Caráter exaustivo das hipóteses de demissão, cassação de aposentadoria ou disponibilidade na disciplina da Lei 8.112/90
Carlos S. de Barros Júnior cita Tito Prates da Fonseca para afiançar que as penas expulsivas não se podem aplicar sem determinação legal e que é taxativa a enumeração dos tipos das faltas passíveis de demissão no estatuto disciplinar, ao mesmo tempo em que lembra o escólio de Marcelo Caetano no sentido de que existe "a tendência de fixar na lei os casos em que taxativamente é lícito aplicá-la (...) em face do nosso direito positivo, só as faltas enunciadas, como suscetíveis de demissão, podem acarretar essa penalidade." [19] (destaque não original).
Themistocles Brandão Cavalcanti aduz: "A aplicação da pena disciplinar pressupõe uma infração prevista e punida pela lei e uma pena também consignada por uma disposição legal." [20] (destaque não original)
Com efeito, a Lei 8.112/90 previu, exaustivamente, no seu art. 132, as condutas sujeitas a pena de demissão. Faltas disciplinares ou comportamentos ali não previstos expressamente não podem ensejar a pena demissória.
A lição é encampada por Sebastião José Lessa, o qual cita Marcelo Caetano, Victor Nunes Leal e Hely Lopes Meirelles no sentido de que os motivos para a aplicação de pena demissória são vinculados, de maneira que os casos de demissão devem obedecer à regra da tipicidade, com a "prévia definição do comportamento e absoluta correspondência entre o tipo e a conduta." [21]
Os estudiosos do direito administrativo disciplinar [22] já encimam que a discricionariedade fica sobremodo restrita no caso de faltas passíveis de penas mais graves, que constituem atos vinculados, os quais somente podem ser aplicados se houver a presença, inequivocamente demonstrada nos autos do processo administrativo, dos motivos de fato previstos em lei para a imposição da demissão. Vigora a tipicidade das infrações mais graves.
É tendência dos estatutos disciplinares do funcionalismo público de relacionar, de forma exaustiva, os casos de condutas para as quais serão aplicadas a pena de demissão, como se vê no art. 132 e nos incisos IX a XVI do art. 117, todos da Lei 8.112/90.
Na verdade, a discricionariedade, em direito administrativo, existe nos termos da lei. Ato discricionário deve gozar de autorização legal, sob pena de se tornar ato arbitrário. Conseqüentemente, é na lei definidora do regime disciplinar dos servidores públicos que se alinharão os limites do poder discricionário do administrador público a quem outorgado o exercício do poder disciplinar.
Se o estatuto do funcionalismo, pois, estabelece faltas disciplinares cujo tipo admite discricionarismo para o enquadramento da conduta (por exemplo: será causa de demissão a prática de "procedimento irregular de natureza grave"), poderá ser aplicada punição correspondente por meio de classificação jurídica discricionária, observada lógica e aproximação estreita entre os fatos e a previsão normativa pertinente.
Se, todavia, o diploma legal capitula infrações disciplinares precisamente delineadas, não haverá margem a distorções no enquadramento jurídico, respeitando-se a idéia de tipicidade estrita.
De todo modo, o que precisa ficar assentado é a tendência dos estatutos disciplinares do funcionalismo em tipificar, exaustivamente, as condutas passíveis de demissão, cassação de aposentadoria ou disponibilidade, definindo as infrações disciplinares de forma o mais precisa possível, a fim de subtrair da autoridade administrativa margem a arbítrio no manejo abusivo do poder de punir servidores públicos.
As penalidades disciplinares gravíssimas, como as suso-aludidas, somente são aplicáveis para as condutas previstas exaustiva (numerus clausus) e expressamente na lei disciplinadora da conduta funcional, como foi seguido no caso da Lei 8.112/90 (somente admite demissão para os fatos ajustados aos tipos previstos no seu art. 132).
Até para a imposição de penas mais brandas como a advertência e a suspensão a Lei 8.112/90 definiu os deveres e proibições cuja violação implicaria as respectivas penalidades (vide arts. 129 e 130), ressalvando pequena parcela residual de competência discricionária para o enquadramento jurídico dos fatos, como no caso de imposição de advertência aplicável por violação de dever funcional (art. 129, L. 8.112/90).
Oswaldo Aranha Bandeira de Mello frisa que a pena de demissão "supõe falta grave, enunciada em lei" [23], no que é endossado por Mário Masagão: "O legislador entendeu de catalogar os casos de demissão, declarando nos Estatutos." [24] (destaques não originais).
Também doutrina Odete Medauar: "As condutas consideradas infrações devem estar legalmente previstas; é ilegal apenar servidores públicos por atos ou fatos que não estejam caracterizados, na lei, como infrações funcionais. Essa caracterização se efetua nos estatutos e leis orgânicas das categorias, principalmente." [25] (destaques não originais).
Nesse sentido é a orientação jurisprudencial do egrégio Tribunal Regional Federal da 1ª Região:
"A lei não concede, aliás nem poderia fazê-lo, uma autorização incondicionada aos administradores. A punição deve estar atrelada a um pressuposto fático, previamente catalogado como infração administrativa, para que ocorra a punição." [26]
Previsão de crimes comuns como faltas disciplinares no estatuto dos servidores públicos como pressuposto para contagem dos prazos prescricionais da lei penal para punição administrativa
Infere-se, de todo modo (ainda que se elastecesse a finalidade e sentido original do dispositivo do revogado parágrafo único do art. 213 da Lei 1.711/1952, reproduzido no § 2º do art. 142 da Lei 8.112/90, de aplicação restrita aos assim tipificados crimes contra a Administração Pública), que a Administração somente pode contar os prazos prescricionais pelas regras da lei penal quando o mesmo fato é tipificado, de forma autônoma, no estatuto disciplinar administrativo e no diploma criminal pertinente.
José Cretella Júnior anota que as leis administrativas municipais, estaduais e federais repetem delitos capitulados no Código Penal, na Lei das Contravenções, no Código Eleitoral, na Lei de Economia Popular, asseverando: "Os crimes não são punidos pela Administração pelo fato de constituírem crimes, mas por estarem definidos de maneira autônoma no Estatuto." [27]
Maria Sylvia Zanella Di Pietro, depois de comentar que a prática de crimes que não geram a demissão permite que o servidor continue a receber parte dos vencimentos durante o período de cumprimento de pena criminal, aduz: "O ilícito penal, só por si, não enseja punição disciplinar." [28]
Grife-se: um servidor público não pode ser demitido pelo fato de cometer um crime previsto no Código Penal, se o crime não é definido de forma autônoma como infração disciplinar no estatuto do funcionalismo, visto que, por força do princípio da legalidade, não podem ser aplicadas punições não previstas em lei (sobretudo no caso de penalidades disciplinares gravíssimas, como é o caso da sanção demissória) pela incursão em conduta que não seja expressamente tipificada no regime disciplinar legal dos servidores públicos dentre as causas taxativas de penalidade de expulsão do serviço público, como são expressamente previstos os crimes contra a Administração Pública, inclusive a corrupção e o abandono de cargo, ou no caso de crime comum de usura, tipificado na legislação penal (art. 4°, "a" e "b", da lei n. 1.521/51) e na Lei 8.112/90 (art. 117, XIV, c.c. art. 132, XIII).
Descabimento da contagem dos prazos prescricionais da lei penal para punição de infrações estritamente disciplinares
Por outro lado, os prazos da lei penal não podem ser estendidos, para fins de cômputo do prazo prescricional de punição das faltas administrativas puras. Se o servidor cometeu insubordinação grave em serviço (falta exclusivamente disciplinar) e peculato (crime que é também tipificado como falta disciplinar passível de demissão), os prazos prescricionais fixados no Código Penal somente incidirão quanto à apenação da prática de crime contra a Administração Pública de peculato, sendo de cinco anos o tempo máximo para demissão pela insubordinação grave.
Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça destacou que o prazo prescricional para punição de falta funcional criminosa de concussão é o da lei penal (que também é capitulada de forma autônoma, na Lei 8.112/90, como causa de demissão, enquanto crime contra a Administração Pública: art. 132, I), mas a falta exclusivamente disciplinar também cometida pelo acusado, prevista no art. 117, IX, da L. 8.112/90 ("valer-se do cargo para lograr proveito pessoal ou de outrem, em detrimento da dignidade da função pública"), se sujeita ao prazo extintivo de cinco anos, capitulado para as infrações administrativas passíveis de demissão (art. 142, I, L. 8.112/90), e não aos ditames do Código Penal. [29]
Ainda sedimentou o Superior Tribunal de Justiça:
"A falta administrativa, quando também prevista na lei penal como crime, prescreverá juntamente, no mesmo prazo, tanto para o Direito Disciplinar quanto para o Direito Penal (...) Entretanto admitindo a existência de falta administrativa residual (Sum. n. 18-STF), na espécie a do art. 117, IX, da Lei n. 8.112/90, deve a prescrição regular-se pelo art. 142 desse diploma legal, que prevê o prazo de cinco anos, contados a partir da ocorrência do fato, em face da extrema gravidade da pena de demissão." [30]
Em conseqüência, apesar de a Administração Pública poder punir as faltas exclusivamente disciplinares cometidas por servidor público, como é o caso de improbidade administrativa (art. 132, IV, L. 8.112/90) e se valer do cargo para lograr proveito em detrimento da dignidade da função pública (art. 117, IX, c.c. art. 132, XIII, L. 8.112/90), elas são consideradas faltas residuais, autônomas, diante de crimes comuns, não capitulados autonomamente como causa de demissão no estatuto disciplinar do funcionalismo, de maneira que o prazo prescricional a ser considerado, para fins de contagem da prescrição do direito de punir o servidor público na esfera administrativa, será o do estatuto disciplinar – no caso da Lei 8.112/90: 5 anos (art. 142, I), tendo em vista que as faltas disciplinares que não são tipificadas especificamente como crimes na lei penal devem ser apenadas nos prazos legais do regime disciplinar do funcionalismo, não incidindo, em absoluto aqueles do Código Penal.
Portanto, indevida a invocação do prazo previsto na lei penal para punição de faltas exclusivamente administrativas. No que concerne à prática de crimes comuns, portanto, se não previstos no estatuto disciplinar como causa de demissão, não podem ser motivo de direito para aplicar a penalidade demissória, por reflexo do princípio da legalidade e do fato de que a pena expulsória do serviço público depende de motivos vinculados e, por óbvio, da previsão em lei da conduta punida (no caso da Lei 8.112/90, no seu art. 132), pressuposto para se falar em responsabilidade administrativa. Do contrário, estar-se-ia admitindo que a Administração Pública usurpasse a prerrogativa do Poder Judiciário em impor a responsabilidade penal aos servidores públicos criminosos, na via do processo-crime.
Desclassificação dos crimes comuns para faltas exclusivamente disciplinares como meio de viabilizar a punição administrativa, mas segundo os prazos ordinários do estatuto do funcionalismo
Insista-se. Se o delito cometido, previsto no Código Penal ou lei criminal especial, não é especificamente tipificado na lei administrativa, então se cuida de crime comum, o qual, para ser causa de punição disciplinar e para gerar a contagem prescricional respectiva pelos prazos da legislação criminal, dependeria de ser arrolado dentre as causas de demissão catalogadas no estatuto administrativo.
Por exemplo, o servidor que incorrer em prática de estupro de colega de trabalho na repartição, poderá ser demitido pelo enquadramento do fato como conduta escandalosa na repartição ou ofensa física em serviço, tipos disciplinares puros, mas o prazo para punição da falta será de cinco anos para demissão, e não os do Código Penal, na medida em que o delito criminal de estrupro não é previsto, expressamente, como causa de demissão na Lei 8.112/90. Pode-se enquadrar a conduta (crime comum), outrossim, como improbidade administrativa, só que o prazo para punição do comportamento será o do art. 142, I, da Lei 8.112/90: cinco anos. O motivo de direito da penalidade demissória deverá ser um fato dentre os arrolados no art. 132, da L. 8.112/90, sob pena de ilegalidade.
A demissão pela prática de crimes comuns (aqueles não previstos, de forma autônoma, no estatuto dos servidores públicos federais como infração disciplinar) afigura-se ilegal se invocado o fato criminal como exclusivo motivo determinante da pena administrativa, assim como será descabido, no caso, contar o prazo prescricional pelos parâmetros temporais da legislação criminal, que são impertinentes no caso de crimes comuns não tipificados autonomamente no estatuto disciplinar do funcionalismo.
Ora, o dispositivo do art. 142, § 2º, da Lei 8.112/90, trata do prazo para a Administração Pública punir crimes comuns, expressamente classificados como faltas disciplinares, por assim estarem definidos, de forma autônoma, na lei administrativa, hipótese em que serão considerados os marcos cronológicos da lei penal para o exercício do poder disciplinar administrativo.
Interpretação restritiva do art. 142, § 2º, da Lei 8.112/90 na atual disciplina do direito positivo federal
No caso da atual redação da Lei 8.112/90, somente serão computados os parâmetros da legislação criminal no caso de crimes contra a Administração Pública (art. 312 a 326, Código Penal, e outros delitos assim classificados em leis especiais), por serem os únicos tipificados como faltas disciplinares no diploma legislativo dos servidores da União. Nada obsta, todavia, que outros crimes, comuns, possam ser tipificados, no estatuto, como faltas disciplinares determinantes da perda do cargo público mediante demissão.
No caso de crimes comuns, que não são tipificados, de forma autônoma, no estatuto do funcionalismo, especificamente como infrações disciplinares passíveis de demissão ou outra penalidade administrativa, se não houver o enquadramento da conduta em outra falta estritamente disciplinar (improbidade administrativa, etc. – caso em que o prazo prescricional será os do art. 142, I a III, da Lei 8.112/90, não os do Código Penal), não cabe a punição demissória, sob pena de a Administração Pública impor pena por fato não previsto em lei.
Calha a advertência de Hely Lopes Meirelles: "O que a Administração não pode é aplicar punições arbitrárias, isto é, que não estejam legalmente previstas." [31]
Palhares Moreira Reis escreve que as faltas disciplinares devem estar previstas na lei, juntamente com as sanções cabíveis, sob pena de não poderem ser aplicadas, porquanto o doutrinador leciona que a Lei nº 8.112/1990 exige a tipicidade das faltas mais graves, passíveis de demissão, relacionando-as, de forma taxativa, no art. 132, únicas hipóteses em que o autor admite seja imposta a pena demissória: "Como se trata, agora, de pena mais grave, entendeu o legislador ser pudente e elencar as hipóteses em que a penalidade expulsiva da demissão pode ser aplicada." [32]
No mesmo sentido é a cátedra do administrativista Edmir Netto de Araújo, o qual também pondera que, quanto aos crimes comuns, se não descritos de forma autônoma como falta disciplinar na lei administrativa, não poderão render ensejo a punições disciplinares nem a contagem de prazo prescricional pelos parâmetros temporais da lei penal, visto que não passarão de ilícitos exclusivamente penais, a serem apurados e processados pelo Juízo criminal competente, ressalvando a possibilidade de a autoridade administrativa enquadrar o fato em algum dispositivo que veicula infrações administrativas puras, hipótese em que os prazos prescricionais serão os ordinários do estatuto, não os da lei penal. [33]