Um espectro ronda o direito brasileiro – o espectro do informalismo.
Ínclitos leitores, poder-se-ia, a priori, de forma paradoxal em relação ao conteúdo que se pretende propalar neste artigo, principiar o mesmo não com a paráfrase acima, mas sim com a colocação pronominal deveras pomposa e arcaica que inaugura este parágrafo, bem como com os demais termos preambulares já empregados e que ainda lhes acompanharão nas próximas poucas, mas entediantes, linhas. Entrementes, como doravante será explicitado, urge aclarar que esse não é o desiderato deste manifesto, que almeja, ab ovo, exemplificar e evidenciar a prescindibilidade de tão bojudo linguajar, cujo modus operandi, data vênia, em nada concorre com a boa comunicação. Com efeito, como será exaurientemente demonstrado a seguir, lato ou stricto sensu, conditio sine qua non para uma comunicação hodiernamente eficiente e erga omnes é a singeleza do modus faciendi do seu operador, que deve evitar a utilização sobremaneira de termos eruditos, jargões e estrangeirismos, jamais empregando-os com animus abutendi, mormente em um Estado Democrático de Direito impregnado de desigualdade sociocultural, como o pátrio, cuja maioria da nação não é suficientemente letrada em altos estudos jurídicos a ponto de compreender a complexidade léxica do juridiquês.
De mais a mais, poder-se-ia apresentar algum prefácio teórico entediante, pedante e desnecessário, como sói ocorrer nos textos jurídicos. Nada obstante, ad cautelam, optou-se por não proceder desta forma, dado que seria conduta perfunctória, com a qual não comungamos, não se revestindo do espeque imperioso e indeclinável deste libelo.
A posteriori, forçoso seria, ex vi, proceder consuetudinário dos Doutos escritores dos compêndios jurídicos, com o condão de dar robustez ao texto, refletir sobre a etimologia da palavra formalismo, sua definição, classificações e subclassificações, fontes, princípios, relação do termo formalismo com o termo formalidade, interdisciplinaridade entre a acepção jurídica, sociológica, antropológica, filosófica, política, psicológica e econômica da palavra, e, ainda, explanar sobre eventual função social do formalismo. Ad argumentandum tantum, como cediço, esse mister tampouco se coadunaria com o fito que se busca via destas laudas, atravancando, ademais, a assertividade e hermenêutica deste epítome.
In fine, nesse diapasão, somente após muitos alhures e doravantes, encerrado esse processo enfadonho, passar-se-ia a analisar o cerne da questão - embora não sem o emprego de palavras obsoletas e termos dispensáveis, por meio de uma erudição desnecessária e descabida: mera ostentação, portanto, tal como frequentemente acontece nos círculos jurídicos.
Feita essa introdução satírica (mas nem tanto), vamos ao que interessa.
De fato, existe no meio jurídico o uso de um linguajar próprio, comumente chamado de juridiquês (FRÖHLICH, 2015, p.215), e que muitas vezes só os profissionais da área entendem. Juridiquês é o neologismo que designa o uso desnecessário e excessivo do jargão jurídico. Perceba-se que jargão não pode ser confundido com linguagem técnica, que existe em todas as profissões e que algumas vezes é necessária, pois, como afirma Hart, a linguagem técnica pode diminuir a textura aberta da linguagem natural, reduzindo as varáveis e evitando uma nova apreciação em cada caso concreto. (HART, 2001, p.148). Termos técnicos, portanto, são palavras específicas utilizadas por especialistas de determinada área como meio necessário à comunicação efetiva dentro dessa área particular. Já o Jargão, por outro lado, é uma linguagem desnecessariamente obscura, com utilização de palavras eruditas que possuem equivalentes na linguagem comum perfeitamente aceitáveis.
Mas o jurisdiquês não é a característica única dessa construção textual peculiar utilizada na área jurídica. Existe todo um processo de rebuscamento, com excesso de definições, classificações, teorias, nomenclaturas e uso de estrangeirismo puro (sobretudo do latim, inglês e alemão) ou de estrangeirismo híbrido (nativização da palavra estrangeira ou mesmo a utilização de palavras estrangeiras com superlativos/sufixos nacionais), caracterizando verdadeira ornamentação linguística.
Classificações em excesso, muitas vezes divididas em subdivisões de subdivisões, sem qualquer utilidade prática, são criadas. Exemplos surreais, completamente dissociados da realidade social, são apresentados (que o digam Caio, Tício e Mévio). Novas nomenclaturas com termos estranhos ou mesmo bizarros são vistas como sinal de inteligência ou inovação (principalmente se associadas a expressões estrangeiras). Novas teorias (nem sempre verdadeiramente novas) são floreadas com nomes “criativos”, cada qual mais esdrúxulo que o outro, com a pretensão de se dar uma impressão de invento ou inovação ou de aparentar uma complexidade maior do que a real. São tantas as situações que discorrer com mais profundidade e detalhismo a respeito delas é tarefa para pós-doutorado de linguistas, sociólogos, antropólogos e, sobretudo, psicólogos.
Sobre os termos desnecessariamente empregados no meio jurídico, a professora de linguística brasileira Nirlene Oliveira traz os seguintes exemplos:
alvazir de piso: o juiz de primeira instância;
aresto doméstico: alguma jurisprudência de tribunal local;
autarquia ancilar: Instituto Nacional de Previdência Social – INSS;
caderno indiciário: inquérito policial;
cártula chéquica: folha de cheque;
consorte virago: esposa;
digesto obreiro: Consolidação das Leis do Trabalho – CLT;
ergástulo público: cadeia;
exordial increpatória: denúncia;
repositório adjetivo: Código de Processo. (OLIVEIRA, p.21)
E o que dizer de “consorte supérstite”, “mister”, “malsinados”, “sobejamenente”, “vergastado”, “objurgada”, “proemial”, “testilha”, “requestado”, “ergastulário”, “petição de intróito” e, para finalizar, o pitoresco e bastante usual “remédio heróico”?!
A antiga reclamação de Raul Seixas, de ter ao lado, sem motivo, um dicionário cheio de palavras que sabe que nunca vai usar[1], não faria sentido na área jurídica, já que muitas são escolhidas justamente pela erudição e por serem incomuns. Esquecem-se os profissionais do direito do famoso ensinamento de Winston Churchil: “Das palavras, as mais simples: das mais simples, a menor".
Bice Garavelli afirma que sequer há uma língua própria do Direito, mas sim uma reutilização de termos especializados da língua ordinária (GARAVELLI, 2001, p.11), o que, de qualquer forma, torna o linguajar do meio jurídico acessível apenas para alguns privilegiados. Por sinal, é sintomático que no direito não se costuma utilizar a palavra idioma, mas sim “vernáculo”.
E não é só por meio do “vernáculo” que se alcança um rebuscamento obsoleto e desnecessário. Para exemplificar expressões em latim bastante usuais no campo jurídico - mas longe de serem as mais exdrúxulas - podemos citar “ad argumentandum tantum”, “meritum causae”, “codex”, “in casu”, “ipso facto”, “status quo ante”, “fumus bonis iuris”, “periculum in mora”, “inaudita altera partes”. Em comum elas têm o fato de que possuem equivalentes em língua portuguesa que poderiam muito bem ser empregadas sem perder o sentido ou causar estranhamento, não sendo caso, portanto, de impossibilidade de substituição por termo ou expressão equivalente na língua nacional (como seria o caso, por exemplo, das expressões “Habeas Corpus” ou “Habeas Data”). Ou seja, são termos em latim utilizados por livre e espontânea vontade daqueles que redigem o texto.
Parece um tanto absurdo, não? Temos que concordar. Porém, apesar de “teratológica”, essa situação não é incomum (eufemismo). A pergunta que não quer calar é: Por que isso acontece?
Talvez Pierre Bourdieu tenha a resposta ao afirmar:
A constituição do campo jurídico é inseparável da instauração do monopólio dos profissionais sobre a produção e a comercialização desta categoria particular de produtos que são serviços jurídicos. A competência jurídica é um poder específico que permite que se controle o acesso ao campo jurídico, determinando os conflitos que merecem entrar neles e a forma específica de que se devem revestir para se constituírem em debates propriamente jurídicos: só ela pode fornecer os recursos necessários para fazer trabalho de construção que, mediante uma seleção das propriedades pertinentes, permite reduzir a realidade à sua definição jurídica, essa ficção eficaz (BOURDIEU, 1998, 233).
Desse modo, só entram no “campo jurídico” aqueles a quem os operadores do direito permitem o ingresso, fazendo com que a dificuldade em se compreender o Direito seja um mecanismo para garantir aos juristas o monopólio sobre a resolução dos litígios. Ou seja, o que explica o uso do juridiquês, em grande parte, são questões corporativistas, de manutenção de status. Trata-se, assim, de um instrumento de poder.
Como se diz na sociologia, o homem é um animal que ocupa posições. Isso porque toda sociedade compreende um sistema de status ou posições. “Status é a localização do indivíduo na hierarquia social, de acordo com a sua participação na distribuição desigual da riqueza, do prestígio e do poder” (VILA NOVA, 2018, p. 127). Prossegue o professor Sebastião Vila Nova:
Dentre os status específicos do indivíduo, um tende a se destacar: o status principal. Status principal é aquele que, dentre os status específicos ocupados pelo indivíduo, lhe dá mais prestígio, poder e riqueza, em dado momento da sua existência. Nas sociedades contemporâneas do tipo urbano-industrial, o status principal dos indivíduos tende a ser o seu status ocupacional ou profissional” (VILA NOVA, 2018, p. 130).
Portanto, o status principal (profissional) de um indivíduo em uma sociedade estratificada como a nossa (dividida em classes sociais), aponta qual a posição no grau da hierarquia social que ele ocupa e confere-lhe, assim, uma condição de prestígio e, sobretudo, de poder.
Sobre o poder, é clássico o ensinamento de Max Weber de que “poder significa toda a probabilidade de impor a própria vontade numa relação social, mesmo contra resistências, seja qual for o fundamento dessa probabilidade” (WEBER, 1991, v.1, p. 33). O poder é um fenômeno que perpassa toda sociedade, em todos os seus níveis. Onde quer que existam seres humanos em interação, existe alguma disputa por algum tipo de poder (VILA NOVA, 2018, p. 210).
No campo profissional, assim, a dificuldade de acesso a uma determinada ocupação ou o seu reconhecimento como atividade complexa e desempenhada por pessoas cultas gera valorização e prestígio e, com isso, ocasiona, também, aumento do poder político e econômico da respectiva categoria. Já no âmbito pessoal, a ornamentação linguística sinaliza, em tese, um jurista mais preparado, pois quem se afasta se torna grande e incompreensível, como refletiu o ex-Ministro do Supremo Tribunal Federal, Nelson Jobim, em uma palestra realizada em 2018[2].
E esse floreio linguístico não está restrito ao texto escrito. Na linguagem oral, igualmente, os profissionais do direito costumam exagerar no rebuscamento da comunicação. Ora, quem na área jurídica nunca saiu de uma audiência e ouviu de uma das partes envolvidas a seguinte indagação: “Dr., eu ganhei ou perdi”? Ou seja, mesmo participando do ato, muitas vezes a parte interessada só sabe o que aconteceu quando aperta a tecla do SAP do seu advogado, para que seja realizada a tradução de todo o acontecido. Sobre essa situação corriqueira, vale contar, por sua semelhança, uma conhecida anedota que relata a aventura de um ladrão que fora surpreendido por Ruy Barbosa, membro fundador da Academia Brasileira de Letras, ao tentar roubar galinhas em seu quintal:
— Não o interpelo pelos bicos de bípedes palmípedes, nem pelo valor intrínseco dos retrocitados galináceos, mas por ousares transpor os umbrais de minha residência. Se foi por mera ignorância, perdôo-te, mas se foi para abusar da minha alma prosopopéia, juro pelos tacões metabólicos dos meus calçados que dar-te-ei tamanha bordoada no alto da tua sinagoga que transformarei sua massa encefálica em cinzas cadavéricas.
O ladrão, confuso, perguntou:
—Dr., eu posso levar o frango ou não?
Ainda sobre ornamentação linguística em sua acepção oral, nem sempre tem como objetivo o afastamento do comum e, consequentemente, o engrandecimento pessoal. Muitas vezes serve como estratégia de oratória, visando driblar a veracidade de uma situação. Afinal, como bem satirizou o escritor estadunidense Ambrose Bierce em seu famoso livro O Dicionário do Diabo (BIERCE, 1911), eloquência é a arte de persuadir oralmente os tolos de que o branco é a cor que parece ser. Inclui o dom de fazer qualquer coisa parecer branca. Assim, tendo em vista que o poder de persuasão é extremamente valorizado no dia a dia daqueles que têm como missão alcançar determinado resultado em uma ação judicial, a eloquência costuma ter a mesma sorte.
Mas voltando à linguagem escrita, a utilização de jargões tantas vezes serve, também, como meio de se fazer um trabalho parecer mais difícil e importante do que realmente é (uma cortina de fumaça). Portanto, o emprego do juridiquês rotineiramente objetiva dar uma aparência de maior profundidade ou mesmo uma pseudoprofundidade a um texto. Além do mais, para os efetivamente menos técnicos e preparados, a comunicação sem clareza é também uma forma eficaz de esconder ignorância no assunto sobre o qual se fala. Afinal, como disse o poeta popular, “Falar difícil é fácil. O difícil é falar fácil”.
E o que dizer do endereçamento das petições jurídicas com o uso da expressão “Excelentíssimo Senhor Doutor Juiz...”? Para começar, Excelência não é o pronome de tratamento adequado aos Juízes. O correto seria Meritíssimo.
Sobre o emprego da palavra Doutor, sequer é pronome de tratamento. É um título acadêmico destinado àqueles que concluem curso de doutorado. Ainda que se alegue a existência de um decreto imperial para justificar o referido tratamento[3], é evidente que a essa norma do século XIX não está mais em vigor, tendo em vista que existem critérios atuais para alguém receber um título acadêmico[4]. O que ocorre é que, no nosso país, desde o Brasil Colonial, os médicos e os juristas são tratados como doutores como forma de distinção social (REICHMANN; AVILA, 2009, p.156), fugindo da própria origem do termo na Antiguidade, onde o termo “docto” era usado para as pessoas que ensinavam a “doctrina”, ou seja, para os professores (REICHMANN; AVILA, 2009, p.148). Desse modo, a associação inadequada do título acadêmico de doutor a determinadas categorias profissionais vem servindo, há séculos, como mecanismo de poder e para distanciar os doutores (nobres) dos cidadãos comuns (plebeus), à semelhança dos títulos nobiliárquicos nas sociedades aristocráticas antigas, que conferiam prestígio, status e poder político à nobreza (mesmo após a nobreza deixar de possuir poder econômico, como passou a ocorrer já no final da idade moderna).
A realidade mencionada no parágrafo anterior é tão clara que um magistrado, ainda que sem sucesso, entrou com uma ação judicial para obrigar o porteiro a chamá-lo de doutor[5]. Percebam o absurdo da situação: um agente público moveu toda a máquina do Poder Judiciário porque não aceitava o fato de o porteiro não o chamar de doutor. Assim, um problema do magistrado, que poderia ser resolvido por meio de uma terapia, acabou sobrecarregando ainda mais o sistema de justiça. Logo, o “Exmo. Sr. Dr. Juiz” nada mais é do que mais um instrumento de poder, este especificamente à disposição dos magistrados, para aparentar uma situação de maior nobreza e de hierarquia (inexistente) dos Juízes dentro do próprio Sistema de Justiça.
E não é apenas o Juiz que costuma ser bajulado com pronomes de tratamento e títulos acadêmicos ou nobiliárquicos. Não faltam adjetivos para se dirigir aos órgãos colegiados e seus integrantes: Pretório Excelso, Egrégio Tribunal, Colenda Turma, Eméritos Julgadores, Doutos Sodalícios, Conspícuos Desembargadores e por aí vai...
Há, em resumo, um barroquismo jurídico tupiniquim, com excesso de formalismo e erudição, e com o uso radical da linguagem mais culta (tantas vezes de forma incorreta, registre-se), com o objetivo de transmitir potência ao discurso e uma imagem culta dos profissionais do direito. Como exemplos de vícios de linguagem e termos e expressões inexistentes ou habitualmente empregados de forma equivocada em textos jurídicos, pode-se mencionar “inobstante”, “no que pertine”, “no que cerne”, “em sede de”, “o mesmo”, “vez que”, "senão vejamos" ou "indigitada", "ferir de morte", "de outro bordo", "noutro giro", "mesmo diapasão", “eis que” (dando ideia de causa em vez de surpresa), “posto que” (dando ideia de causa em vez de concessão), verbo “restar” com particípio ao lado (ex: “resta provado”), “em face de” (no sentido de “contra” em vez de “diante”), “desta feita” (como conclusão – causa/efeito – em vez de denotar tempo), dentre tantos outros.
A pretexto de se redigir de forma culta e elegante, o que se vê com frequência no campo jurídico é um linguajar pobre e pitoresco. Mas o maior problema é que essa construção textual prolixa e esse linguajar jurídico enrolado, truncado e obscuro, e tantas vezes equivocado e com diversos vícios de linguagem, contrariam os princípios da racionalidade e da utilidade, prejudicando a comunicação eficaz e, portanto, a produtividade no meio profissional do direito.
Muito se critica - tantos os atores externos ao sistema de Justiça como os próprios profissionais da área - a ineficiência e a lentidão do Poder Judiciário da nossa República. Todavia, é preciso ter em mente que não são só a Justiça, como órgão estatal, e o processo, como instrumento, na clássica visão do processo kafkiano, que geram esses problemas. Os próprios operadores do direito (advogados, procuradores, promotores, defensores etc.) colaboram com a obscuridade do direito, na medida em que habitualmente agem, defendem ou, ao menos, compactuam com formalismos exacerbados.
Ou seja, esses problemas, embora não exclusivamente, muito se devem à cultura formalista que predomina no cotidiano do direito brasileiro. Os juristas em geral precisam ter consciência de que peças jurídicas extensas, prolixas, redundantes, truncadas, eruditas e sem objetividade só tendem a dificultar e prolongar o andamento dos processos e a resolução dos conflitos sociais. A clareza de expressão e a objetividade são fundamentais para o bom funcionamento de um Sistema de Justiça de forma célere e eficiente, como desejado. E a questão não envolve somente a racionalidade, eficiência e celeridade. Diz respeito ao próprio Princípio da Inafastabilidade da Jurisdição. É preciso democratizar a linguagem da Justiça para democratizar o próprio acesso à Justiça. Afinal, a sociedade (não apenas os jurisdicionados) precisa ter acesso à Justiça. E acesso não é somente acesso formal (por advogado ou diretamente, nas hipóteses da lei). É entender como funciona e o que se passa.
O monopólio da Justiça é prejudicial à resolução dos conflitos sociais e, portanto, ao desenvolvimento da sociedade e do próprio Estado de Direito. Contudo, infelizmente, por uma questão de matiz ideológica (disputa de poder), há uma resistência enorme à informalidade no campo jurídico (muitas vezes automática – sequer consciente – devido ao alto grau de assimilação da cultura formalista pelos profissionais da área), ainda que existam algumas medidas aqui e acolá visando mudar o referido cenário, como a Campanha Nacional pela Simplificação da Linguagem Jurídica promovida pela Associação dos Magistrados Brasileiros em 2005 (que não teve muito sucesso) e o chamado movimento em prol do “visual law”, que prega a combinação nas petições jurídicas de textos escritos com elementos visuais (CLARO, 2021, p.1), mas que não consegue ele mesmo fugir do estrangeirismo.
Sobre o tema do acesso à Justiça, digna de transcrição é a reflexão de Maria Tereza Sadek (SADEK, p. 41):
Tornou-se lugar comum afirmar que sem uma Justiça acessível e eficiente coloca-se em risco o Estado de Direito. O que poucos ousam sustentar, complementando a primeira afirmação, é que, muitas vezes, é necessário que se qualifique de que acesso se fala. Pois a excessiva facilidade para um certo tipo de litigante ou o estímulo à litigiosidade podem transformar a Justiça em uma Justiça não apenas seletiva, mas sobretudo inchada. Isto é, repleta de demandas que pouco têm a ver com a garantia de direitos – esta sim uma condição indispensável ao Estado Democrático de Direito e às liberdades individuais”.
Além disso, não é só no linguajar que os operadores do direito se afastam da população. A própria vestimenta dos juristas é também uma forma de se distinguir dos profissionais de outras áreas e da população de um modo geral. Nada justifica no Nordeste Brasileiro, no Rio 40 Graus ou em Cuiabá (onde não sentir calor é a mesma coisa que ver e não querer um grande amor) o uso do terno e da gravata nos tribunais. Afinal, moramos em um país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza. E, justamente por ser de clima predominantemente tropical, o Brasil é bastante quente na maior parte do tempo e do território, diferentemente da Europa, onde predomina o clima temperado e, até mesmo, em parte do território, subpolar. Contudo, há uma outra peculiaridade na cultura brasileira (esta não específica do meio jurídico): o complexo de vira-lata, que faz com que nossa sociedade busque sempre se elevar reproduzindo costumes europeus, inclusive em situações inadequadas que gerem sofrimento.
A cultura, compreendendo conhecimentos, técnicas de transformação da natureza, valores, crenças de todo tipo e normas, é, pois, o modo de vida próprio de cada povo. Ela é o fundamento da sociedade e o que distingue o homem dos animais não-humanos (VILA NOVA, 2018, p. 54). A cultura, grosso modo, é a adaptação artificial que os seres humanos fazem em um ambiente natural como forma de ajustá-lo às suas necessidades. A respeito do caráter arbitrário da cultura e da possibilidade de o ser humano criar costumes incompatíveis com sua condição natural, ensina o professor Sebastião Vila Nova:
É oportuno notar que, proporcionando ao homem meios de satisfazer as suas necessidades, a cultura nem sempre é inteiramente harmonizada com as condições orgânicas da nossa espécie. Ao contrário, a cultura, em geral, implica alguma forma de violação da condição natural do homem. O uso do paletó e gravata e de tecidos e cores incompatíveis com o bem-estar humano em regiões de clima tropical são um exemplo do caráter arbitrário da cultura e de como ela nem sempre representa a forma mais adequada de adaptação do homem às condições ambientais” (VILA NOVA, 2018, p. 58).
O uso do terno e gravata no Brasil, portanto, não deixa de ser uma expressão cultural do brasileiro, visto que cultura é toda adaptação artificial que os seres humanos fazem em um ambiente natural como forma de ajustá-lo às suas necessidades, ainda que essa necessidade seja psicológica, ligada ao complexo de vira-lata do brasileiro colonizado [6], ao invés de uma necessidade natural, ambiental ou física, e mesmo que essa adaptação seja irracional ou inconveniente, como no caso.
É fato que todo sistema social compreende necessariamente um sistema de símbolos, valores e normas que dá sentido e orienta as ações do indivíduo na satisfação de suas necessidades (VILA NOVA, 2018, p. 114). Da mesma forma, as classes superiores, em qualquer sistema de estratificação social, têm necessidade de símbolos exclusivos que possibilitem a identificação de seus membros como superiores (VILA NOVA, 2018, p. 166). Nesse sentido, Pierre Bourdieu já afirmava na década de 70 que a alta costura é a parte da produção e bens de luxo que mais faz transparecer as diferenças entre as classes sociais (BOURDIEU, 1975,10). Por sua vez, Jessé de Souza traz a importância da vestimenta no Brasil do século XIX como instrumento para fazer a diferenciação social entre as classes que possuíam o poder de mando e as que poderiam ser exploradas por um preço vil (SOUZA, 2019, p.70).
Assim, se na cultura geral do brasileiro a baixa autoestima e o complexo de inferioridade justificam a utilização do terno e gravata em ocasiões especiais, com mais razão (ou menos, na verdade), na área jurídica exige-se a utilização do traje nos tribunais. Afinal, “a residência, como o vestuário, não funciona apenas como abrigo, mas também como símbolo. Seu tipo e sua localização desempenham uma importante função simbólica no que se refere à localização dos indivíduos na hierarquia social” (VILA NOVA, 2018, p. 67). Portanto, com o perdão da metáfora, a utilização do terno e gravata nada mais é do que uma carteirada de pano. Desse modo, a exigência até os dias atuais da referida vestimenta parece decorrer apenas da necessidade interna que o meio jurídico possui de se diferenciar (e se distanciar) da população, o que gera um obstáculo psicológico em virtude da dificuldade de muitas pessoas, principalmente as mais humildes, procurarem o Poder Judiciário.
Conversa vai, conversa vem, voltamos aqui ao cerne da questão: a necessidade de alcançar ou permanecer em um lugar especial na hierarquia social do país. O terno e a gravata, nesse contexto, passam a ser mais um mecanismo utilizado no campo jurídico para diferenciar os profissionais do direito dos demais profissionais e distanciá-los da sociedade em geral, conferindo-lhes posição privilegiada e, com isso, prestígio e poder político.
Além disso, há outro fator de engrandecimento e distanciamento ligado à cultura formalista e de poder: a arquitetura majestosa dos tribunais (MORALLES, 2006.p.79) também causa medo no cidadão, tendo em vista que os prédios jurídicos são feitos com a ideia “do litígio e do formalismo” (LORENCI, 2019, p.62), buscando fazer o Poder Judiciário parecer uma instituição futurística, que vai além do seu tempo (VIGOUR, 2006, p.428), o que é uma realidade bem contraditória em um meio extremamente conservador.
Aliás, também podemos ver a realidade cá exposta nos veículos usados pelos profissionais da área jurídica, pois claramente um advogado respeitado precisa andar em um carro de luxo, o que se repete nos agentes públicos do sistema de justiça que, mesmo contra texto expresso de lei[7], comumente transitam nos chamados “carros de representação”, nome técnico para carro de luxo, o que é uma consequência da existência de resquícios da adoção de um sistema patrimonialista no Brasil (ALBUQUERQUE, 2017, p.174).
Se na vida individual vestuário, casa e automóvel, entre outros bens, proporcionam não apenas conforto material, mas também, de modo significativo, conforto mental aos indivíduos, na medida em que satisfazem necessidades psíquicas de origem sociocultural (VILA NOVA, 2018, p. 67), de igual modo, na vida pública, o uso do terno e gravata pelos juristas, a construção de edifícios públicos majestosos e imponentes e a utilização de custosos veículos de representação pelos órgãos públicos satisfazem necessidades psíquicas de origem sociocultural dos agentes públicos, além de serem mecanismos de busca ou manutenção de prestígio e poder pelo órgão e, consequentemente, pela categoria.
Por todas essas razões é que o espectro do informalismo ronda, e assusta, o Sistema de Justiça.
O fato é que o formalismo excessivo no Sistema de Justiça - seja na comunicação, nas vestes, nos veículos, nos prédios ou via qualquer outro símbolo ou instrumento de poder – apenas serve ao corporativismo da classe, nada agregando ao Estado e à sociedade como um todo, que só têm a perder, pois acaba vindo a se tornar um verdadeiro obstáculo ao acesso à justiça, principalmente para as camadas menos favorecidas da população. Com efeito, como explicado por Maria Tereza Sadek (SADEK, p. 41),
temos um sistema muito mais comprometido com um excesso de formalismos e procedimentos do que com a garantia efetiva de direitos. Nesse sentido, o Judiciário deixa de ser utilizado para garantia de direitos e passa a ser procurado principalmente para obter vantagens. Compartilha-se a hipótese de que a utilização do Poder Judiciário está estreitamente relacionada a um grupo específico da sociedade, exatamente aquele que dispõe de mais recursos econômicos, sociais e intelectuais.
Dessa forma, o Judiciário apenas permanece humanamente afastado da realidade histórico-social do país e com a pecha (justa) de ser lento, custoso e ineficiente. É necessário, portanto, todos nós que integramos o Sistema de Justiça mudarmos profundamente nossa mentalidade, costumes, valores, crenças, normas sociais e atitudes (cultura mesmo), de modo a informalizarmos ao máximo a área jurídica, democratizando-a, racionalizando-a e tornando-a mais célere e eficiente.