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Contagem dos prazos prescricionais da lei penal para punições disciplinares de servidores públicos:

reflexão crítica sobre os conceitos de tipicidade e discricionariedade das faltas administrativas para os fins do art. 142, § 2º, da Lei nº 8.112/90

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Evolução quanto à idéia inicial do direito francês de desnecessidade de previsão legal das infrações disciplinares, senão apenas das sanções aplicáveis: perspectiva corrente no direito brasileiro e estrangeiro

Constata-se que a idéia antiga, do direito francês, de que as infrações disciplinares não careceriam de previsão legal (nem se lhes aplicaria a exigência de tipicidade como no direito penal), podendo ser punidas todas as condutas dos servidores que infrinjam deveres funcionais em sentido amplo (sem sequer a enunciação das infrações passíveis de penas mais graves, mas somente com a descrição do rol de penalidades cabíveis), tem cedido terreno para a obrigatoriedade de previsão legal, taxativa, das faltas sujeitas a penalidades de demissão, cassação de aposentadoria ou disponibilidade, em nome do princípio da legalidade.

José Bernejo Vera defende a tipicidade das faltas disciplinares:

"La reserva de Ley cubre principalmente la tipificación de las infacciones (penales y administrativas) y la determinación de los castigos correspondientes (penas o sanciones administrativas) (...) tiene que ver siempre una norma com rango de Ley la que contenga una verdadera tipificación de lãs infracciones y la que señale com tanta precisión como le sea possible las sanciones pertinentes y las reglas sobre responsabilidad (...) Establecer como elementos esenciales de la infracción administrativa los mismos de la infracción del Derecho Administrativo sancionador al Derecho Penal a que hemos aludido antes. Lo cierto es que el TS lo há proclamado reiteradamente. Por ej., su sentencia de 17 de abril de 1990, entre otras similares, define la infracción administrativa como ‘conducta antijurídica, típica y culpable’. Y la STS de 23 de febrero de 2000 (Ar. 7047) afirma: ‘Para que una determinada acción u omisión pueda ser objeto de sanción es necessario que sea típica, antijurídica y culpable; pressupuestos que quedan eliminados por la concurrencia de causas de justificación o excluyentes de la culpabilidad o antijuridicidad. (...) Para que um conducta sea infracción administrativa es necessário que, además de ser antijurídica, este concretamente prevista por uma norma como tal infracción y tenga atribuída una sanción administrativa. Las normas sancionadoras, como las penales, acotan una parte de las conductas antijurídicas para convertirlas em infracciones administrativas. Las normas establecen los ‘tipos’. Em este sentido se habla del requisito de la tipicidad de la conducta: sólo son infracciones las acciones u omisiones tipificadas como tales o, lo que expresa la misma Idea, las conductas ‘típicas’. La acción u omisión antijurídica pero no típica no constiuye infracción ni puede ser castigada, sin perjuicio de que si lê correspondan otras consecuencias." [10]

Sim, a propalada atipicidade das faltas disciplinares, se comparadas à previsão dos crimes no direito penal, deve ser compreendida como a possibilidade de existirem tipos disciplinares, relativamente abertos (caso dos preceptivos dos artigos 117, XV, 132, V e VI, todos da Lei federal 8.112/90), cujos elementos podem ser interpretados com relativa margem discricionária pelo administrador público, o qual poderá considerar que certa conduta constitui, ou não, por exemplo, ato de insubordinação grave. No direito penal, os tipos são, em regra, fechados, cujos elementos contêm palavras e ações cujo conteúdo é conhecido ou exaurido na doutrina penalista, não facultando margem para discricionariedade de tipificação, ressalvada a figura das normas penais em branco, completadas por atos normativos administrativos outros, como os crimes de posse de substância entorpecente (o conceito dessa substância é definido em lei ou regulamento administrativo) ou de omissão em notificar doença contagiosa (a relação de doenças de notificação compulsória é definida em regulamento administrativo).


Os limites da discricionariedade administrativa no Estado democrático de Direito: a consagração da tipicidade das faltas sujeitas a sanções mais graves no direito positivo federal brasileiro e na doutrina desde o Estatuto dos Servidores Públicos federais de 1939

O que não se pode abonar é o raciocínio de que o Estado poderia editar uma norma com um único dispositivo acerca da responsabilidade dos servidores públicos ("o servidor será punido, com as penas previstas nesta Lei, se violar dever ou proibição funcional"), sem que exista a relação dos deveres e proibições e a previsão das penas cabíveis para cada espécie de conduta, com o fim de se permitir à autoridade administrativa vasta e irrestrita liberdade para avaliar todo e qualquer fato e aplicar, conforme seu alvedrio e até arbítrio, a punição que achar melhor. Registre-se, por sinal, que, no direito brasileiro, os estatutos dos funcionários públicos federais de 1939 e 1952 já fixavam, taxativamente, as hipóteses de aplicabilidade de pena de demissão, tradição mantida, com rigor, no texto da atual Lei federal 8.112/90.

Henrique de Carvalho Simas, comentando o Estatuto dos servidores públicos federais de 1952, revogado pela Lei 8.112/90, mas mantido basicamente nas disposições do atual estatuto, explica:

"No propósito de impedir ou dificultar o abuso das autoridades, dando aos funcionários maior garantia contra possíveis desmandos e arbitrariedades, a Norma Jurídica, nas Nações democráticas e como corolário do princípio da legalidade, relaciona as faltas administrativas e suas penas disciplinares (...) o Estatuto federal de 1952, para evitar excessos na imposição da pena máxima, enumerou, no art. 207, de forma taxativa, os casos possíveis de sua aplicação (...) A demissão distingue-se por ser uma pena disciplinar que a lei prevê em caso de graves infrações especialmente configuradas. A demissão não se decreta a livre critério do administrador." [11]

Entendimento em contrário seria fugir ao princípio constitucional da legalidade, além de produzir o efeito de esvaziar o princípio da motivação da atuação administrativa, porquanto não somente os crimes comuns, mas até os atos da vida privada, além de qualquer ação ou omissão cometida por servidor público, poderiam ser livre e irrestritamente conceituados como falta disciplinar por autoridades da Administração Pública, as quais poderiam ter "carta branca" para impor quaisquer sanções em um Estado democrático de Direito, pior ainda porque poderiam invocar poderes estritamente discricionários, ilimitados, para tentar afastar o eventual controle jurisdicional sobre os atos administrativos, trazendo de volta à seara administrativa os tempos negros do arbítrio.

Criticando os abusos que a discricionariedade da Administração Pública em enquadrar como "procedimento irregular" diversas condutas do servidor, inclusive a ponto de nem os órgãos administrativos de consultoria jurídica oficiais nem sequer o Poder Judiciário definirem a densidade e o conteúdo normativo precisos dessa falta disciplinar, Olavo Tabajara Silveira não abona a amplitude conceitual que o DASP emprestava ao tipo de ilícito funcional em destaque, considerando compreendido na idéia normativa todo procedimento oposto à justiça, à lei ou contrário aos princípios de moral com que se deve mover o funcionário. O doutrinador pontua:

"Sua imprecisão implicava, segundo diziam, em gerar situação de permanente insegurança para o servidor público, em contradição, aliás, com a própria estabilidade garantida pela Carta Magna (...) O pecado maior que se tem verificado, com lamentável freqüência, é o do recurso à invocação do ‘procedimento irregular’, quando nada se consegue apurar em maltratados inquéritos administrativos (...) A figura disciplinar em causa não poderá, jamais, ser erigida em recurso para aproveitamento de processos natimortos ou mal orientados." [12]

Ora, um quadro dessa expressão colide com todos os avanços já consagrados na doutrina e na jurisprudência do direito administrativo no Brasil, haja vista a tendente linha jurisprudencial de controle de legalidade dos atos administrativos disciplinares sob a ótica dos princípios constitucionais da proporcionalidade, razoabilidade, individualização da pena (até da insignificância), motivação, com o efeito de o Poder Judiciário anular penalidades impostas de forma exagerada, incompatível com a menor gravidade das condutas, ou à revelia das circunstâncias atenuantes e demais parâmetros de dosimetria das sanções, quando inadequada a penalidade infligida diante dos motivos fáticos que a determinaram, sem falar na sindicância judicial da própria correção quanto à capitulação jurídica do fato e, especialmente, acerca da possibilidade efetiva de defesa quanto às acusações deduzidas.

Não se admite possa a autoridade administrativa punir indiscriminadamente os agentes públicos, nem menos ainda instituir faltas disciplinares por ato infralegal, nem que resida absoluta insegurança jurídica da parte dos servidores quanto ao conhecimento, decorrente de clara previsão legal, das condutas passíveis de apenação mais grave.

Daí a tendência do direito administrativo disciplinar atual de tipicidade das faltas disciplinares cominadas com penas mais graves, admitindo-se pequena parcela de discricionariedade no enquadramento de algumas condutas (como a demissão por "ato de insubordinação grave"), enquanto absoluta tipicidade quanto a outras, cujos elementos típicos são rigorosa e precisamente enunciados (como, por exemplo, abandono de cargo, inassiduidade habitual, prática de crime contra a Administração Pública, etc.).

A tendência da tipificação das faltas administrativas é apontada por Justino Vasconcelos:

"Não se deve exagerar crendo que o poder disciplinar seja, ou possa ser, livre de vínculos. Antes de tudo, é exigência de uma boa ordem jurídica se prevejam com amplitude as possíveis infrações disciplinares e se fixem, com precisão, as sanções correspondentes. Subsiste, assim, a tendência de estabelecer, com normas jurídicas, a noção de falta disciplinar e a natureza e entidade da pena, segundo o preceito ‘nullum crimen sine lege’, de graduar a pena, de agravá-la pela reincidência, de presumir a inocência do acusado, e de instituir procedimentos contenciosos para a aplicação das penas disciplinares. Tendência idêntica se verifica relativamente à individualização e previsão da falta disciplinar no texto legal, acomodando-a ao princípio que condiciona a configuração e a punibilidade do delito." [13]

Regis Fernandes de Oliveira aponta:

"No campo do Direito Administrativo prevalece o que se rotula de tipicidade, isto é, a infração administrativa há que se estar devidamente delimitada pela regra normativa. As exigências são as mesmas que aquelas para identificação dos crimes. A garantia da Administração para obstar qualquer ação infracional ou arbitrária do agente público, está em que deve ela pautar sua conduta pelos ditames legais." [14]

Pedro Guillermo Altamira anota que a incidência do princípio da tipicidade do direito penal deve incidir, no possível, na punição das faltas disciplinares, para prevenir arbitrariedade: "Em derecho penal rige el principio nulla poena sine lege que em lo posible debe hacerse extensivo a la ‘potestad’disciplinaria, dejando escaso margen a la discrecionalidad para evitar la arbitrariedad." [15]

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Responsabilidade administrativa e tipicidade de infrações disciplinares

Conseqüentemente, é descabido falar em responsabilidade administrativa e em demitir do serviço público, se o fato não é previsto, no estatuto dos servidores, como falta passível de demissão ou cassação de aposentadoria, seja um crime contra a Administração Pública, um crime comum ou mesmo um ilícito exclusivamente disciplinar expressamente tipificado, sob pena de se reconhecerem poderes ao administrador público de criar faltas disciplinares quando a lei não o fez.

Ainda, se não existe previsão legal do fato como causa de demissão dentre aquelas expressamente tipificadas no estatuto do funcionalismo, evidente que não será pertinente a incidência do disposto no art. 142, § 2º, da Lei 8112/90, que prevê a contagem dos prazos prescricionais fixados no Código ou na legislação Penal para responsabilização administrativa dos servidores pela prática de crime. Se a Administração Pública não pode demitir, cassar a aposentadoria ou a disponibilidade pela prática de crime comum, porque não tipificado na lei administrativa como infração disciplinar, resta prejudicada a contagem de marcos cronológicos da lei criminal para punição administrativa, uma vez que, se o fato não é punível, descabe falar de lapsos temporais para o exercício do direito de punir na esfera disciplinar.

O professor mexicano García-Trevijano Fos confirma que, no direito do México, é obrigatória a previsão em lei das infrações disciplinares, por força do princípio da legalidade:

"Ninguna infracción disciplinaria existe mientras no se encuentre prevista em um texto normativo. Ahora bien, es preciso que estén enumeradas taxativamente? Tecnicamente, así deberia de ser, y, por tanto (...) El respeto al principio de legalidad es aqui total y nuestra jurisprudência así lo há establecido (SS. de 7 de abril de 1953, 28 de junio de 1960, 9 de noviembre de 1965, 20 de diciembre de 1967, etcétera...). La sentencia de 3 de febrero de 1969 sienta la doctrina de que ‘solo son faltas los hechos previstos como tales, sin que baste que sean reprochables’, ya que la tipicidad juega (em este terreno) aunque sea atenuada, y exige siempre que estén previstas." [16]

A obrigatoriedade de previsão em lei das infrações disciplinares é corroborada por Eduardo Garcia de Enterría e Tomás-Ramón Fernández:

"Não há infração nem sanção administrativas possíveis sem lei que as determine, de uma maneira prévia; em segundo lugar, essa previsão legal, que tem aqui além disso o caráter próprio da legalidade administrativa que conhecemos, a atribuição à Administração de potestade para sancionar, tem que realizar-se justamente através de lei formal (...) o princípio de tipicidade é uma aplicação daquele de legalidade e exige, como sabemos, a delimitação concreta das condutas que são reprováveis a efeitos de sua sanção. A jurisprudência contenciosa recorda esta exigência nas sanções administrativas. Hoje esta particularidade está expressa no art. 25, 1, da Constituição; a lei há de ter determinado de maneira prévia que ‘ações ou omissões’ em concreto constituem infração administrativa, o que exclui cláusulas abertas ou indeterminadas." [17]

Carlos S. de Barros Júnior parece encampar essa idéia de obrigatória previsão estatutária dos crimes como faltas disciplinares, aludindo ao Estatuto dos Servidores federais de 1939 (art. 239, II), quando referia que seria aplicada a pena de demissão a bem do serviço publico ao funcionário que praticasse crime contra a boa ordem e administração pública, a fé pública e a Fazenda Nacional, ou previsto nas leis relativas à segurança e à defesa do Estado:

"Determinou a lei estatutária de 1939 que, nos casos de crimes contra a boa ordem e administração pública, e, outros, enunciados no art. 239. n. II., daquele Estatuto, se efetivasse a responsabilidade disciplinar. [18]

Não pode, destarte, suceder punição disciplinar por fato ao qual o estatuto dos servidores públicos não prevê sanção.

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Sobre o autor
Antonio Carlos Alencar Carvalho

Procurador do Distrito Federal. Especialista em Direito Público e Advocacia Pública pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Advogado em Brasília (DF).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARVALHO, Antonio Carlos Alencar. Contagem dos prazos prescricionais da lei penal para punições disciplinares de servidores públicos:: reflexão crítica sobre os conceitos de tipicidade e discricionariedade das faltas administrativas para os fins do art. 142, § 2º, da Lei nº 8.112/90. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1237, 20 nov. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9181. Acesso em: 23 dez. 2024.

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