Como se sabe, o debate acerca da possibilidade de o Ministério Público investigar é antigo e remonta os anos de 2013 a 2015, período da PEC 37 e da apreciação do RE 593.727[1] pelo Supremo Tribunal Federal. Após desgastantes debates institucionais, foi chancelada essa possibilidade, ficando reconhecido que no sistema de persecução penal nacional, embora o MP tenha a atribuição precípua de órgão acusatório, também pode exercer, em determinados casos, a própria atividade investigativa, função primária da Polícia Judiciária.
Todavia, mesmo antes da chancela final dada pelo STF no julgamento do citado recurso extraordinário, o MP já desenvolvia investigações, em especial pelos chamados Grupos de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado – GAECO. O primeiro GAECO nasceu em 1995 no Estado de São Paulo e depois foi replicado em diversos outros estados da federação. De fato, em busca de criar uma referência e identidade nacional entre os órgãos do Ministério Público de combate ao crime organizado, a terminologia GAECO passou a ser uniformizada a partir de 2010, atendendo deliberação realizada na 23ª Reunião do Grupo Nacional de Combate às Organizações Criminosas (GNCOC) e aprovada pelo Conselho Nacional de Procuradores Gerais de Justiça (CNPG).
Entende-se nesse contexto, que o reconhecimento da capacidade investigativa do MP em determinados casos e o próprio avanço do modelo GAECO representa um aperfeiçoamento do Sistema de Justiça com inegáveis resultados positivos na segurança pública, em especial na repressão aos crimes de colarinho branco. Afinal, por sua intrínseca subordinação administrativa ao Poder Político, a Polícia Judiciária sempre encontrou intransponíveis entraves na investigação de algumas espécies de crimes. E isso acontece não só na esfera estadual como também na federal.
Uma análise das operações da Polícia Federal revela que suas investigações sobre o Poder Político conseguem manter certa blindagem e são exitosas quando o alvo se encontra nas esferas municipal ou estadual. Todavia, caso os investigados sejam também da esfera federal e os atos apurados afetos à atuação do Executivo, observa-se o mesmo nível de ruído com que as Polícia Civis estaduais lidam.
É verdade que há exceções onde Delegados romperam esse paradigma e conseguiram conduzir suas investigações até o topo da pirâmide. Contudo, sempre experimentando um alto desgaste pessoal e não raras vezes suportando sozinhos todo tipo de retaliação. Nesse sentido, no atual modelo, percebe-se que a estrutura policial não está organicamente construída com as prerrogativas necessárias ao combate da corrupção política. Com efeito, quando o sucesso de uma investigação depende do heroísmo, sacrifício pessoal e familiar do Policial, claramente fica demonstrado que o sistema foi originariamente configurado para não funcionar contra determinadas pessoas. Justamente nesse contexto específico que se entende a utilidade-necessidade do modelo GAECO e do poder investigativo cirúrgico do Ministério Público.
Se por um lado, portanto, o poder investigativo do Ministério Público se mostra imprescindível ao sistema de justiça; por outro, considerando sua incipiência, percebe-se certas distorções que precisam ser consertadas sob pena de deslegitimação de todo o modelo. Para se compreender essas distorções, primeiramente, há que se perceber as nuances características do processo investigatório.
A investigação criminal, nesse contexto, significa a coleta de elementos de informação com vistas a testar a hipótese criminal. Essa hipótese criminal, por sua vez, é a delimitação dos fatos a serem apurados. Essa delimitação deve ser bem estabelecida na portaria inaugural, evitando-se as investigações kafkanianas. Nessas premissas, é nesse processo de coleta de informações e na decorrente execução de atos de polícia judiciária que se encontram os desvirtuamentos enxergados no atual modelo GAECO.
O primeiro problema surge quando se percebe que o reconhecimento do poder investigatório do MP não lhe autoriza a inobservância de todas as demais normas que regulamentam o processo penal. Vale dizer: capacidade investigativa significa que o MP pode espontânea e originariamente instaurar procedimentos apuratórios criminais, bem como requisitar/buscar informações diretamente sem intermediação da Polícia Judiciária ou necessidade de instauração de inquérito policial. Entretanto, não significa que o Ministério Público possa usar servidores em desvio de função para desenvolver esses investigativos nas ruas, tampouco pode executar propria manu atos executivos de Polícia como por exemplo o cumprimento de mandados judiciais.
Nessa perspectiva, o poder de apuração do MP se limita à “investigação de gabinete”, podendo desenvolver coleta de informações que não demande desvio de função, em especial, diligências de campo onde o treinamento policial é conditio sine qua non. No mesmo raciocínio, para o cumprimento de medidas judiciais coercitivas/invasivas como prisões e buscas, deve impreterivelmente solicitar apoio operacional da Polícia Civil.
Contudo, o que se tem observado na prática é um ilegal avanço sobre esses atos típicos de Polícia Judiciária. A partir de uma má compreensão extensiva da Inherent Powers Theory, acredita-se que do reconhecimento do poder investigativo derivaria uma ilimitada autorização para efetivação propria manu de qualquer ato necessário para essa investigação, o que não é verdade. No caso do poder investigativo do MP, o que se reconhece como poder implícito é a prerrogativa de requisitar força policial para execução daqueles atos que demandem conhecimento específico e atribuição legal.
De fato, o avanço sobre os atos típicos de polícia tem sido tão escancarados que passam até mesmo uma ideia de pretensão provocativa. A perda do acanhamento tem chegado ao ponto do uso de milícias fardadas com uniformes e viaturas ostentando o brasão do MP, claramente emulando as forças tradicionais de Polícia, para cumprir atos privativos de Polícia Judiciária. Ocorre que essa emulação acontece não só em absoluto desvio de função, mas principalmente em absoluto descompasso com a doutrina policial.
Perceba que a “força policial” dos GAECOs geralmente é composta por servidores cedidos de outras corporações. Geralmente esses servidores são oriundos das PMs, ou seja, servidores que não poderiam cumprir esses atos nem mesmo em suas corporações de origem, muito menos, portanto, quando cedidos a outro órgão. Nos termos do ministro Ayres Brito, trata-se do desvio de função triplo carpado.
Quanto ao uso de servidores em desvio de função, rememore-se a Operação Satiagraha[2] da PF que acabou anulada pelo Superior Tribunal de Justiça - STJ pelo uso de servidores da ABIN em desvio de função para atos investigatórios da Polícia Judiciária.
Além do desvio de função de servidores cedidos, também se observa a instrumentalização de cargos administrativos dentro da própria estrutura do MP, como os “agentes de segurança patrimonial” que circunstancialmente são alçados à função policial sem que tenham passado regularmente por curso de formação específico.
O que se percebe na atuação dos GAECOs, nesse sentido, é uma tentativa de estabelecimento de uma “força policial ministerial” autônoma com redundante compra de armas e viaturas, alijando totalmente a Polícia Judiciária de suas atribuições constitucionais. A criação dessas “forças policiais sui generis” viola a mais comezinha noção de eficiência administrativa e representa uma ruptura do desenho constitucional de atribuições dos órgãos afetos à Segurança Pública.
Essas desconfigurações constitucionais são um fenômeno tipicamente tupiniquim. Aparentemente, no Brasil, os arroubos de Poder e as pretensões individuais ainda ecoam mais alto do que o interesse coletivo. A opção pela isolacionismo egocêntrico no lugar da construção dialógica parece fazer parte da consciência coletiva latino-americana. Comparando com os modelos norte americanos e europeus de atuação do Ministério Público, essa excentricidade brasileira torna-se ainda mais aguda.
Avançando nas distorções observadas, percebe-se ainda que em algumas operações desenvolvidas pelos GAECOs até há solicitação de apoio operacional da Polícia Judiciária. Contudo, nessas “operações conjuntas” observa-se uma série de práticas questionáveis, entre elas, a disfuncional composição de “equipes híbridas”. Isto é, equipes compostas por Policiais, “agentes do MP”, Delegado e Promotor. Essas equipes compostas por água e óleo acabam sendo alocadas para cumprir um mesmo mandado judicial. Por óbvio, essa atípica composição de equipe gera toda sorte de anomalia tática e mesmo jurídica, podendo se destacar alguns questionamentos:
a) Numa equipe composta por um Delegado e um Promotor, quem realmente estaria no comando tático e jurídico? É possível uma equipe com duas coordenações simultâneas?
b) Como Policiais podem operar em conjunto com membros do Ministério Público se ambos estão desalinhados quanto aos procedimentos operacionais padrão?
c) Como um Delegado pode chefiar membros do Ministério Público armados, uma vez que não há subordinação hierárquica entre eles? No mesmo giro, pela inexistência de hierarquia administrativa, como poderia o Promotor dar ordens aos Policiais?
d) Como um Promotor pode cumprir um mandado judicial de prisão ou buscas sem possuir qualquer treinamento técnico policial?
e) O que juridicamente significa o “acompanhamento pessoal” do Promotor durante o cumprimento de determinado mandado? O Promotor acompanha a diligência na qualidade de testemunha do povo ou na qualidade de Autoridade Pública? Quem deve assinar o auto circunstanciado de busca e apreensão?
f) Qual legitimidade um “agente de segurança do MP” em desvio de função possui para efetivar atos como algemamento, disparo de arma de fogo ou mesmo adentrar a casa de cidadãos para o cumprimento de mandados de busca?
h) O Promotor que solicita armamento longo para participar do cumprimento dos mandados deve ser atendido ou não?
i) A Autoridade Policial que se negue a dar apoio diante dessas irregularidades comete alguma infração disciplinar?
Essas indagações apontam apenas algumas das inúmeras irregularidades que o atual amador estado de coisas tem gerado. De fato, não tarda, investigações de excelência vão acabar anuladas por conta das contaminações decorrentes dos procedimentos nas coletas dos elementos de informação.
Não dá mais para continuarmos nesse caminho. Essa confusão técnica e jurídica, geradora de toda sorte de bizarrice, não é aceitável num país que se pretende sério. O que se retira desse cenário é que há premente necessidade de formulação de regras de atuação conjunta entre a Polícia Judiciária e o MP no exercício de seu poder investigativo. Esses parâmetros devem ser estabelecidos a partir não só das normas de processo penal, mas também da doutrina policial.
O Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) e a Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro – ENCCLA têm estimulado a criação de Delegacias Especializadas no Combate a Crimes Financeiros, Corrupção e Crime Organizado. Nesse sentido, muitas Polícias Civis estão criando essas Unidades que acabam vinculadas tematicamente aos GAECOs, o que tem estreitado as ações conjuntas. Nesse sentido, está aberta uma grande ponte de diálogo para a construção de um modelo de trabalho colaborativo e sem as atuais anomalias disruptivas.
O erro de avaliação de um membro do Ministério Público que desconsidera a experiência da vocacionada Polícia Judiciária, pensando ser capaz de efetivar diligências de campo e cumprimento de mandados de prisão/buscas sem treinamento específico só encontra páreo de mesma estatura no equívoco do Delegado de Polícia que se pretende capaz de substituir o Promotor na ação penal. Passada mais de uma década dos debates da PEC 37, já é tempo de arrefecimento dos ânimos e maturidade para autocontenção. O atual modelo competitivo autofágico deve ser substituído por um verdadeiramente colaborativo. Como ninguém há de discordar: o inimigo é outro!
[1] http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/RE593727.pdf
[2] https://www.cjf.jus.br/cjf/outras-noticias/2011/marco/stj-e-ilegal-a-participacao-da-abin-na-operacao-satiagraha