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O golpe do delivery e a responsabilidade das plataformas de entrega

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O consumidor não pode ser responsabilizado pelos prejuízos advindos de erro da empresa na escolha de seus prepostos, funcionários e/ou representantes autônomos.

Durante a pandemia de covid-19 a demanda por serviços de entregas cresceu de maneira substancial, especialmente em razão das medidas sanitárias e restritivas adotadas pelo Estado. Embora o negócio tenha se originado com a entrega de refeições, atualmente é possível solicitar praticamente qualquer produto por intermédio de plataformas digitais de delivery. Entretanto, com as comodidades proporcionadas pelos aplicativos, também surgiram vicissitudes, tais como o famigerado “golpe do delivery”.

Em linhas gerais, oportunistas e estelionatários, cientes deste novo universo de possibilidades, cadastram-se nas plataformas de entregas com o intuito de fraudar os consumidores. Apesar de existirem variações, o golpe geralmente é concretizado quando o entregador chega com a encomenda, sendo solicitado um pagamento com cartão de débito ou crédito.

Nesta oportunidade, o golpista informa que a maquineta está com o visor “quebrado”, de modo a não exibir o valor da compra; confiante na boa-fé do entregador, o cliente acredita que a cifra introduzida na maquininha corresponde efetivamente ao valor do pedido e digita a senha. Entretanto, o golpista insere um valor elevado que, às vezes, excede o patamar de cinco mil reais. Quando o cliente pede a 2ª via do comprovante, é comum que o fraudador simplesmente monte na moto e empreenda fuga; e quando não é solicitado o comprovante, o consumidor somente percebe que foi vítima de um golpe quando verifica seu extrato bancário.

Também há relatos de consumidores que sofreram o mesmo golpe, embora tivessem conferido minuciosamente o valor da compra no visor da maquineta. Trata-se de uma versão mais refinada da fraude, em que o estelionatário adultera a programação máquina para que, no visor, seja de fato exibido o valor correto do pedido, ao passo que na realidade, quando o cliente digita a senha, o aparelho processa uma transação de valor muito superior.

Neste artigo, trataremos sobre a responsabilidade das plataformas de delivery em relação ao golpe supramencionado.

Pois bem. Em primeiro lugar, registre-se que a relação entre o cliente e a plataforma de entrega é regida pelo Código de Defesa do Consumidor (“CDC”). Portanto, no caso do “golpe do delivery”, a responsabilidade da empresa prestadora do serviço de entrega incide em sua modalidade objetiva, a qual, segundo os ensinamentos de Gonçalves, prescinde da prova de culpa:

“Na responsabilidade objetiva prescinde-se totalmente da prova da culpa. Ela é reconhecida, como mencionado, independentemente de culpa. Basta, assim, que haja relação de causalidade entre a ação e o dano.”[2]

Dessarte, caraterizada a relação de consumo, aplica-se o art. 14 do CDC:

“Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.

§ 1° O serviço é defeituoso quando não fornece a segurança que o consumidor dele pode esperar, levando-se em consideração as circunstâncias relevantes, entre as quais:

I - o modo de seu fornecimento;

II - o resultado e os riscos que razoavelmente dele se esperam;

III - a época em que foi fornecido.”

Ora, o consumidor que contrata serviço de entrega por aplicativos tem a justa expectativa de que os entregadores credenciados à plataforma sejam pessoas idôneas e que ajam de boa-fé, pois a empresa faz (ou deveria fazer) rigorosa triagem dos indivíduos que se cadastram no aplicativo, afinal o serviço de entrega não é gratuito e, ainda que fosse, tal fato não justificaria o credenciamento de estelionatários e/ou a prestação de serviço defeituoso.

Outrossim, no exercício de sua lucrativa atividade empresarial, as empresas de delivery têm conhecimento de que fraudes são um risco inerente ao seu negócio; e, como não há repartição de lucros com os consumidores, também não pode haver repartição de riscos e prejuízos inerentes ao negócio. Trata-se da consequência lógica e jurídica da Teoria do Risco do Empreendimento. A este propósito, Cavalieri Filho[3] elucida que:

“Pela teoria do risco do empreendimento, todo aquele que se disponha a exercer alguma atividade no mercado de consumo tem o dever de responder pelos eventuais vícios ou defeitos dos bens e serviços fornecidos, independentemente de culpa. Este dever é imanente ao dever de obediência às normas técnicas e de segurança, bem como aos critérios de lealdade, quer perante os bens e serviços ofertados, quer perante os destinatários dessas ofertas. A responsabilidade decorre do simples fato de dispor-se alguém a realizar atividade de produzir, estocar, distribuir e comercializar produtos ou executar determinados serviços. O fornecedor passa a ser o garante dos produtos e serviços que oferece no mercado de consumo, respondendo pela qualidade e segurança dos mesmos.”

Portanto, se uma empresa permite que estelionatários ingressem em sua plataforma de entregas, a responsabilidade pelos prejuízos causados aos consumidores não pode ser transferida a terceiros ou à própria vítima. Trata-se de nítida hipótese de fortuito interno. Sobre este tema, Gustavo Tepedino leciona:

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“Nesse cenário, e considerando que, na sociedade cada vez mais complexa e industrializada, os danos ‘devem ocorrer’, cunhou-se o conceito de caso fortuito interno, assim entendido o evento que se liga à pessoa ou à organização da empresa, ou seja, aos riscos da atividade desenvolvida pelo agente, e incapaz de exonera-lo. Afinal, cuida-se de fatos que, embora fortuitos, se encontram contidos no âmbito da atividade em cujo desenvolvimento deu-se o dano”.[4]

Especificamente em relação ao “golpe do delivery”, aplicado pelo preposto credenciado ao aplicativo fornecedor do serviço de entrega, entendemos que se trata de hipótese da culpa in eligendo, eis que o fornecedor permitiu o credenciamento de estelionatário em sua plataforma. Segundo Venosa, a culpa in eligendo é aquela “oriunda da má escolha do representante ou do preposto, como, por exemplo, contratar empregado inabilitado ou imperito”.[5]

De fato, o consumidor não pode ser responsabilizado pelos prejuízos advindos do erro da empresa na escolha de seus prepostos, funcionários e/ou representantes autônomos (culpa in eligendo), em decorrência da Teoria do Risco do Empreendimento, já explanada acima. Ademais, pouco importa que os entregadores não mantenham vínculo empregatício formal com a plataforma de entrega, pois o art. 34 do CDC prevê que o fornecedor de serviços é solidariamente responsável pelos atos praticados pelos representantes autônomos da empresa:

“Art. 34. O fornecedor do produto ou serviço é solidariamente responsável pelos atos de seus prepostos ou representantes autônomos.”

Embora a questão não seja pacífica nos tribunais, existe robusta jurisprudência que corrobora a tese esposada neste artigo. Para fins didáticos, selecionamos dois recentes julgados do TJSP:

“APELAÇÃO – GOLPE DO DELIVERY – DANO MATERIAL E MORAL CARACTERIZADO – MANTUTENÇÃO DA CONDENAÇÃO IMPOSTA NA R. SENTENÇA - Houve evidente falha na prestação de serviço, na medida em que a apelada contratou o serviço de entrega da apelante, confiante que o serviço seria prestado de forma adequada, tendo sido vítima de golpe perpetrado pelo entregador vinculado à apelante, que no momento da entrega exigiu pagamento de taxa de entrega, o que após se tornou conhecido que, em verdade, quantia expressiva havia sido debitada da conta da recorrida. Prestadora de serviço que responde pelos atos praticados pelos entregadores independentemente de vínculo empregatício. - Não merece guarida o recurso no que se refere à imputação da ocorrência do evento danoso à conduta da consumidora, ao argumento de que ela não teria agido com cautela, ignorando a mensagem a ela encaminhada acerca da forma de pagamento, já que aos autos não foi colacionada qualquer prova nesse sentido, para que fosse reconhecida, ao menos a culpa concorrente da vítima. - Resta evidente o dano moral suportado pela consumidora que teve frustrada a expectativa de realizar com comodidade e segurança compras por meio de aplicativo, em virtude do golpe por ela suportado (débito de valores alheios ao negócio jurídico celebrado em sua conta bancária), conduta essa que fora perpetrada pelo entregador a serviço da própria apelante. RECURSO IMPROVIDO.”[6]

DANO MORAL e MATERIAL - "GOLPE DO DELIVERY" – PREJUÍZO MATERIAL DE R$ 2.500,00 – ENTREGADOR DESIGNADO PELA PARTE REQUERIDA – CDC, ARTIGO 34 - RESPONSABILIDADE DA REQUERIDA PELOS ATOS DE SEUS PREPOSTOS OU REPRESENTANTES AUTÔNOMOS - AUSÊNCIA DE CULPA EXCLUSIVA DO CONSUMIDOR - EXPECTATIVA DE CONFIANÇA - FALHA NA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO - RESSARCIMENTO DA QUANTIA DE R$ 2.500,00 - RESPONSABILIDADE OBJETIVA PELA RISCO DA ATIVIDADE - DANO MORAL NÃO CONFIGURADO - MERO ABORRECIMENTO - REPETIÇÃO DE INDÉBITO DESCABIDA - FATO DE TERCEIRO E AUSÊNCIA DE MÁ FÉ DA REQUERIDA - PARCIAL PROCEDÊNCIA - Sentença mantida por seus próprios e jurídicos fundamentos – Recurso ao qual se nega provimento.”[7]

Em conclusão a todo o exposto, pondera-se que existe sim a possibilidade jurídica de se recuperar os prejuízos sofridos em razão do “golpe do delivery”. O cliente que foi vítima desta fraude deve registrar Boletim de Ocorrência tão logo tome conhecimento dos prejuízos sofridos, relatando o mais detalhadamente possível o episódio.

Munido de cópia do Boletim de Ocorrência, a vítima deve formular reclamação formal no aplicativo de entrega e/ou nos órgãos de proteção ao consumidor (p. ex.: PROCON, Consumidor.gov, Reclame Aqui, entre outros). Sendo a contestação negada, recomenda-se que o consumidor procure um advogado especialista para que seja ajuizada ação indenizatória, com o objetivo de recuperar ou mitigar os prejuízos sofridos.


[2] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, volume 4: responsabilidade civil. 16ª Ed., São Paulo: Saraiva, 2021, p. 49.

[3] CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade civil. 11ª Ed., São Paulo: Atlas, 2014, p. 544.

[4] TEPEDINO, Gustavo. Fundamento do direito civil: responsabilidade civil / Gustavo Tepedino, Aline de Miranda Valverde Terra, Gisela Sampaio da Cruz Guedes. 2ª Ed., Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 110.

[5] VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: obrigações e responsabilidade civil, v. 2. 21ª Ed, São Paulo: Atlas, 2021, p. 369.

[6] TJSP. Apelação Cível nº 1053847-90.2020.8.26.0100, Des. Rel. Maria Lúcia Pizzotti, j. em 10.02.2021.

[7] TJSP. Recurso Inominado Cível nº 1000484-57.2021.8.26.0003. Juiz Rel. Cláudio Salvetti D´Angelo, j. em 23.06.2021.

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Sobre o autor
Heitor José Fidelis Almeida de Souza

Advogado e sócio proprietário do Fidelis Sociedade Individual de Advocacia (OAB/SP 29.318), bacharel em Direito pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco (USP), pós-graduado em Direito Empresarial pela FGV-SP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA, Heitor José Fidelis Almeida. O golpe do delivery e a responsabilidade das plataformas de entrega. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6645, 10 set. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/92963. Acesso em: 2 nov. 2024.

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