilizando-se de métodos que não reflitam a vontade popular em sua pureza e integralidade, em essência, não poderão apresentar-se como representantes desta, pois destituídos de legitimidade" [99]. Ademais, observa o autor, lembrando a noção de abuso de direito, que o abuso de poder nas eleições ocorre sempre quando alguém ao exercer o seu direito, prejudica o direito de igualdade de todos no pleito, de modo a afetar o regular desenvolvimento do certame e a imperiosa correlação que deve existir entre a vontade popular e o resultado das urnas.

O que ocorre é que, em que pese tamanho arcabouço legal, a identificação dos abusos de poder nas eleições ainda encontra-se envolto a dúvidas, mormente, no que diz respeito ao abuso de poder econômico. Diante disto, faremos um sobrevoo pelos abusos nas eleições antes de enfrentarmos o problema quanto à identificação dos abusos praticados pelo poder econômico, facilitando o seu estudo.

2.3.1 Abuso do poder político

A preocupação com o abuso do poder político nas eleições ganha peso com a edição da Emenda Constitucional n.º 16/97, a qual autorizou pela primeira vez no Brasil a reeleição para um único período subsequente, do Presidente da República, Governadores de Estado e do Distrito Federal, Prefeitos e quem os houver sucedido, ou substituído no curso dos mandatos [100], ou seja, permitiu-se que os chefes do Poder Executivo (Federal, Estadual e Municipal) disputassem as eleições sem precisar se afastar dos cargos já ocupados.

Desta feita, considerando a Constituição, em essência, um instrumento jurídico limitador do fenômeno político, é nela onde primeiro encontramos previsão de coibição ao abuso de poder político nas eleições [101]. No § 9º, art. 14, da Carta Magna, o constituinte expressa sua vontade de proteger a normalidade e a legitimidade das eleições contra abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta.

Nas normas infraconstitucionais, o Código Eleitoral, além da cláusula geral expressa no art. 237 [102], traz como tipo de crime eleitoral (art. 300) "valer-se o servidor público da sua autoridade para coagir alguém a votar ou não votar em determinado candidato ou partido", podendo ser punido com até seis meses de detenção; e a Lei 9.504/97, em seus artigos 73 a 78, elenca um rol de condutas vedadas aos agentes públicos em campanhas eleitorais.

Dentre as hipóteses de condutas vedadas encontramos: (a) "ceder ou usar, em benefício de candidato, partido político ou coligação, bens móveis ou imóveis pertencentes à administração direta ou indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Territórios e dos Municípios"; (b) "usar materiais ou serviços, custeados pelos Governos ou Casas Legislativas, que excedam as prerrogativas consignadas nos regimentos e normas dos órgãos que integram"; (c) "ceder servidor público ou empregado da administração direta ou indireta federal, estadual ou municipal do Poder Executivo, ou usar de seus serviços, para comitês de campanha eleitoral de candidato, partido político ou coligação, durante o horário de expediente normal"; (d) "fazer ou permitir uso promocional em favor de candidato, partido político ou coligação, de distribuição gratuita de bens e serviços de caráter sociais custeados ou subvencionados pelo Poder Público", ente outras hipóteses prevista na lei.

Conforme visto no capítulo em que tratamos do abuso de poder na esfera pública, os governantes (e agentes públicos em geral) devem, obrigatoriamente, agir conforme o estabelecido na Constituição e demais leis vigentes no ordenamento jurídico, de forma a (sempre) buscarem o interesse coletivo. Para tanto, lhes são conferidos poderes-deveres, ultrapassando os limites estabelecidos pela lei, ou desviando-se da finalidade imposta por ela, atuam, necessariamente, com "abuso de poder". Destarte, ainda mais grave parece ser o comportamento abusivo do Poder Público que tem como escopo influir no processo de escolha de representantes, desviando-se do interesse público e ferindo o regime democrático, desequilibrando a competição eleitoral. [103]

Nesse sentido, acautela Mauro Noleto, "governar nesse período exige, além da recomendada boa-fé, muita cautela" [104], e isto tendo em vista que, além de observar os princípios constitucionais da Administração Pública, quais sejam, a moralidade, impessoalidade, publicidade, legalidade e eficiência, o administrador não pode praticar (de três a seis meses antes do pleito, conforme o caso) certos atos de gestão como: criar programas sociais, demitir ou contratar servidores, transferir recursos para entes federativos, fazer propaganda institucional, entre outros, sob pena de ter o registro ou o diploma cassado.

Pode-se afirmar, portanto, que este tipo de abuso consiste nas condutas praticadas por agentes públicos no exercício de função, cargo ou emprego na administração pública, direta ou indireta, que possam afetar a igualdade de oportunidades entre os candidatos no procedimento eleitoral, arranhando, assim, a legitimidade e a normalidade das eleições. [105]

Aqui, segundo lição de Ademir Ismerim Medina [106], deve-se interpretar "agentes públicos" de maneira ampla, de modo a abarcar todos aqueles que exerçam (mesmo que transitoriamente, atividade pública, remunerada ou não, por meio de qualquer forma de investidura ou vínculo - eleição, nomeação, designação, contratação, etc...) mandato, cargo, emprego ou função nos órgãos ou entidades da administração pública direta, indireta ou fundacional.

Necessário ressaltar ainda que, conforme entendimento do Tribunal Superior Eleitoral, "somente haverá abuso de poder político, juridicamente relevante, se houver a possibilidade concreta de a conduta modificar o resultado das eleições." [107] Assim, praticando, o agente público, qualquer das hipóteses a ele imputadas como vedadas, se não houver prova suficiente que aquela conduta foi potencialmente importante para desigualar a competição, não será ele punido nos termos da lei, e isto por, em que pese ter agido contra a lei, não ter ocorrido o comprometimento da normalidade e legitimidade das eleições (bem jurídico tutelado).

Neste sentido foi, por exemplo, o julgamento do Recurso Ordinário n.º 754, no qual o Tribunal entendeu pela não configuração do abuso do poder político em entrevista concedida por candidato a emissora radiofônica que cobria determinado evento local, e isto por considerar que não houve potencialidade na conduta que pudesse influenciar o resultado do certame [108]

De modo diverso, no entanto, foi o recente julgamento que envolveu o Governador da Paraíba (Cássio Cunha Lima, do PSDB), resultando na cassação do diploma de Governador de Estado. O então Governador e candidato a reeleição foi acusado de utilizar programa social para distribuir recursos públicos, mediante a entrega de cheques a determinadas pessoas, visando à obtenção de benefícios eleitorais. Ficou comprovado nos autos do processo que o candidato eleito atendia pessoalmente eleitores em diversos municípios do Estado; o envio de foto do mesmo junto com os cheques distribuídos; e a utilização de sua imagem em propaganda eleitoral gratuita. Tendo em vista tal quadro, o colegiado entendeu pela potencialmente da conduta do candidato em afetar o resultado da eleição, e pelo provável comprometimento da normalidade e equilíbrio na disputa. [109]

Friza-se, portanto, que não basta a conduta do candidato a reeleição ser típica, é mister que haja a potencialidade para afetar no resultado do pleito, comprometendo a lisura do procedimento de escolha de representantes.

2.3.2 Abuso do poder econômico

Quanto ao abuso do poder econômico nas eleições, trata-se de tema deveras nebuloso, e isto em face da dificuldade encontrada para definir o instituto. Olivar Coneglian diz que não existe definição legal e "nem mesmo a doutrina tem definido com exatidão o que seja abuso, porque ele pode ter inúmeras nuances, dependendo do local, do meio, das condições econômicas do sítio onde é praticado etc" [110].

O mesmo problema é expressado por Marco Aurélio Bellizza Oliveira [111], para o qual o abuso de poder é conceito aberto e indeterminado, e extremamente subjetivista, uma vez que dependerá da interpretação do julgador para diferenciar o uso normal do abuso, analisar o contexto probatório em que se assenta a conduta, e verificar a potencialidade para afetar no resultado do pleito.

Todavia, em que pese a dificuldade conceitual, a legislação trata do assunto em diversos diplomas legais. Na Constituição Federal, é abordado no art. 14, § § 9º e 10; no Código Eleitoral, no art. 237; na Lei Complementar n.º 64/90, nos arts. 1º, 19 e 22; na Lei n.º 9.504/97, nos artigos que tratam da arrecadação e aplicação de recursos nas campanhas eleitorais (art. 17 a 27); sem falar nos tipos de infração eleitoral previstos nos art. 299, do Código Eleitoral [112], e do art. 41-A da Lei 9.504/97, os quais, apesar de ilícitos eleitorais, são considerados, por parte da doutrina, como abuso de poder econômico, porém não ensejadores de inelegibilidade.

Ademais, se analisarmos atentamente a legislação atinente ao tema, perceberemos que a matéria é tratada de forma genérica (e abstrata), disciplinada por "uma legislação bisonha, vaga e imprecisa" [113], sem hipótese concreta de subsunção ao que vem a ser denominado de abuso de poder econômico nas eleições. Desta forma, "o problema passa a ser eminentemente interpretativo quando se torna necessário ‘definir’ o que seja prática abusiva, ainda mais considerando que a legislação eleitoral não estabelece limites de gastos nas campanhas" [114].

José Néri da Silveira afirma que se há dificuldade em conceituá-lo in abstrato, por depender de dados que demonstrem o desnivelamento, o desequilíbrio no uso da força econômica dos candidatos, a sua caracterização in concreto se torna ainda mais complexaesbarrando em dificuldades como a identificação dos recursos utilizados (lícitos ou ilícitos), ou no limite entre uso normal e excesso configurador do abuso [115].

Com isso, a propaganda política, com suas técnicas de persuasão e capacidade de convencimento de massa, agravara ainda mais essa situação, uma vez que se torna impossível "traçar lindes entre uso abuso, quando todos se sentem forçados a valer-se dela, quaisquer que sejam as fontes, e mesmo os menos dispostos a transpor os limites da conveniência e da lisura" [116].

De maneira genérica, pode-se dizer que o abuso de poder econômico nas eleições caracteriza-se pela desarrazoada utilização de recursos materiais (financeiros) da iniciativa privada para fins, principalmente, de propaganda eleitoral que atenta contra a isonomia dos candidatos [117], o que acaba por desvirtuar a essência do certamente eleitoral.

Ao invés de ser disputada a confiança do eleitorado, creditada por precedentes realizações na vida pública, pelo vigor da autêntica liderança política, por um trabalho de persuasão por afinidades de convicções, por solidariedades impregnadas, transformam-se em negócios com contraprestação pecuniária[118] [itálico do original]

O que ocorre é que o regime democrático contemporâneo exige, fundamentalmente, que a escolha dos representantes se dê através de eleições normais e legítimas, em que haja igualdade (tanto em relação às oportunidades entre os candidatos, quanto ao voto entre os eleitores), e que a vontade popular seja expressada livremente. Assim, uma disputa eleitoral deve ser pautada pelo convencimento, pela divulgação de ideias e pelos debates de programas de governo, apenas comportando o uso do dinheiro à medida do necessário à concretização desse processo de convencimento, quando a força do poder econômico supera a força do poder político, consistente na divulgação de ideias e no uso de palavras, as liberdades democráticas são ameaçadas, a ponto de macular a própria essência do sistema político democrático. [119]

Nesta mesma corrente de pensamento, Edson de Castro Resende define abuso do poder econômico no procedimento eleitoral da seguinte forma:

O abuso do poder econômico nada mais é do que a transformação do voto em instrumento de mercadoria. É a compra, direta ou indireta, da liberdade de escolha dos eleitores. [...] quando os candidatos resolvem utilizar-se do poder econômico, não como forma de viabilizar a campanha, mas como principal fonte de convencimento dos eleitores, caracteriza-se o abuso. Exatamente aí o candidato menospreza o poder do voto como instrumento de cidadania plena, como manifestação do poder do povo na formação do seu governo. E leva o eleitor carente a alienar a sua liberdade de escolha, o seu poder, em troca de vantagens econômicas de ocasião, uma cesta básica, uma receita médica, etc. [120] [grifo nosso]

Marco Aurélio Bellizze, citando Antonio Carlos Mendes, expõe que:

[...] o abuso do poder econômico em matéria eleitoral consiste, em princípio, no financiamento, direto ou indireto, dos partidos políticos e candidatos, antes ou durante a campanha eleitoral, com ofensa à lei e às instruções da Justiça Eleitoral, objetivando anular a igualdade jurídica, ou seja, igualdade de oportunidades - dos partidos, tirando, assim, a normalidade e legitimidade das eleições [...] [121]

Sídia Maria Porto Lima [122], ao tratar do assunto, lembra que não é a participação do poder econômico nas campanhas eleitorais que é proibido (havendo, inclusive, na legislação limitação às doações realizadas por pessoas físicas e jurídicas), mas a participação abusiva com a intenção de manipular da vontade dos eleitores.

Observa-se em tal posicionamento, a ideia de "abuso de direito", uma vez que a configuração da ilicitude ocorre quando o candidato ou o partido político extrapola do direito de usar os recursos financeiros (seja próprio ou de terceiros) nas campanhas eleitorais, fazendo isso com o objetivo de desequilibrar a disputa pelos cargos em disputa, ferindo o direito de todos os cidadãos de participar de eleições na qual haja igualdade entre candidatos e liberdade de escolha dos representantes. [123]

Conforme lição de Fávila Ribeiro, a interferência do poder econômico sempre trará ao processo eleitoral, seja em maior ou menor escala, a possibilidade de corrupção dos candidatos, haja vista que a necessidade de aportes financeiros para se ganhar uma eleição é cada vez maior, assim, até os genuínos líderes políticos vão cedendo a "comprometimentos econômicos que não conseguem de todo escapar, sendo compelidos a se conspurcarem com métodos corruptores". [124]

Assim sendo, o que se pretende com o combate ao abuso do poder econômico no processo eleitoral é a proteção a dois princípios essenciais da democracia: liberdade do sufrágio e igualdade na disputa eleitoral. [125]

Vale ressaltar que, a exemplo do abuso de poder político, a potencialidade da conduta de influir no resultado do pleito é requisito essencial para que seja configurado o abuso do poder econômico. Neste sentido é pacifica a jurisprudência do TSE, verbis:- "a configuração do abuso de poder econômico, é relativizada a ilicitude da conduta imputada, sendo suficiente a existência de benefício eleitoral e de potencialidade da conduta para influenciar o resultado do pleito. [126]

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Sobre o autor
Márcio Rodrigo Kaio Carvalho de Morais Pires

Advogado; Sócio do escritório Pires, Tazaki e Santos advogados associados. Procurador da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos - ECT; Pós-Graduado pela Fundação Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PIRES, Márcio Rodrigo Kaio Carvalho Morais. Manifestação do abuso do poder econômico nos pleitos eleitorais brasileiros. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. , 10 fev. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/91792. Acesso em: 22 dez. 2024.

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