Impacto do foro de prerrogativa de função dentro do processo penal brasileiro

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15/07/2021 às 11:04

Resumo:

Resumo do Impacto do Foro de Prerrogativa de Função


  • O foro de prerrogativa de função, também conhecido como foro privilegiado, é um mecanismo jurídico que atribui a certas autoridades o direito de serem julgadas por tribunais superiores, o que, na prática, pode resultar em morosidade e impunidade devido à sobrecarga dessas cortes.

  • Historicamente, o foro de prerrogativa de função foi estabelecido para proteger a função pública e não a pessoa, contudo, existem críticas quanto a sua aplicação prática, que muitas vezes protege o indivíduo e não apenas o cargo, levando a questionamentos sobre sua eficácia e justiça.

  • A pesquisa sugere que o foro de prerrogativa de função necessita de reformas para garantir que não sirva como um meio de impunidade para crimes cometidos por autoridades, propondo que medidas sejam tomadas para agilizar os processos e limitar o foro à proteção da função pública, evitando abusos.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

4. OBJETIVO DO FORO DE PRERROGATIVA DE FUNÇÃO NO PROCESSO PENAL

Para compreender qual é o objetivo do foro por prerrogativa de função, é essencial definir o conceito do instituto. É imprescindível entender o que o antecede; por isso, faz-se necessário um breve comentário sobre jurisdição e competência, a fim de melhor compreender o funcionamento desse mecanismo. Pacelli (2017) menciona: “A jurisdição penal é una, monopolizada pelo Estado, que tem em seu dever, a função de aplicar o direito penal aos fatos violadores de bens, direitos considerados mais importantes pela sociedade”.

A jurisdição penal, em síntese, é a aplicação do direito ao caso concreto por meio de pessoa investida de poderes pelo Estado (AVENA, 2017). Embora a jurisdição seja una, o sistema processual penal divide-a em competências.

Entende-se a competência como a medida e o limite da jurisdição. A doutrina a subdivide em diversas espécies, como, por exemplo, em razão de sua função, matéria etc. A competência relacionada ao foro por prerrogativa de função é conhecida como ratione functionis, pois guarda relação direta com a função exercida por determinadas autoridades (BRASILEIRO, 2020).

Nessa linha, surge a competência para julgar determinadas autoridades (como os parlamentares) que venham a cometer crimes no exercício de suas funções, previsão contida no próprio texto constitucional em razão dos cargos por elas ocupados. Trata-se do que a doutrina denomina competência originária dos tribunais. Esse surgimento de competência é conhecido como foro por prerrogativa de função, equivocadamente popularizado como “foro privilegiado”. Etimologicamente, “Prerrogativa” significa “Vantagens ou privilégios inerentes a certas dignidades” (DICIONARIO PRIBERAM DA LINGUA PORTUGUESA, 2011). Fecury (2020) conceitua o foro por prerrogativa de função “como competência original dos tribunais para julgar determinadas pessoas”.

Superada a conceituação do instituto, impõe-se a pergunta central: qual é o objetivo do foro por prerrogativa de função no processo penal? Seria ele um privilégio ou uma proteção ao cargo? Nas palavras de Martins (2019): “O privilégio diz respeito à pessoa, é algo personalíssimo e renunciável. Já a prerrogativa diz respeito à função exercida, sendo irrenunciável”. À luz desse conceito, não é correto afirmar que o foro por prerrogativa de função constitua um privilégio, pois não é possível renunciar a ele.

Menciona Fecury (2020):

Etimologicamente, privilégio significa “vantagem que se concede a alguém com exclusão de outrem e contra o direito comum, permissão especial, prerrogativa, imunidade.” O privilégio é caracterizado pela concessão de determinada(s) vantagem (ns) em favor de certas pessoas definidas em razão de sua classe social, familiar, condição econômica, entre outras de cunho subjetivo.

Esses conceitos demonstram que, para caracterizar um privilégio, é fundamental a existência de uma vantagem concedida de forma a possibilitar benefício pessoal à autoridade em razão de sua função. Por essa razão, muitos doutrinadores preferem utilizar a expressão foro por prerrogativa de função em vez de foro privilegiado. As ideias apresentadas sustentam que o foro por prerrogativa não constitui privilégio, pois sua proteção destina-se ao cargo e não à pessoa (FECURY, 2020).

Se o instituto busca proteger o cargo e não a pessoa, surge, entretanto, um questionamento: por que o art. 53, § 1º, da Constituição da República estabelece que os deputados e senadores serão submetidos a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal desde a expedição do diploma? (BRASIL, 1988). Nesse momento, a autoridade ainda não iniciou o exercício de seu mandato, não estando formalmente revestida de seu cargo. A proteção, nesse caso, recai diretamente sobre a pessoa que já se encontra blindada pelo foro por prerrogativa de função.

Segundo Marchionatti (2020), essa previsão visa proteger o futuro parlamentar contra eventuais arbitrariedades que poderiam impedir sua posse, como uma prisão indevida. Contudo, com a devida vênia ao autor, nesse aspecto a proteção dirige-se à pessoa e não ao cargo, o que gera questionamentos acerca da natureza dessa salvaguarda.

Para aprofundar essa análise, Fecury (2020) observa que, quanto à inexistência de recurso ordinário contra decisões proferidas em ações penais originárias nos tribunais, o instituto pode até desfavorecer o réu. Essa impossibilidade decorre de procedimento específico previsto nos tribunais, que não admite reanálise ordinária. Nesse ponto, afasta-se a ideia de privilégio, já que não há vantagem processual adicional para o acusado.

O foro por prerrogativa de função é conferido a partir de critérios objetivos, e não subjetivos, o que reforça seu caráter de prerrogativa funcional e afasta, em tese, sua configuração como privilégio direto (FECURY, 2020). Todavia, nada impede que ocorra um privilégio indireto: embora fundado em critério objetivo, a aplicação prática do instituto pode transformá-lo em privilégio, diante da morosidade processual e da baixa taxa de resolução de processos, como demonstrado pelos dados da Revista Congresso em Foco.

Assim, em sua formulação teórica, o foro por prerrogativa de função configura-se como prerrogativa, não privilégio. Contudo, na prática, o instituto acaba por gerar efeitos que se aproximam de um privilégio. A doutrina defende que sua finalidade é proteger o cargo, mas a literalidade do art. 53, § 1º, da Constituição da República — ao estabelecer que deputados e senadores serão julgados pelo STF desde a expedição do diploma — evidencia uma proteção dirigida à pessoa, não ao cargo (BRASIL, 1988).

Superada a conceituação do instituto, a análise volta-se agora para sua ineficácia no âmbito do processo penal.


5. CAUSAS DE INEFICÁCIA DO INSTITUTO DENTRO DO PROCESSO PENAL

Com grande acuidade, Marchionatti (2020) afirma: “O foro privilegiado é uma vantagem injustificada, tendo em vista que os tribunais não são preparados para instruir processos”.

Rogério Sanches, em seu Manual de Direito Penal, resume o julgamento da AP 937 da seguinte forma:

No caso apreciado pelo STF (AP 937), o agente foi acusado de compra de votos durante a campanha para as eleições municipais de 2008. Com sua eleição para o cargo de prefeito, o processo foi remetido ao Tribunal Regional Eleitoral. Findo o mandato, houve a remessa para a primeira instância da Justiça Eleitoral. Em 2015, o réu tomou posse como Deputado Federal, o que levou o processo ao STF, em 2016. Afastou-se do cargo de deputado e o reassumiu antes de finalmente renunciar ao mandato parlamentar para assumir novamente o cargo de prefeito (SANCHES, 2020, p. 169).

Visualiza-se, nesse caso, a ocorrência de um privilégio indireto. A sucessão de cargos ocupados pelo réu permitiu que o processo permanecesse sem julgamento por longo lapso temporal, gerando um cenário de impunidade. Embora, em sua essência, o foro por prerrogativa de função se destine ao cargo e não à pessoa (MARTINS, 2019), situações excepcionais, como a da AP 937, evidenciam a necessidade de repensar o instituto.

No julgamento da referida ação, o Supremo Tribunal Federal decidiu restringir a prerrogativa de foro aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e em razão dele (SANCHES, 2020, p. 168). Essa limitação, contudo, não resolveu o problema da morosidade processual: inúmeros processos continuam sem resolução em tempo razoável, e a condenação de parlamentares ainda ultrapassa os limites de uma prestação jurisdicional célere e efetiva.

Marchionatti (2020) acrescenta:

“A afirmação de que o foro protege a administração, não o detentor do cargo, não tem o melhor embasamento. O processo penal pode ser usado como arma política. Mas, atualmente, não há indicativos de que isso vá ocorrer mais em primeira instância do que perante os Tribunais”.

Os dados da Revista Congresso em Foco corroboram a gravidade do problema, ao indicar que os tribunais não têm se mostrado efetivos na prestação jurisdicional quando se trata de julgar autoridades diretamente nas instâncias superiores (Revista Congresso em Foco, 2015). Essa constatação reforça o que foi discutido no próprio julgamento da AP 937.

O Ministro Luís Roberto Barroso, relator do caso, enfatizou:

“O Supremo Tribunal Federal, por não ser vocacionado para esse papel, não o desempenha de maneira desejavelmente satisfatória” (BARROSO, 2018).

Marchionatti (2020) sintetiza o problema ao afirmar: “Há indicativos de que o processo perante os tribunais demora mais do que o processo em primeira instância”. A Revista Congresso em Foco confirma esse diagnóstico: desde 1988, o Supremo Tribunal Federal investigou cerca de 500 parlamentares, mas condenou apenas 16 (Revista Congresso em Foco, 2015).

Casos concretos ilustram essa morosidade. O ex-governador e deputado federal Paulo Maluf foi alvo de 84 inquéritos ou processos desde o ano 2000 sem condenações. Em 2013, tornou-se réu por supostos prejuízos de R$ 1 bilhão à Prefeitura de São Paulo, mas o processo não foi concluído. Maluf, beneficiado pelo foro por prerrogativa, só foi condenado em 2018, em outro processo por falsidade ideológica relacionada a fins eleitorais (PESSOA, 2017; ESTADÃO, 2019).

Outro exemplo é o caso de Renan Calheiros. À época presidente do Senado Federal, foi denunciado pela Procuradoria-Geral da República. A decisão do STF ocorreu apenas nove anos após o início das investigações e três anos depois da denúncia, revelando novamente a demora excessiva (EXAME, 2016).

Esses casos demonstram que, embora teoricamente perfeito, o instituto do foro por prerrogativa de função, na prática, gera morosidade excessiva, afastando-se de sua pretensão constitucional. Tal lentidão, somada a fatores como prescrição, favorece a impunidade e pode, indiretamente, incentivar a corrupção, uma vez que os processos levam anos para se iniciar e muitas vezes sequer chegam a termo.

A distorção não se restringe ao STF. O Superior Tribunal de Justiça, por exemplo, manteve a prerrogativa de foro para um desembargador acusado de crime de lesão corporal contra sua mãe e irmã — fato sem qualquer relação com suas funções jurisdicionais (Ação Penal nº 878) (MIGALHAS, 2018). Nesse caso, a aplicação do instituto contraria sua fundamentação teórica, pois não se trata de proteção ao cargo. Como destacou a reportagem: “O desembargador denunciado integra o mesmo Tribunal no qual o juiz, se competente, iria julgá-lo”. Tal circunstância levanta sérias dúvidas sobre a imparcialidade do julgamento.

Quando se pensa em processos de parlamentares a serem julgados pelo Supremo Tribunal Federal, delineia-se um cenário típico de morosidade, como demonstram os casos já expostos e a pesquisa da Revista Congresso em Foco. O foro por prerrogativa, nesse contexto, abre uma série de consequências processuais previsíveis. O primeiro efeito é a prescrição, que conduz à ineficácia da prestação jurisdicional e, por consequência, à impunidade em termos práticos.

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No julgamento da Questão de Ordem na AP 937, destacou o Ministro Luís Roberto Barroso:

“Só no Supremo Tribunal Federal são processados e julgados, em tese, mais de 800 agentes, que incluem o Presidente da República, o Vice-Presidente, 513 deputados federais, 81 senadores, os atuais 31 ministros de Estado e, ainda, os 3 comandantes militares, os 90 ministros de tribunais superiores, 9 membros do Tribunal de Contas da União e 138 chefes de missão diplomática de caráter permanente” (BARROSO, 2018).

Essa realidade demonstra que o Supremo Tribunal Federal e outros tribunais com competência originária recebem número excessivo de processos, o que naturalmente provoca morosidade e compromete a prestação jurisdicional. A demora no julgamento gera impacto direto nas resoluções dos casos, deixando processos sem resposta por longos períodos e, em alguns casos, permitindo a ocorrência da prescrição. O princípio constitucional da razoável duração do processo transforma-se, assim, em mera utopia, evidenciando a ineficácia prática do instituto.

Como explica Marchionatti (2020):

“Os processos penais de competência originária de Tribunais preveem um procedimento penal especial, diverso dos procedimentos penais comuns e dos demais especiais, regulamentado pela Lei nº 8.038/90 e, subsidiariamente, pelos próprios Regimentos Internos dos Tribunais que exercem essa competência penal”.

Esses procedimentos específicos, aliados à sobrecarga dos tribunais, tornam inviável uma resposta jurisdicional célere. O resultado é uma cadeia de consequências negativas: prescrição, impunidade e, de forma indireta, estímulo à corrupção. A falha na aplicação do direito projeta para a sociedade a ideia de uma “impunidade jurídica”, perceptível não apenas em teoria, mas comprovada na prática processual brasileira. Trata-se de um problema que ultrapassa o campo jurídico, alcançando também os cofres públicos, diante do prolongamento e da ineficácia dos processos penais envolvendo autoridades com foro de prerrogativa de função.


6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do exposto, percebe-se que o foro por prerrogativa de função atravessou diversos momentos históricos, sempre acompanhado de interpretações e questionamentos. O instituto está presente desde a Constituição de 1824 até a atual Constituição de 1988, e em cada nova mudança constitucional manteve-se com alterações pontuais. Um aspecto peculiar é a ampliação progressiva das autoridades beneficiadas, o que, no cenário atual, torna a efetividade dos julgamentos mais complexa.

O nome do instituto gerou intensas discussões: foro privilegiado ou foro por prerrogativa de função? Muitos doutrinadores defendem que se trata de uma proteção ao cargo, e não à pessoa. Entretanto, o art. 53, § 1º, da Constituição dispõe que deputados e senadores são submetidos ao julgamento perante o STF desde a expedição do diploma. Nesse momento, o agente ainda não tomou posse, mas já goza da proteção constitucional, o que gera dúvidas sobre a quem, de fato, recai essa salvaguarda.

A doutrina aponta que o termo correto é foro por prerrogativa de função, pois não existe privilégio direto. Contudo, admite-se a possibilidade de um privilégio indireto. Em sua formulação teórica, o instituto não é um privilégio; porém, na prática, transforma-se em tal, visto que os processos levam anos para se iniciar e, muitas vezes, não resultam em condenação, ensejando a prescrição. Esse fato revela que os tribunais não foram estruturados para julgar autoridades com celeridade e efetividade.

A consequência direta é a morosidade processual, frequentemente acompanhada de impunidade. Embora centenas de parlamentares tenham sido processados no STF, poucos foram condenados, e muitos aguardam julgamento há anos. Tais dados evidenciam a fragilidade estrutural dos tribunais para dar respostas adequadas.

Assim, existe uma lacuna entre a pretensão constitucional e a aplicação prática do instituto. Se na teoria o foro por prerrogativa cumpre uma função legítima, na prática revela-se ineficaz, gerando prescrição, impunidade e até incentivo indireto à corrupção, pois autoridades podem sentir-se protegidas contra sanções.

Conclui-se que o impacto do foro por prerrogativa ultrapassa o campo jurídico e alcança a esfera social e econômica, afetando inclusive os cofres públicos. Por isso, é essencial limitar o instituto, como já reconheceu o Supremo Tribunal Federal, e repensar suas bases.

O foro não pode ser sinônimo de impunidade. Trata-se de uma proteção à função, destinada a garantir que o agente político desempenhe suas atribuições em prol da sociedade. Jamais deve ser utilizado como escudo para desvios de conduta ou práticas criminosas. À luz dos valores democráticos que regem a República, o instituto tem relevância e deve ser mantido, mas necessita de ajustes.

O problema não reside em sua concepção teórica, mas em sua efetividade prática. É indispensável reavaliar a estrutura dos tribunais, sobrecarregados por inúmeros processos, e considerar a adoção de métodos alternativos que assegurem a razoável duração do processo. Entre as propostas, destaca-se a possibilidade de criação de uma justiça especializada para autoridades com prerrogativa de foro, o que evitaria a sobrecarga dos tribunais superiores, reduziria a morosidade e garantiria respostas jurisdicionais mais céleres e efetivas.

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Sobre o autor
Agamenildo Furtado Dias

Graduando do curso de Direito do Centro universitário Doutor Leão Sampaio / Unileão.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Trabalho elaborado sob orientação do Professor Francisco Thiago Mendes, do Centro universitário Doutor Leão Sampaio/Mestrando em Direito da Empresa e dos Negócios – UNISINOS, Especialista em Direito Penal e Criminologia – URCA.

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